DOHA – Estamos nas Arábia de Shaharezade das Mil e um Noites, não tão romântica como nas lendas que se criaram à volta deste lugar do globo onde as areias sempre dominaram as errâncias dos homens e, de um dia para o outro, o petróleo começou a jorrar da terra e transformou as pequenas aldeias de beduínos que se dedicavam à pastorícia e os locais da beira mar, onde abundavam as pérolas, passaram a obedecer a uma riqueza muito maior. Nunca um país tão pequeno como Qatar recebeu a final de um Campeonato do Mundo de futebol – o que tem irritado muita gente – mas a História dos Campeonatos do Mundo, que teve o seu início em 1930, também começou num dos países anões da América do Sul.
1930 foi o ano em que a bola rolou num confronto entre seleções que ambicionavam conquistar a belíssima taça de ouro Jules Rimet, a vitória alada. Mas dois anos antes, no Congresso da FIFA que teve lugar em Amesterdão, o presidente do organismo, Jules Rimet, um francês nascido em Theuley-les-Lavoncourt, na Borgonha, a 14 de outubro de 1873, que sucedera a Daniel Burley Woolfall, que por sua vez sucedera a Robert Guérin, fez sentir que a ideia que há muito tempo germinara de se organizar um grande competição mundial de seleções tinha de ser, definitivamente, posta em prática, e que não havia tempo a perder. Até porque, até ao momento, o Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos reforçara claramente a sua popularidade e, popularmente, os seus vencedores eram considerados uma espécie de campeões do mundo tout-court. Decidiu-se que a nova competição seria disputada de quatro em quatro anos (tal como acontecia com os Jogos Olímpicos), e que Hugo Meisl, Henry Delaunay, Bonner e Linneman ficariam encarregues de estabelecer as regras do torneio que deveria entusiasmar como nunca os adeptos de todo o planeta. Albert Lafleur, um escultor de renome, foi o autor do magnífico troféu que caberia ao vencedor e que deveria ser entregue definitivamente à seleção que conquistasse por três vezes o título Mundial.
Rapidamente, as federações de diversos países tomaram o seu lugar no tabuleiro das decisões. Itália, Espanha, Holanda e Suécia apresentaram de imediato a sua vontade em receber a primeira fase final de um Campeonato do Mundo. Mas, surpreendentemente, o Uruguai, que comemorava em 1930 o centenário da sua independência, avançou com um trunfo muito forte: o governo uruguaio comprometeu-se a pagar todas as despesas de viagem e acomodação das seleções finalistas. Acenavam igualmente como se fosse um direito adquirido que a vitória no Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos de 1928 lhes dava um estatuto especial. Além disso, tinham dado início à construção de um estádio monumental, o Centenário de Montevideu, com capacidade para 93 mil espectadores – o maior do mundo fora das Ilhas Britânicas. E, já agora, se aqui no Qatar, todos os jogos se vão disputar em Doha, com uma distância máxima de cerca de 35 quilómetros para o que fica mais distante do centro da capital qatari, também no Uruguai de 1930, todos os jogos teriam lugar em Montevidéu. Afinal parece que, de vez em quanto, a história repete-se…
Pagando os custos da distância
Vendo as coisas com o olhar de hoje, bem mais crítico, naturalmente, são muitos os que consideram que ter entregue a organização do primeiro Mundial ao Uruguai foi um erro de enormes proporções. A longa viagem que se abria pela frente e que metia a travessia do Atlântico de navio, fez com que os menos humildes países da Europa se tenham pura e simplesmente recusado a deslocar-se à América do Sul. Os ingleses, fechados no seu complexo de superioridade, nem quiseram saber sequer da competição. Participar num torneio que iria definir a melhor seleção no mundo para quê se eles já eram, sem precisarem de entrar em campo contra quer quer que fosse, a melhor seleção do mundo? Viriam, uns anos mais tarde, a pagar a farronca à custa de derrotas absolutamente humilhantes.
Dos países europeus, apenas quatro aceitaram o desafio: França, Jugoslávia, Bélgica e Roménia. Jules Rimet trabalhou arduamente, num esforço notável de diplomacia, para que mais equipas da Europa se fizessem representar. Debalde. Por todo o lado ouviu a mesma palavra: NÃO! Ainda assim alargou o prazo para quem quisesse repensar a sua posição até ao dia 28 de Fevereiro de 1930. Nada mudou. Os romenos, por influência do seu jovem rei, Carol II, um apaixonado por futebol que assumiu a presidência da federação – viria mais tarde, com a ascensão da república, a refugiar-se no Estoril – acabaram por ser, dos europeus, os mais entusiastas a embarcar no transatlântico SS Conte Verde, no porto de Génova. O navio fez escala em Villefranche-sur-Mer, onde apanhou as delegações francesa e jugoslava no dia 21 de Junho, e depois em Barcelona, onde os belgas o esperavam. A grande aventura do primeiro Campeonato do Mundo de futebol iria ter início para os poucos europeus que a valorizaram. Lucien Laurent, um dos avançados da França, escreveria mais tarde nas suas memórias: «A viagem durou 15 dias. Todas as manhãs nos levantávamos cedo para fazer exercícios físicos e correr em redor do convés. Os jogadores das outras equipas faziam o mesmo, o que algumas vezes provocava verdadeiras confusões. Curiosamente, o nosso seleccionador, nunca abriu a boca para nos falar de tácticas ou de movimentos preparados para surpreender os adversários. Tirando a ginástica, ninguém diria que íamos disputar a mais importante prova do mundo de futebol».
Entretanto em Montevidéu…
O comité de organização uruguaio andava numa fona. E os seus responsáveis claramente preocupados. O jogo inicial do torneio estava marcado para Pocitos, um bairro de classe média-alta da capital, Montevidéu, pejado de cafés e restaurantes, situado nas margens do rio da Prata e onde o estádio do Peñarol tinha sido erguido. Tudo estava pronto para receber o jogo de abertura, agendado para o dia 17 de Julho, e que iria opor a França ao México. Para compensar, os atrasos na construção do Centenário era tão evidentes que pairava a ameaça de não poder vir a ser utilizado, algo que seria um tremenda derrota para a organização. Desenhado pelo arquitecto Juan Scasso já tinha sido elogiado por Jules Rimet como sendo um verdadeiro Templo do Futebol. Mas havia algo de deprimente nas bancadas ainda incompletas, nas gruas que se debruçavam sobre o seu esqueleto como girafas esfomeadas, no correr corre dos operários meio estonteados.
Além do Centenário e do Pocitos, só mais um estádio iria receber jogos do Mundial: o Grande Parque Central, propriedade do clube Nacional de Montevidéu, e situado no bairro de La Blanqueada. Um esforço final estoico permitiu que, cinco minutos antes da abertura, o Centenário estivesse, finalmente, pronto: cabia-lhe a responsabilidade de receber dez dos dezoito jogos da competição, incluindo meias-finais e final. Nunca mais se veria algo assim.
A festa da Celeste Olímpica!
As treze nações participantes foram divididas em quatro grupos desiguais, com os quatro primeiros de cada grupo a avançarem para as meias-finais. No jogo de abertura, a França bateu facilmente o México por 4-1 (golos de Laurent, que ficou para a história como o primeiro marcador de todos os mundiais, Langiller e Maschinot -2 – contra o de Carreño). Contrariando a ideia de entusiasmo que invadira o país, apenas cerca de mil pessoas estiveram presentes o que deixou Jules Rimet profundamente frustrado. O Grupo 1 era formado por França, México, Argentina e Chile. Os restantes resultados seriam os seguintes: Argentina, 1-França, 0; Chile, 3-México, 0; Chile, 1-França, 0; Argentina, 6-México, 3; Argentina, 3 – México, 1. Com três vitórias em três jogos, os argentinos passaram com uma perna às costas e estabeleceram-se, tal como se esperava, como um dos grandes favoritos à vitória final.
O Grupo 2, um dos amputados, decorreu desta forma: Jugoslávia, 2-Brasil, 1; Jugoslávia, 4-Bolívia, 0; Brasil, 4-Bolívia, 0. Os canarinhos ainda não metiam medo nem ao gato, e os jugoslavos seguiram em frente.
O Grupo três, também só tinha três equipas: Roménia, 3-Peru, 1; Uruguai, 1-Peru, 0; Uruguai, 4-Roménia, 0. Os anfitriões cumpriam o seu dever e, finalmente, começava a sentir-se um formigueiro nervoso a percorrer a populaça.
O Grupo 4, e último, teve Estados Unidos, Paraguai e Bélgica, e terá sido o mais surpreendente: Estados Unidos, 3-Bélgica, 0; Estados Unidos, 3-Paraguai, 0; Paraguai, 1-Bégica, 0. As meias-finais seriam disputadas muito convenientemente entre Uruguai e Jugoslávia e entre Argentina e Estados Unidos. Tudo se encaixava para uma final Uruguai-Argentina, peleja de uma rivalidade rija, e que poria frente a frente, dois dos finalistas do último Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos. Assim foi. Tudo se resolveu num pró-forma. Perante 93 mil pessoas absolutamente histéricas, o Uruguai despachou a Jugoslávia por 6-1, e frente a 80 mil espectadores, a Argentina goleou os Estados Unidos pelo mesmo resultado. Não havia jogo para o terceiro e quarto lugar. O terceiro classificado seria designado como o derrotado pelo futuro campeão do mundo. Apesar disso, os capitães de ambas as seleções, Tom Florie pelos Estados Unidos e Milutin Ivkovic, pela Jugoslávia, receberam medalhas de bronze.
No dia 30 de Julho havia contas a ajustar no Estádio Centenário. Dois anos antes, o Uruguai garantira o título olímpico (e a alcunha de Celeste Olímpica) ao bater a Argentina por 2-1 em Amesterdão. Milhares e milhares de adeptos argentinos desembarcaram logo pela manhã bem cedo em Montevidéu depois de atravessarem o estuário do rio da Prata de ferry-boats. Gritavam a plenos pulmões: «Victoria o muerte!!!». A confusão que se instalou na zona portuária – mais de 1600 armas de fogo foram confiscadas – foi de tal ordem que muitas centenas deles nunca conseguiram chegar ao Centenário que albergou, seguramente, bem mais de 93 pessoas, tal a forma como todos se apertavam uns contra os outros, obrigados a manterem-se de pé durante os 90 minutos. Os portões tinham sido abertos a partir das oito da manhã e o início do encontro, que foi dirigido pelo árbitro belga John Langenus – exigiu um esquema de segurança que metia um bote estacionado o mais próximo possível do estádio para o caso de ter de fugir com urgência – , estava marcado para as 15h15. A guerra psicológica começou logo na primeira reunião preparatória com ambas as partes a recusarem jogar com a mesma bola: seria utilizada uma na primeira parte e outra na seguinte. O ambiente fervia de entusiasmo misturado com uma certa raiva própria de vizinhos que declaradamente se antipatizavam.
De um lado e do outro, grandes jogadores do seu tempo e de todos os tempos: Nasazzi, Andrade (a Maravilha Negra), Carone, Cea, Iriarte, para os uruguaios treinados por Suppici; Della Torre, Monti, Suaréz, Stábile, Peucelle, para os argentinos liderados por Olazar. O estádio explodiu num grito uníssono quando, aos 12 minutos, Pablo Dorado abriu o marcador com um remate pífio. A revolta argentina foi imediata. Com um futebol de passe curto e continuado, atirou-se sobre o seu adversário, deu a volta ao resultado, e foi para o intervalo a ganhar graças aos golos de Peucelle (20m) e de Stábile (37m), o melhor marcador da prova.
Nasazzi, o grande capitão uruguaio, era uma coluna de nervos e músculos erguida no meio do terreno, a sua voz incitava os companheiros e empolgava o público. O Uruguai toma conta dos segundos quarenta e cinco minutos. Serão terríveis. Pedro Cea empata aos 58m. O Centenário ferve como um vulcão azul. Estremece até aos alicerces com a loucura que rodeia o relvado. Dez minutos mais tarde, Santos Iriarte faz o 3-2. A Argentina está perdida. A união entre o povo uruguaio e os seus jogadores é inquebrável. A um minuto do fim, Ector Castro, El Divino Manco, que não tinha um braço, faz o 4-2. O árbitro apita. O Uruguai é campeão olímpico e campeão do mundo! O dia seguinte será feriado. A festa dura pela madrugada.