LUSAIL – Noite morna, cá para o norte do Qatar, no estádio que vai receber a final deste Campeonato do Mundo e, em seguida, será transformado no maior centro comercial deste pequenino país para aí com um terço do Alentejo. No final da tarde, umas horas antes de ocupar o meu lugar na bancada de imprensa, vi pela televisão a zanga de meu bom amigo Paulo Bento e da sua Coreia do Sul, derrotados pelo Gana por 2-3, com o árbitro a encerrar embirrantemente o jogo antes de um canto ser marcado contra os africanos, mas é algo que está dentro da sua autoridade, diz a lei que só num caso de penalti está obrigado a ir para além do tempo que considerar necessário para descontos. O Paulo acabou expulso e irá, na sexta-feira, jogar o restinho que ainda lhe sobra de esperanças contra nós, no Estádio da Cidade da Educação, às 15h00 de Lisboa. Restava, então, saber quão confortavelmente iria a equipa de Fernando Santos para um embate que, há pouco mais de 20 anos, em Incheon, na Coreia do Sul, ficou para a história como um dos momentos mais bisonhos da história da seleção nacional. Lembro-me bem. Até demasiado bem. Estava lá e decorei os 90 minutos do princípio ao fim. Sem alegria infelizmente, quando um simples empate nos servia e nos vimos derrotados (0-1) após duas expulsões pouco aceitáveis. Ontem, se o empate também não era desprezável, havia a expectativa de como iríamos entrar no jogo – outro que traz recordações azedas depois dos oitavos de final de Sochi, no último Mundial (1-2). Passou-se menos tempo, mas não o relembro de cor. Presente em oito fases finais do Campeonato do Mundo (coube-me o privilégio de estar presente em seis delas), Portugal só em 1966 e em 2006 saiu da mediocridade, atingindo as meias-finais. Exige-se mais? Claro! Exigir não custa. E ficámos com o tal sabor mau na boca no final do Mundial da Rússia. Não é que tenha sido uma catástrofe mas ainda tenho a sensação de que poderíamos ter eliminado a Dona Celeste Olímpica e os seus dois filhos (Cavani e Suárez), como lhes chamei na altura, exactamente porque foram os dois avançados que destruíram a defesa do engenheiro com o seu futebol físico até não mais.
A porrada. Com um lateral mais atrevido como é Nuno Mendes (afinal não estava ainda em condições e teve de sair, em lágrimas, para entrar Guerreiro), Bruno Fernandes pôde chegar-se àquele que é o posto que se lhe encaixa como uma luva de pelica – mais no meio, fazendo de dínamo, com William e Neves a protegerem-lhe as costas. Algo que também obrigou Félix a fechar na esquerda. Dona Celeste tem, agora, um filho mais novo, Darwin, ao lado de Cavani, mas também três torres no meio do campo como são Bentancur (aos 32m foi por ali fora como um menino feliz a correr num campo de papoilas e teria feito golo se não fosse o instinto de Diogo Costa), Valverde e Vecino, ainda por cima com pés de belbutina. Se frente ao Gana demos de caras com um adversário essencialmente físico, voltávamos a entrar a perder no somatório de quilos e de centímetros. Claro que, com dois avançados com aquelas características, o Uruguai podia ficar mais atrás no campo e usar e abusar dos passes longos para a frente, dando mais metros de relva para Portugal trocar a bola. E trocar, trocou-a: de uma forma demasiado adivinhável, sem se capaz de verdadeiramente um movimento de surpresa que desenculatrasse a defesa sul-americana.
Partíamos do princípio que os uruguaios terão uma última jornada mais complicada do que os portugueses. Afinal, frente ao Gana, tivesse qual tivesse sido o resultado final do encontro de ontem em Lusail, jogarão cara a cara um lugar nos oitavos de final. E só com dois pontos apenas, entrariam nele em desvantagem, pelo que o empate não era bom. Aceitável igualmente que defrontar a Coreia do Sul com quatro pontos podia permitir ao conjunto do engenheiro seguir em frente com mais um empate – do Gana-Uruguai aconteça o que acontecer só pode sair um com quatro pontos ou mais. Enfim, no meio desta aritmética da qual a seleção portuguesa parece não quer libertar-se, como se fosse um vício, o jogo decorria, não pode dizer-se que empasteladamente, mas com entusiasmo muito reduzido. Os filhos de Dona Celeste – ontem vestida de branco que até parecia uma noiva – são danados para a porrada (há biqueiras de ferro na belbutina) e iam, aqui e ali, virando os nossos do avesso como se fossem pinos. O árbitro foi deixando andar e eles aproveitaram. Tal como Portugal parecia igualmente a estar disposto a aproveitar um ligeiro adiantamento dos adversários, agora com a defesa mais subida, o que não é muito bom para centrais velhotes como são os casos de Coates (32), Godín (36) e o ligeiramente mais novo Jimenez (26), todos batidos pelo lance de Bruno Fernandes (28), tirado a régua e esquadra, que deu o primeiro golo de Portugal (54m). Ronaldo ainda festejou mas a obra, desta vez, não foi dele. Alonso Lopéz percebeu que não ia lá só à porrada. Fez as mudanças que tinha a fazer.
Fernando Santos recuou a equipa, tirou Rúben e meteu Leão para que este corresse lá pela savana que se abria do lado esquerdo uruguaio. O jogo partiu-se. Iria repetir-se aquele fungagá que acontecera frente ao Gana? Suaréz e Gómez foram fazer de Cavani e Darwin. Pellestri atira ao poste. Estão 88 mil pessoas no estádio que se encheu sem darmos por ela. Pessoas dispostas a vibrar com um final no qual tudo está ainda em aberto. A defesa lusitana volta a abrir buracos, o meio-campo avança e já não recua, o Uruguai torna-se uma fera que ronda a sua presa, cheirando-lhe o medo. Medo é a palavra certa. Portugal tem medo e encolhe-se. Chegou o momento decisivo de mandar para o campo a peitaça de Palhinha, Matheus Nunes e Gonçalo Ramos. Mas desta vez Portugal não se desagrega. Parece ter músculo para opor ao músculo. Sofre mas isso é algo que o engenheiro já lhe ensinou há muito tempo. Bruno Fernandes arranja o penalti decisivo: já entrámos nos descontos e ele próprio converte o 2-0 (93m) porque Ronaldo já saiu. A selecção nacional está apurada para a fase a eliminar e ainda vê uma bola de Bruno bater no poste de Rochet. Sexta é dia sagrado para o Islão. Será dia de descanso em Al-Rayaan perante os rapazes de Paulo Bento. O destino vai-se cumprindo.