DOHA – Hoje, pelas 19h00 de aqui (16h00 em Portugal continental), assistiremos ao jogo de abertura da fase final do Campeonato do Mundo de 2022, alocada ao Qatar (Qatar-Equador), o que promoveu a maior onda de críticas jamais lidas e ouvidas sobre um país organizador da prova. Há memórias curtas e outras verdadeiramente muitos curtas. Tantos, ou quase todos, já se esqueceram que ainda há quatro anos o Mundial teve lugar na agora pérfida Rússia e esse monstro chamado Putin já estava no poder quando tantos ministros de tantos países lá foram lamber-lhe as patas de urso por causa do movimento de uma bola a rolar, movimento esse que é uma metáfora da rotação da Terra. Já muitos se esqueceram de 2014 e do Mundial do Brasil e das grossas manifestações contra a falta de segurança dos trabalhadores que se dedicaram à construção dos estádios e das mortes que se sucederam. Ninguém parece querer recordar-se desse já antigo Mundial argentino de 1978, organizado pelo país do general Videla que, pura e simplesmente, eliminava os seus adversários políticos sem que se ouvisse o som de uma arma a ser engatilhada. E, finalmente, ninguém quer saber que a próxima fase final do Campeonato do Mundo esteja dividida por três países, Canadá, México e Estados Unidos, obrigando adeptos e jornalistas a andar de bolandas milhares de quilómetros entre umas cidades e outras e ignorando tão convenientemente que o México de hoje é um dos países menos seguros do mundo, com uma taxa anual de criminalidade de 29 assassinatos por cada 100 mil habitantes, e que os Estados Unidos há anos que fazem gato-sapato dos Direitos Humanos, mantendo um campo de concentração à vista de toda a gente, em Guantanamo, no qual os prisioneiros são despojados das mais básicas das suas necessidades e onde a tortura é uma espécie de pão nosso de cada dia.E até nós devemos ficar calados a partir do momento em que se soube que gente que quis ver o recente Portugal-Nigéria com T-shirts da Amnistia Internacional foram detidas – Ah!, sim, o fascismo está a passar por aqui!
‘Il mondo gira!’
Por mais que afine os tímpanos, não ouço vozes em coro a clamarem contra a vergonha de se disputar um Mundial nos Estados Unidos, tal como não ouvi em 1994, quando este lhe foi entregue de mão beijada, mesmo sabendo que nos US of America o jogo é praticamente desprezado por toda a parte, sobretudo comparado com o futebol americano e o basebol. E o silêncio envolveu a organização russa porque, há apenas quatro anos, Vladimir Putin era, afinal, um dileto amigo do Ocidente e da sua maneira de pensar, disposto a abrir franchises de McDonnalds e Kentucky Fried Chicken pelas esquinas dos quarteirões de Moscovo.
«Il mondo gira/Il tempo vola», cantava Nicola Di Bari. As espinhas dobram-se conforme o lado de que sopra o vento, as ideias moldam-se no barro das ideologias de pacotilha. Descobrimos, agora (só agora!?), que o governo do Qatar tem uma ideia muito liberal do que sejam Direitos Humanos e não gosta de homossexuais. Que esta interrupção dos campeonatos nacionais da Europa é uma grandessíssima estucha (nunca ninguém abriu a goela quando se interrompiam os campeonato da América do Sul), e que o país é demasiado pequeno para aguentar com uma competição que vai atrair milhares de pessoas ávidas de cerveja logo para um local onde ela escasseia ou é mesmo proibida. Continuamos com a certeza absoluta de que a Europa é o centro do mundo e que todo o resto não passa de meia dúzia de lugares exóticos onde vamos passar férias, de preferência nos Clubs Mediterranées, para não nos misturarmos desagradavelmente com os locais. Pois. Aguentem-se. Não é. Cheguei ao Qatar e sinto-me em casa. Aconselho a quem não quiser que não venha.