As dores dos uigures não costumam ressoar entre hans, a maioria étnica chinesa. As perseguições – ou genocídio, acusam países ocidentais – sofrida por esta minoria muçulmana são desvalorizadas como um mero episódio na guerra ao terror. Mas a semana passada, quando pelo menos dez pessoas morreram e nove ficaram feridas num incêndio em Ürümqi, capital de Xinjiang, foi diferente. Ao ouvirem relatos de como moradores acabaram devorados pelas chamas, após se depararem com saídas de emergência trancadas devido ao confinamento, surgiram protestos por toda a China, de Xangai a Wuhan, passando por Chengdu, Cantão ou Pequim.
Para lá da tragédia em si, está em causa um descontentamento mais profundo. Além das barreiras étnicas, todos os chineses sabem o que é sentir a sua vida limitada pela política de “tolerância zero” perante a pandemia. Ordenada por Xi Jinping, o “comandante em chefe da guerra popular contra a covid-19”, como gosta de lhe chamar a imprensa estatal chinesa.
Num país em que a vigilância e a censura ganhou uma sofisticação nunca antes vista, nem todos os que arriscam sair à rua têm atrevimento para criticar abertamente Xi. Mas “a política de ‘covid zero’ é decisão pessoal dele, portanto as manifestações têm-no a ele como alvo. Críticas à política de ‘covid zero’ significam críticas diretas”, frisa Luís Tomé, à conversa com o i.
Para este professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa, diretor do seu Departamento de Relações Internacionais e do OBSERVARE, estes protestos vêm estragar a festa de Xi Jinping. Ainda o mês passado obtivera o seu terceiro mandato como líder chinês, quebrando a tradição, sendo saudado como “grande timoneiro” – um título até então reservado a Mao Tsé-Tung – durante o congresso do Partido Comunista da China e recheando o topo da hierarquia de lealistas.
Na prática, “Xi Jinping saiu do 20.º congresso em ombros, mostrando-se claramente como ditador sobre o partido e o partido sobre o Estado”, salientou Tomé. Nem mesmo a estranha saída do congresso do seu antecessor, Hu Jintao, de 79 anos, que foi levado pelos braços enquanto elementos da sua fação do partido eram despromovidos, estragara o ambiente triunfalista.
Este é um momento em que o líder chinês “devia estar extasiado, com a China ainda mais centrada na sua grande figura e personalidade”, aponta o professor da Universidade Autónoma de Lisboa. Contudo, os protestos contra a “tolerância zero” à covid-19 “abalam-no de facto. E também abalam a sua imagem e do regime no exterior”, continua. “Para Xi Jinping é mau até porque ele gostava muito de estar a celebrar o resultado das eleições em Taiwan”.
Referia-se às eleições locais taiwanesas, no sábado, das quais o Partido Democrático Progressista (PDP) saiu em mau estado. O partido governante – composto por liberais com uma enorme desconfiança da China, que querem aumentar a autossuficiência deste Estado insular e reforçar os laços com os EUA e os seus aliados – centrara a campanha na ameaça chinesa, após Pequim ensaiar manobras militares e um bloqueio à ilha, no rescaldo da visita da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi.
Os eleitores não gostaram, deixando três das seis maiores cidades nas mãos do Kuomintang, o velho partido único de Taiwan, de orientação política nacionalista – no sentido de ser favorável à identidade chinesa – e que não põe de lado uma reunificação com a China, desde que isso não envolva estar sob um regime comunista. Aliás, venceram até em Taipei, elegendo como presidente da Câmara Wayne Chiang, bisneto do antigo ditador Chiang Kai-shek.
Já a Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, em tempos descrita pela Reuters como “a líder que se ergue contra a China”, demitiu-se do posto de líder do PDP, dada a escala do descalabro eleitoral. Somando isso ao recente reencontro entre Xi e Joe Biden durante cimeira do G20 em Bali, na qual se baixaram um pouco as tensões entre Washington e Pequim, parecia que Xi tinha o vento de feição. Até que os chineses começaram a sair à rua furiosos com um incêndio em Ürümqi, no distante noroeste.
Fúria contra as restrições Quando centenas de moradores de Ürümqi saíram à rua, esta sexta-feira, quebrando o confinamento imposto na cidade, tiveram o cuidado de cantar a ‘Marcha dos Voluntários’, o hino chinês, assim como ‘A Internacional’, enquanto marchavam contra a administração municipal, mostram vídeos divulgados nas redes sociais. Na China, uma coisa é protestar contra dirigentes locais, outra é desafiar o partido. Mas quando jovens montaram uma vigília em Xangai, por solidariedade com as vítimas do incêndio em Ürümqi, o tom já era outro, com alguns a atreverem-se a exigir a queda de Xi.
Ao longo dos dias seguintes, dezenas de milhares protestaram em Pequim, alguns erguendo cartazes em branco, vistos como uma crítica ao aparelho de censura montado sob a liderança de Xi. Em Wuhan, onde foi detetada covid-19, enfrentando um dos mais duros confinamentos no planta, dezenas de milhares de chineses “libertaram” bairros confinados, removendo as vedações instaladas ao seu redor, contou uma testemunha ao Financial Times.
Os protestos foram violentamente reprimidos, com a detenção até de um jornalista da BBC e de outro da Reuters. Suscitando críticas internacionais e estragando a festa de Xi, que talvez não consiga manter os chineses trancados muito mais tempo.