DOHA – Exactamente às 5h57 minutos da última quarta-feira o canto do muezzin entrou pela janela do meu quarto chamando para a primeira oração do dia que bate certa com o nascer do sol: «Al illaha ill Allah wa Mohammad Dur-Rusullullah…». Pois, Allah é o único, e Mohammad o seu profeta. Nós gostamos de lhe chamar Maomé. Ou Mafoma, se for para meter toucinho ao assunto. Mafoma: significa, segundo o dicionário, cara feia. Não tenho assim presente, de repente, o focinho do fulano, mas se não era nenhum Apolo também não devia ser nenhum Homem Elefante, com o perdão de John Hurt, que o interpretou no filme de David Lynch e é o típico gentleman inglês, agradável até nos tiques, que se aqui estivesse, recolher-se-ia ao fresquinho do seu quarto de hotel e mandaria o seu valet dar umas voltas por ele, tal e qual Philleas Fogg do Júlio Verne com o seu criado Passepartou. Dou o resto da noite como perdida. Vendo bem, que noite? Então se o homem da reza já inaugurou o dia vou continuar a chamar-lhe noite? Um tema que posso debater comigo mesmo pois tenho vivido praticamente na escuridão desde que cheguei, há seis dias. Seis dias e mil e uma noites, parece-me enquanto esfrego os olhos e regresso à tarefa infinita do qwert. Sobe-me à memória, muito renitentemente, uma musiquinha irritante de um ainda mais irritante Pepeu Gomes (mas por diacho me fui eu lembrar disto!?): «Mila! Mil e uma noites de amor com você…». É de dar com um homem em maluco! Vocês sabem. De repente rebenta-nos dentro da cabeça o ritmo ou o batuque e fica lá durante horas e horas, como um cheiro mau que nos persegue mal acabamos de pisar caca de cão no passeio. «Mil e uma noites, trá, lá, lá…». Irra! Peçonha autêntica. Ia a falar de Mafoma e perdi-me… Mas volto ao assunto, já, já, desculpem, mas com a adrenalina de escrever páginas atrás de páginas tenho tendência para me distrair, ainda por cima se escolho escrever numa mesa de café enquanto vejo gente a andar de um lado para o outro, nos seus afazeres. Podem julgar que o Campeonato do Mundo ocupa a vida dos cerca de 2 milhões e 900 mil habitantes do Qatar, mas não é bem assim. Ocupa a minha e já me chega, é para isso que me pagam ao fim do mês. Tenho sempre um cerco cuidado quando uso o termo qatari – definamos assim um natural deste lugar que, curiosamente, contei-o aqui nestas páginas um dos últimos fins-de-semana, é o único do Golfo Pérsico que os portugueses resolveram desprezar pois há vestígios de fortes erguidos por nós em todos outros menos aqui. Uma coisa são os naturais (só 333 mil) e outra são os que cá vivem. Há, segundo os censos de 2021 do Banco Mundial, 700 mil indianos, 400 nepaleses, 400 mil bengalis e 300 mil egípcios, por exemplo, o que faz dos qataris genuínos apenas a quarta das 55 nacionalidades residentes. Cinquenta e cinco! Por extenso e com ponto de exclamação! Talvez desta forma se consiga perceber porque é o governo do emir Tamin Bin Al Thani tão cioso na atribuição da cidadania aos que, na sua maioria, vieram para cá trabalhar na construção civil, o maior negócio das Arábias a seguir ao do petróleo e que arrancou, precisamente, quando o ouro negro passou a valer mais do que o ouro amarelo que não tardou a vender-se nos suks a preço da tâmara mijona, se é que ela também se predispõe a isso. Era o bom e o bonito se, de um dia para o outro, todos fossem qataris de direito completo. Nanja, que os Al Thani (são uma dinastia) não vão nessa assim com facilidade. Não vim para Doha, e para as cidades que a rodeiam como uma teia que, adivinha-se à primeira olhadela, acabarão por abraçar definitivamente a capital numa espécie de urbe gigantesca (ou não tão gigantesca quanto isso já que das fronteiras para dentro o Qatar só possui 11.571 km2) para tomar as dores do povo cá do sítio. Mas também me deixa encanitado a forma como toda a gente em Portugal, de há uns meses a esta parte, desatou a dizer do Qatar aquilo que Mafoma nunca foi capaz de dizer do toucinho. Ah! Eu bem me parecia que acabaria por lá chegar… Não me lembro assim muito bem o que é que Mafoma terá dito do toucinho, mas deve ter sido muito mau porque nem cheirá-lo. Carne de porco é um veneno para esta gente e, se voltarmos a pôr a razão à frente da emoção, percebe-se porquê. É de todas as carnes a menos resistente aos efeitos do calor e a que provocou, durante séculos, mais doenças transmitidas aos humanos. Os árabes não andam aqui desde ontem, já cá estavam muito antes do Gama ter atracado em Calecute e muito antes de o Albuquerque os aterrorizar como ninguém, cortando-lhes narizes, línguas e mãos, numa tentativa de se tornar tão temido e tão odiado que ninguém ousasse fazer-lhe frente. Percam algum tempo a ler um livro de textos seleccionados pelo dr. Anísio Franco e publicado pelo Centro Nacional de Cultura em 2009 – Afonso de Albuquerque e o Golfo Pérsico. Eu gostei. E esclareceu-me em muitas questões que envolvem esta nossa particular animosidade para com os árabes que vem do tempo de outro Afonso bem mais antigo, o que se tornou I Rei dos Portugueses, com bula papal e tudo para outorgar o assunto como deve ser, aquela Manifestis Probatum com a qual encheram a cabeça da criançada do meu tempo. Vem tudo a propósito neste mundão de Deus ou de Allah ou de Buda, escolham os senhores que não sou muito dado a crenças. Faz alguma confusão aos europeus, que passaram pelos terrores religiosos da Idade Média, que os árabes confundam muito a religião com a política, mas isto é apenas uma crónica, para alguns a parente mais pobre do jornalismo, um bocadinho maior do que as outras. «Ah, bom! E quanto ao futebol?», estarão neste momento a perguntar alguns dos que me leem. Tem o seu lugar na História, a seu tempo, como uma das maiores manifestações culturais da atual Humanidade, por muito achacadiça que esteja, e já lá vou. Também por causa do futebol se escreveram e têm escrito algumas aleivosias sobre os árabes. Os Nossos Amigos Árabes, como deixou, igualmente em forma de livro, o meu saudoso tio António Camilo Alves, uma das pessoas mais cultas com as quais tive o privilégio de ir crescendo. A morte levou-o cedo. A morte não respeita ninguém.
Ah! Os perturbantes turbantes!
O meu tio António chamou-lhes nossos amigos e era assim que os devíamos ver. Infelizmente, por uma dificuldade intrínseca de separar o que é árabe de muçulmano e por um contágio preocupante com tudo o que provém dos maiores exportadores de esterco cultural do planeta, os Estados Unidos (certo!, a expressão é forte, também nos dão material de incomparável qualidade, mas vamos ser sérios, há mais portugueses a saberem quem é o Steven Seagal ou o nosso magnífico madeirense John Roderigo Dos Passos, mesmo assim grafado, que nos ofereceu maravilhas como Manhattan Transfer – não, não é da banda do Tim Hauser, outro interessante produto norte-americano que estou a falar – ou o Paralelo 42? Vá lá, respondam sem rodeios, porque de onde vem o mal também costuma vir o bem, como diz o povinho de Santa Marta de Penaguião a Chão de Meninos), que criaram uma aversão a tudo o que é árabe com a mania de que são os cowboys do Mundo Ocidental e que, depois de terem enfiado com os Sioux, os Navajos, os Comanches, os Apaches, os Cherokees e por aí fora numas degradantes reservas onde gerações inteiras se entregaram aos vícios do álcool e dos estupefacientes resolveram andar por toda a parte, como se alguém lhes tivesse outorgado uma bula, a representar os interesses de todos nós nem que seja preciso destruir países com a História milenar do Iraque ou do Afeganistão. Como eles próprios não têm História, ou têm apenas 200 anos dela, e são uns adolescentes carregados de acne em comparação com os sumérios ou os assírios, ou nem isso, arrasaram com a Mesopotâmia com a ignorância bronca de quem desconhece o berço da civilização. Pronto! Foi um desabafo. Não vou trazer para aqui uma discussão sobre esse conceito tão lato do que são os Direitos Humanos porque teria de passar dos índios aos inuítes e não sei onde é que iria parar. Importante é estabelecer que os humanos ainda não são (estão quase, mas não são) como os porcos do Orwell, uns mais humanos do que outros, se não ficamos neste ramerrão até ao fim das nossas já tão sobrecarregadas vidas e, apesar de estar no sítio certo para elas, não vou andar aqui com salmodias. Conheço muitos países árabes, senti-me sempre bem em todos, como me sinto neste e é a segunda vez que cá venho. Claro que, na primeira, ainda não andava a tropeçar em estádios como agora. Cresceram como cogumelos, faz impressão a muito boa gente que considera o dinheiro mal empregue, enfim, o dinheiro é deles, fazem com ele o que quiserem, não vejo ninguém preocupado com o que foi feito dos estádios enormes por entre os quais saltitei há 20 anos, no Mundial de 2020, na Coreia do Sul, e também não muita gente preocupada com os elefantes brancos que temos na sala de visitas de Aveiro, de Coimbra ou de Loulé, aí plantados nos alegres dias do País Triste de 2004. Alguns destes são de encher o olho: um em forma de ghafyia, aqueles chapelinhos que todos os homens e rapazes usam nos países deste Oriente Médio, como o de Al Thumama, outro em forma de turbante, como em Al-Wakrah, outro ainda em forma de casco de dhow – como se chamam os velhos barcos típicos do Mar Arábico -, o de Lusail, lá para o Norte, o mais setentrional de todos, lugar onde os qataris se preparam para construir a capital do futuro e onde os arranha-céus parecem ter sido desenhados por arquitectos mais malucos do que o Chapeleiro Louco da Alice, ora em cilindros mais estreitos em baixo do que em cima, ora em forma de chifres, ora circulares e com um buraco no meio como um olho. Há notícias que dois já estarão vendidos para a Austrália, isto é, desmanchados em peças tipo Lego e reconstruídos para lá do sol nascente, que vem mais a propósito, já que tenho o mar a Oriente. Eis um bom negócio. E não vale a pena dizer que os árabes não têm jeito para isso, este é o centro da contrafação, como espreito agora mesmo, no bairro de Al Jadeeda os moçoilos impantes com as suas camisolas às risquinhas aldrabadas da Argentina, aquela que parece ser unanimemente preferida pelos jovens das ruas de Doha. Recordo-me das noites. Recordo-me sempre das noites, tenho uma memória danada para noites, mesmo que seja aquela porcaria das «mil e uma noites de amor com você, trá, lá, lá», da qual não vou conseguir livrar-me nos tempos mais próximos. Numa delas fomos para a borda do deserto. As horas foram passando quase sem se dar por elas, o sol começou a pôr-se devagar à medida que a Terra rodava e os camelos regressaram a casa onde os esperavam os molhos de alfafa. Aqui, agora, também entardece. Uma espécie de maldição escura, ainda há pouco fui acordado pelo muezzin e ele já vai na sua quinta e última oração do dia, todas elas são para Allah, foi assim que ele ordenou aos seus servos. Só porque era Deus e podia e então fazia tudo o que queria como todos os Deuses maiores ou menores e ele até é dos mais estimados. Os indianos vão começar a assar kebabs e o cheiro agradável da carne grelhada vai espalhar-se pelo ar que só pelo meio-dia, hora da sombra mais curta, fica abafado de calores. É um cheiro que acicata a fome e de acordar qualquer morto que se tenha deixado, num tempo qualquer, apanhar por uma tempestade desta areia que parece pó e ficado soterrado nalguma colina de aspeto inofensivo penteada por uma brisa baixinha que lhe desenha estrias à superfície. Misturo o que vou vendo e o que lembro; a dança frenética de um ventre cujo umbigo não tem sossego, o umbigo da belly dancer que rodopiava insubmisso ao sabor dos movimentos retorcidos da odalisca. Havia gente sentada no chão, de pernas cruzadas, a puxar o fumo adocicado do shisha, o cachimbo de água ao mesmo tempo que sorvia chávenas de chá carregado de açúcar e céu se enchia lentamente de estrelas com a ondulação das dunas a perder a nitidez para ficarem apenas as silhuetas negras recortadas de encontro a um horizonte preto de azeviche como se alguma tesoura irrequieta se entretivesse em brincadeiras de papel de seda. «Vistazinha catita!», como diria o nosso Teodorico Raposo, o Raposão d’A Relíquia, «português d’aquém e d’além mar, vindo das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho» com a missão de recolher, lá mais para norte, para a Judeia, uma recordação inesquecível para a sua hedionda titi. Neste momento exato não vejo estrelas, só tenho olhos para letras e letras e mais letras. Perturbantes turbantes, olhos desenhados de mulheres, o movimento dos automóveis na avenida no caminho para casa onde continuarei a escrever pela madrugada. «Trá-lá-lá-lá…». Francamente! Por amor de Deus! Ou de Allah! Deixa dormir a Scheherezade! (A Pérsia também não fica longe).
Para lá dos sonhos…
Eu bem disse que dava a noite como perdida e já era manhã quando o disse. Mil e uma noites de Qatar em apenas seis dias é obra. Até neste país de obras que nunca acabam, há sempre mais um baldio terraplanado a ser ocupado pelas aranhas gigantes dos caterpillars, contentores que se amontoam, e foi por causa do número de contentores inicial das obras que ergueram o estádio no qual Portugal defrontou o Gana na sua estreia deste Campeonato do Mundo, que se chama Stadium 974, que o Qatar passou a ser o alvo preferencial dos defensores dos Direitos Humanos (têm toda a razão, tinha prometido não voltar ao assunto, mas é quase como a porcaria do «trá-lá-lá», está sempre a vir à superfície). Foi por causa das obras que os indianos começaram a chegar aos milhares, mas não vieram metidos em contentores como muitos dos africanos que atravessam o Mediterrâneo num sonho utópico de uma Europa que só existe mesmo em sonhos, e depois deles vieram outros e outros, 55 nacionalidades, é muita nacionalidade para este paísinho admirável que tem o tamanho de um terço do Alentejo e de gente educada como no Alentejo que faz questão de nos cumprimentar quando nos cruzamos nas ruas: «Salaam Aleikum!». Vieram e ainda cá estão. Perseguem a sua luta de vidas melhores do que nas aldeias de pescadores de Kerala – o Estado mais a sul da Índia que deu mais imigrantes ao Qatar. E vão ficar porque já há novas gerações que aqui nasceram e aqui estudam e não entendem a vida noutro lugar se não aqui, é assim com os emigrantes, mas nós somos um país de emigrantes e não sabemos o que se passou com os nossos na sua demanda quase irracional de Paris e Luxemburgo?
António Ferro e Drummond gostavam de futebol
A primeira vez que Portugal defrontou uma seleção africana foi no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 1928 e calhou-lhe um adversário árabe: o Egipto. O Egipto que na qualificação para este Mundial era treinado pelo Carlos Queiroz que agora surgiu cá com o Irão e foi eliminado nas grandes penalidades do play-off pelo Senegal. Fascinada pelo glamour de noites líricas à beira Nilo, a imprensa portuguesa exultava com aquela «equipa de paxás de ataque velocíssimo no qual pontificam quatro negros». Parece que hoje já não se pode escrever negros. Toda a gente se ofende por tudo e mais alguma coisa. O futebol ganhara tanta ou tão pouca importância que o insuspeito Diário de Notícias mandou para a Holanda um homem de pena mais enfunada do que vela de galeão, para não sair da relíquia que é A Relíquia. Chamava-se António Ferro, o repórter que entrevistou Mussolini por três vezes e foi o chefe de propaganda política do Estado Novo, alcandorando-se a Director do Secretariado Nacional de Informação e sendo um dos maiores criadores do mito de Salazar. Querem orgulho pátrio derramado por terras da estranja? Leiam-no, é uma peça e tanto! De estalo! «Tarde primaveril, tarde azul, tarde portuguesa que os nossos jogadores trouxeram na bagagem juntamente com a nossa bandeira… No estádio há vinte mil pessoas, vinte mil almas – almas de todas as raças – que pensam em Portugal, que têm os olhos voltados para nós, que se lembram da nossa situação no mapa, que reconhecem a nossa independência na independência da nossa equipe… (…) Comove-me a serenidade conseguida, voluntariosa, destes simpáticos portugueses, exuberantes e sentimentais, que choraram meia-hora antes, no seu hotel, com temor de não honrarem o seu país, que ouviram o fado como o toureiro ouve missa antes da corrida, que vieram para o estádio alegremente, mas com lágrimas nos olhos, já a cantar o hino da sua querida pátria. (…) Na minha carteira escolar, o meu coração treme como se estivesse na iminência de ser chamado à lição, de ser examinado. Sinto-me português, nervosamente português. Olho a linha que separa os dois campos, o terreno dos nossos e o terreno dos chilenos, como se olhasse a linha da nossa fronteira, como se a nossa independência estivesse ameaçada. (…) E é então que se dá o milagre, o milagre eterno da nossa raça, o milagre de Aljubarrota, o milagre da Ilustre Casa de Ramires, o milagre da vitória que nasce da própria derrota, que nasce do amor-próprio, do orgulho da nossa raça, que nasce da nossa alma que pode sempre mais do que o nosso corpo. Fomos sempre assim, grandes e pequenos pela mesma razão… Descemos para subir, afundamo-nos para voar! Só achamos que vale a pena quando parece que não vale a pena… Temperamento arriscado, perigoso. Aljubarrota, sim! E Alcácer-Quibir?». Faltava este nome maldito em terra amaldiçoada das Arábias. Para aqueles que perguntavam há pouco – «e o futebol, onde está o futebol?» – o texto do grande entrevistador de ditadores – também entrevistou Primo de Rivera, teve uma entrevista marcada mas malograda com Adolf Hitler e publicou uma série delas com o homem de Vimieiro, Santa Comba Dão – é um bom exemplo de como o futebol tem servido para tudo e mais um par de botas, nesse tempo ainda não enviadas para Angola em Força mas recentemente saídas das trincheiras da Flandres, nem que fossem as que eram calçadas pelos sobreviventes da carnificina de La Lys.
Não, não é Ronaldo a primeira cara portuguesa que vemos quando desembarcamos no aeroporto de Doha. É da de Luís Figo em outdoors gigantescos de uma marca publicitária. O meu velho amigo Daffrallah Mouhaden que um dia quente de Fevereiro, em Túnis, em 1994, durante uma Taça de África, recrutei para correspondente de A Bola no Golfo Pérsico, fica com a íris em forma de cifrões como nos bonecos animados: «Quanto é que ele recebeu por isto!?», pergunta abismado enquanto a cara do Luís se repete ao longo da Avenida Al Thani. Mas eu sei lá, agora vou perguntar-lhe uma coisa dessas?! Faz parte. É ao dinheiro que o futebol também pertence, e os Mundiais sobretudo. Mas alguém vai querer questionar os gastos de organizações com tal gigantismo? Vão querer saber o que se passa nos bastidores dos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris? Sabem a razia que os Jogos Olímpicos de Londres provocaram nos corredores do vetusto Parlamento do honestíssimo Reino Unido? Sim, estamos aqui para ver a bola, como diria o meu bom companheiro António Florêncio, mas isso não nos pode desviar de uma realidade que nos faça andar de lupa na mão atrás de qualquer funcionário público que caia na asneira de aceitar um convite para ver um jogo na bancada VIP da Luz, de Alvalade ou das Antas – esta então sempre um local pródigo em juízes desembargadores! Foi preciso que o tal objeto redondo começasse a rolar e que o Presidente da República resolvesse dar um saltinho até este País das Maravilhas para que começássemos todos a querer espreitar para lá do espelho de Lewis Carroll. Voltem atrás e leiam o António Ferro. Em 1928! Perdemos com o Egipto (1-2, golo de Pepe, o Cometa Azul de Belém que morreu por causa de uns enchidos envenenados – bem dizia Mafoma mal do toucinho!) e vingámo-nos depois, quase Natal (algo que aqui não há, graças a Deus – posso escrever isto???), no dia 23 de Dezembro de 1955, a primeira vez que a seleção nacional saiu da Europa e jogou no Cairo vencendo gloriosamente os paxás por 4-0!
Agora, depois de já ter andado pelo mundo todo, a equipa de Portugal chegou ao Qatar rodeada de sonhos de grandeza. E por que não? Este também é o lugar apropriado para sonhos de grandeza, Mil e Uma Noites ou menos, na beirinha do deserto com o mar, brotou do nada, num país minúsculo, uma espécie de Singapura que quer estar à altura dos vizinhos do Dubai ou de Abu Dhabi. É um sonho grande e justo. Vidas foram tristemente perdidas para o cumprir tal como as lágrimas salgadas d’A Mensagem são lágrimas de Portugal por ter querido o mar acima de tudo, acima das mães que choravam e das noivas que rezavam. Leiam o Ferro, mas também não é preciso fazer milagres, como o milagre eterno da nossa raça, o milagre de Aljubarrota, o milagre da Ilustre Casa de Ramires, o milagre da vitória que nasce da própria derrota… Já estou como o outro que, farto da conversa retumbante do advogado, lhe gritou em plena e solene sala de Tribunal: «Ò homem! Deixe lá Cartago e o Catão! Aqui trata-se do meu sobrinho! Fale do meu sobrinho!!!». Falemos então de futebol e do Ronaldo, das escolhas do engenheiro Fernando Santos e da bola que entra ou se recusa a entrar nas balizas que os nossos jogadores terão à sua frente e nas suas costas. E falemos do Qatar e de um povo que é feito de uma quase impossível mistura de povos no espaço que mal ultrapassa a palma de uma mão. Com a certeza que tenho há muito, muito tempo, com quase quarenta anos de jornalismo de arrasto, que escrever sobre futebol é escrever sobre o homem e as suas vontades, sobre os seus desejos as suas glórias e os seus opróbrios. Futebol é Drummond de Andrade: «Futebol se joga no estádio?/Futebol se joga na praia/futebol se joga na rua/futebol se joga na alma/A bola é a mesma:/forma sacra para craques e pernas de pau/Mesma a volúpia de chutar na delirante copa-mundo/ou no árido espaço do morro/São voos de estátuas súbitas/desenhos feéricos, bailados de pés/e troncos entrançados/Instantes lúdicos:/flutua o jogador, gravado no ar/- afinal, o corpo triunfante da triste lei da gravidade». Sim, futebol também pode ser falar do seu sobrinho. Entretanto o muezzin canta outra vez do alto do minarete da mesquita aqui ao lado…