Foi um telefonema de Duarte Lima para a Polícia brasileira, um mês e dez dias depois da morte de Rosalina Ribeiro – em que recusou de forma veemente ir ao Brasil prestar depoimento, além de ter dado explicações evasivas e contraditórias –, que levou os investigadores a começar a suspeitar do advogado.
O Nascer do SOL teve acesso à gravação do áudio dessa conversa, ocorrida no final de janeiro de 2010, entre Duarte Lima e Aurílio Nascimento, o comissário da Brigada de Homicídios que conduziu a investigação à morte de Rosalina Ribeiro, antiga companheira e herdeira do milionário Lúcio Tomé Feteira.
A gravação do diálogo entre ambos não foi incluída como prova no processo, por não ter sido autorizada previamente pelo Ministério Público – pelo que o comissário da polícia brasileira iria ser ouvido hoje para memória futura, mas a sessão acabou por ser adiada, depois de a defesa de Duarte Lima ter pedido a recusa da juíza, alegando que esta ao ter-se pronunciado sobre as medidas de coação já terá presumido que o advogado é culpado.
‘Só por carta rogatória’
Quando ainda se desconhecia o paradeiro de Rosalina Ribeiro (desaparecera na noite de 7 de dezembro de 2009), Duarte Lima começou por ser contactado por um outro inspetor. Invocou então que precisava de pedir à Ordem dos Advogados o levantamento do sigilo profissional para responder aos investigadores.
Em finais de janeiro de 2010, sabendo que o comissário Aurílio Nascimento o tentara contactar, é o próprio Duarte Lima quem lhe liga de volta. Aurílio aborda-o, salientando que, confirmada a morte da sua cliente, o problema do sigilo já não se colocaria. Mas Duarte Lima não vê o assunto do mesmo prisma: «Em Portugal não é assim. Tem de se fazer sempre o pedido à Ordem e, tal como eu falei com o inspetor Celso, eu irei fazer o depoimento em inquérito e seria útil informar sobre que matérias me querem ouvir».
Nascimento pergunta-lhe se estaria disposto a ir ao Brasil, mas Duarte Lima (que ali se deslocara várias vezes nos meses anteriores, para se encontrar «com clientes», que nunca identificou), diz que não tem «nenhuma previsão de uma deslocação» àquele país: «Tem de ser por carta rogatória».
Nascimento pergunta então como ficam os interesses de Rosalina em Portugal e no Brasil, e se ele ia continuar com o caso. Duarte Lima – que assegura ter devolvido à sua cliente a procuração para a representar, um documento que nunca foi encontrado – diz que não sabe ainda como ficam as coisas. «O problema é o seguinte: nós não sabemos se há testamento. Pessoalmente, não tenho conhecimento de nenhum testamento, o Dr. Valentim (Valentim Rodrigues, outro advogado de Rosalina) também não. Só mediante a apresentação da certidão de óbito no notário, aqui e no Brasil, se saberá se há ou não. No caso de não haver, os bens de D. Rosalina irão para o Ministério Público, ou seja, para o Estado português».
‘Combinámos tudo uma semana antes’
Num fax que enviara para a Brigada de Homicídios, a 12 de dezembro de 2009, Lima afirmara: «No passado dia 5 de dezembro, tendo conhecimento de que eu me encontrava em Belo Horizonte, a minha cliente D. Rosalina Ribeiro solicitou-me que me deslocasse ao Rio de Janeiro, para tratar de assuntos relativos a processos pendentes que lhe dizem respeito, designadamente os que correm em Portugal e no Brasil relativos à partilha do espólio do Sr. Lúcio Tomé Feteira».
O comissário, que lera este fax, pergunta então a Duarte Lima quando e como tinha combinado encontrar-se com Rosalina Ribeiro – e apanha-o na primeira contradição. Agora, o advogado muda as datas: «Uma semana antes. Eu tinha-lhe dito que ia ao Brasil e pediu-me imediatamente que reservasse tempo para estar com ela».
Recorde-se que Duarte Lima já estivera em Belo Horizonte entre 21 e 29 de novembro. Voltou lá a 6 de dezembro e deslocou-se ao Rio de Janeiro a 7, para se encontrar com Rosalina (quando ela morreu).
Durante esses 10 dias de novembro, nunca telefonou à sua cliente – tendo, no entanto, estado com o motorista, Wenderson Oliveira, na Praia do Flamengo, zona onde Rosalina Ribeiro tinha o seu apartamento.
No telefonema com Duarte Lima, Aurílio Nascimento quer então clarificar as razões pelas quais o advogado, tendo uma reunião marcada com Rosalina no Rio de Janeiro, desembarcara no dia anterior em Belo Horizonte, o que o obrigou a uma viagem de carro de mais de cinco horas. Duarte Lima esclarece: «Desembarquei e embarquei em Belo Horizonte porque fui lá tratar de assuntos de natureza profissional. Tenho lá outros clientes portugueses, mas sobre isso não posso falar».
A identidade desses clientes, que ajudaria à sua defesa, nunca foi revelada por Duarte Lima.
‘Não me lembro da rent-a-car’
Mas uma das questões que mais intrigou o comissário foi a sua falta de memória para uns assuntos, quando noutros a sua memória revelava-se cheia de detalhes.
Depois de Duarte Lima ter descrito que se deslocara de carro, de Belo Horizonte ao Rio De Janeiro, Nascimento pergunta-lhe qual a rent-a-car onde alugara o veículo. «Não me lembro do nome da empresa, teria de ver nas minhas notas, que não estão comigo».
Esta informação, recorde-se, nunca foi dada por Duarte Lima. Isto apesar de, nos três anos anteriores, ter recorrido à mesma rent-a-car (a Locacar) sempre que ali se deslocara.
‘Marcou encontro no quarteirão da casa’
O diálogo entre os dois homens nem sempre foi sereno. Duarte Lima desconfiou dessa pergunta e ripostou: «Deixe-me fazer só uma pergunta: qual é a natureza desta conversa? Eu estou a ser ouvido já em inquérito? Não estou a perceber!». O comissário sossega-o: diz que está com um homicídio nas mãos e quer apenas adiantar trabalho, dentro do que ele puder responder e que não seja sigilo profissional.
Como estratégia, Aurílio Nascimento repete de quando em quando as mesmas perguntas.
Duarte Lima dissera no fax que o encontro tinha sido marcado à porta do apartamento da vítima, na Praia do Flamengo, mas através dos sistemas de videovigilância do prédio e de outros edifícios, era visível que Rosalina andara a pé mais de dois quarteirões. Nascimento insiste e Duarte Lima dá um novo contorno à forma como a terá apanhado: afinal, tinham combinado que ele a apanhasse pelas 20h00. Desde o primeiro dia de dezembro que não se tinham voltado a contactar e Rosalina, esperou, no meio da rua, já de noite, a sua chegada: «Marcou no quarteirão junto da casa dela. Eu vi-a e ela viu-me imediatamente a chegar de carro».
O faro de polícia de Nascimento interrompe o discurso prolixo: «Ela sabia o carro que o senhor estava conduzindo?». Duarte Lima atrapalha-se, mas insiste: «Ela não sabia qual era o carro, mas eu via-a na esquina e, mal parei o carro, ela identificou-me imediatamente».
Nascimento passa então ao local onde terá decorrido o encontro. Pelo sistema de videovigilância, Rosalina dirigiu-se no sentido do Alcaparra, restaurante de luxo que costumava frequentar. Mas, Rosalina parecia querer fugir, na perspetiva do advogado, às suas rotinas. No fax dirigido às autoridades, Duarte Lima assegurara que a reunião ocorrera «num café, numa das ruas próximas da sua residência cujo nome não sou capaz de me recordar».
Nascimento já ouvira amigas próximas de Rosalina, conhecia-lhe os hábitos, sabe que naquele local é difícil estacionar e prega-lhe uma rasteira: «E conseguiu estacionar aí?». O advogado responde que sim, «tinha um lugar mesmo ao lado».
‘Ofereci-me para a levar a Maricá’
De seguida, passam para o motivo do encontro.
Duarte Lima invoca o processo que corria em Portugal, de disputa da herança de Tomé Feteira – e que era acompanhado, não por ele, mas por Valentim Rodrigues (o qual, segundo o Nascer do Sol apurou, nunca teve conhecimento da deslocação do colega ao Brasil e do referido encontro). Segundo Duarte Lima, a sua cliente pretendia o seu parecer «sobre um processo que estava a correr em Portugal – aliás, houve uma audiência logo a seguir, ainda em dezembro».
O encontro nem chegou a meia-hora, segundo diz. Rosalina comunicou-lhe que iria chamar um táxi que habitualmente costumava contratar – isto para se deslocar a Maricá, onde se iria encontrar com uma senhora Gisele. Esta versão já fora contrariada pela melhor amiga de Rosalina, Rosemary Spínola, brasileira, a quem Rosalina recorria sempre que precisava de um motorista de confiança e que nesse dia apenas lhe referira que se iria encontrar com uma pessoa de confiança de Duarte Lima.
Lima contra então que lhe ofereceu os seus préstimos: «Disse-lhe que não tinha compromissos, ofereci-me para a levar e ela aceitou». E foi no percurso do Rio para Maricá que Duarte Lima assegura que ela quis ouvir a sua opinião sobre o interesse da tal Gisele em comprar o seu direito de herança – para o qual, aliás, já tinha outro interessado, Arlindo Guedes, que arrendara a Olímpia Feteira (filha do magnata), uma fazenda em Maricá para exploração de areias.
«Tanto quanto pude perceber, tinha tido conversas com Arlindo que queria, inclusivamente, vir a Portugal falar com os seus advogados e também tinha tido várias conversas com Gisele que até tinha recebido em Portugal e tinha uma proposta em valores para a compra do seu direito de herança. A minha posição em relação à venda era de reserva. Mas em relação a isso só posso falar com o levantamento do sigilo profissional».
O comissário intervém: segundo já afirmara Arlindo, Rosalina dissera-lhe que ele tinha a preferência no negócio; porque iria ela, então, ao encontro de outra candidata que nenhum dos amigos conhecia? Duarte Lima balança: «Eu não sei se ela foi vender, mas tinha uma proposta de compra».
‘Usou telemóvel para falar com Gisele’
Duarte Lima reitera então que nunca estivera antes em Maricá (só na semana passada, recorde-se, na RTP, é que o advogado assumiu pela primeira vez que estivera lá próximo, em Saquarema, na véspera do encontro com Rosalina, onde esta seria encontrada morta).
Mas Nascimento – com 35 anos ao serviço da Polícia – fica mesmo abismado é quando Duarte Lima lhe garante que Rosalina usara durante a viagem um telemóvel pré-pago para avisar Gisele que estava a caminho. Nesta altura, o comissário ainda não tinha as análises do tráfego dos telefones que Duarte Lima usou no Brasil, mas já obtivera os da vítima – onde constatara que o último telefonema para o seu advogado ocorrera seis dias antes do encontro entre ambos e fora efetuado do seu telefone fixo, pois nessa estada no Rio nunca utilizou telemóvel.
Desta vez, segundo narra o ex-líder parlamentar do PSD (e ao contrário do que fizera com ele, com quem marcara um encontro em plena rua, seis dias antes, e sem se terem voltado a comunicar entretanto), Rosalina teria ligado do carro para Gisele, que a esperava: «Ligou-lhe a dizer que estava a caminho, por um telemóvel de carregamento».
O que mais intrigava o comissário era o facto de ninguém das relações próximas de Rosalina saber que esta se iria encontrar com Duarte Lima naquele dia. Pelo contrário, as amigas tinham contado que ela lhes dissera que ia ter uma reunião com alguém indicado por Lima e que este lhe pedira reserva sobre esse encontro.
Nascimento coloca-o perante essa perplexidade, que Duarte Lima parece também não entender: «Foi ao contrário, ela é que me pediu confidencialidade, mesmo quando lhe disse que pelo menos o seu advogado no Brasil deveria ser avisado sobre a minha deslocação».
‘Só pode ser coisa de profissionais’
Há situações em que a memória do advogado é mais fértil do que outras. Questionado sobre as coordenadas do encontro com Gisele, em Maricá, descreve ao pormenor: «Quando ligou para Gisele, ela disse-lhe que estava com o carro um pouco antes do hotel Jangada, do lado direito, num Honda cinzento, com os piscas ligados. Era a rua Álvares qualquer coisa…». Também é rigoroso na descrição da mulher: «Era de estatura mediana, não tinha mais de 1, 65 m, cabelo loiro, liso. Vestia um casaco escuro, com calça e camisa branca, e usava uns óculos com aros grossos. Teria, no máximo, 45 anos».
Gisele, que teria sido, então, a última pessoa a ter estado com Rosalina em vida (ou mesmo, nesta perspetiva, a presumível autora do homicídio), não terá receado deixar uma testemunha deste encontro.
«Rosalina reconheceu-a logo, apresentou-me como um amigo de Portugal, disse-lhe o meu nome e o nome dela. Não estive mais de um minuto, minuto e meio com elas» – disse Duarte Lima.
Uma nova pergunta do comissário deixa de novo o advogado em alerta. Questionado sobre se, de seguida, voltou direto ao Rio, o advogado repete: «Não estou a perceber a natureza da nossa conversa. Esta não é uma conversa para ter no inquérito?». Mas acaba por confirmar o seu regresso imediato ao Rio (isto ao contrário do que disse agora, à RTP, em que tentou justificar as multas que nessa noite apanhou, a mais de 90 km/hora, um nada antes da apertada curva que dá entrada para a cidade de Maricá, pelas 21h38, e no sentido contrário, de quem vem de Saquarema, pelas 22h37, dizendo que terá jantado na cidade, numa pizzaria, e só depois regressou ao Rio).
E quando o comissário o inquire sobre quem poderá beneficiar com esta morte, Lima lança algumas farpas: «A única coisa que havia aqui era a necessidade de ela dar resposta a um contrato sobre a exploração de areias na fazenda de Maricá, que a preocupava. Disse-me que o tinha na sua casa do Rio, mas nunca o vi».
No final, Duarte Lima acaba por se oferecer para pedir à Ordem dos Advogados o levantamento do sigilo profissional, de forma a ser rapidamente ouvido em inquérito – o que nunca veio a acontecer, apesar de estar confirmado o seu pedido oficial, do qual nunca se soube o douto parecer.
Com a promessa de que tudo iria fazer para colaborar com as autoridades, e depois de o comissário agradecer, visto tratar-se de crime por ele considerado hediondo, Duarte Lima remata: «Só pode ter sido coisa de profissionais, não é?».