Conversou com Martinho Lutero, foi retratado pelo grande Albrecht Dürer e correspondeu-se com Erasmo de Roterdão. Teve uma vida cheia, mas a sua curiosidade omnívora acabaria por valer-lhe um processo na Inquisição. Damião de Góis é um dos dois protagonistas de A Torre dos Segredos (Bertrand Editora), de Edward Wilson-Lee, um professor de literatura medieval e renascentista que nasceu no Estados Unidos, cresceu no Quénia, estudou na Suíça e dá aulas no Reino Unido. O_outro protagonista deste livro é o poeta Luís de Camões. «Em vários sentidos são figuras complementares», diz-nos Wilson-Lee. «Damião teve uma vida muito feliz. Os amigos diziam todos que era um grande anfitrião – aliás, um dos prazeres de fazer este livro foi escrever sobre essas belas refeições, grandes almoçaradas. Já Camões era uma figura muito mais torturada, perseguida pelo azar, que sentia que o mundo estava contra ele». Mas o tempo jogaria a favor de Camões:_após a sua morte na miséria, conquistaria uma glória sem par, tornando-se o grande poeta nacional e Os Lusíadas a obra canónica da nossa literatura. Estas duas vidas paralelas, e as visões do mundo que lhes correspondiam, foram o tema de uma conversa com o autor em Lisboa.
A ‘torre dos segredos’ do título do seu livro é a Torre do Tombo, que ficava no Castelo de S. Jorge. O que sabemos realmente sobre este arquivo do Tombo quando Damião de Góis se tornou seu guarda-mor em 1549? Era mesmo uma torre?
Sim, era uma torre. O que sabemos sobre ela? Não tanto como sobre outros sítios. Um dos aspetos interessantes da Torre do Tombo é que, embora se tratasse, em vários sentidos, do primeiro arquivo global, com documentos provenientes de todo o mundo, era um sítio bastante humilde. Quando Damião de Góis assumiu o posto de guarda-mor, nem sequer sabiam onde estavam as chaves e havia infiltrações a pingar… Mas sabemos algumas coisas. Sabemos que havia uns bancos muito rudimentares e as pessoas punham-lhes sacos de lã em cima para serem menos desconfortáveis. E tinham começado a guardar alguns dos documentos mais importantes em caixas. Mas estava tudo muito pouco organizado, relativamente caótico.
Era um arquivo improvisado, quase?
Sim, mas Damião começou a modernizá-lo, a pegar nos documentos e a pô-los em caixas e arcas, onde hoje se encontram, e a fazer um inventário. Essa ideia do arquivo global foi uma das coisas que me interessaram quando comecei a investigar para este livro. Como se organiza toda a informação que existe? Antes disso, a maior parte dos arquivos eram assuntos muito locais, diziam respeito às propriedades dos reis ou coisa parecida. Mas, de um momento para o outro, havia que lidar com cartas da Pérsia, de Moçambique e do Brasil, da Índia e da China. Como se organiza esta informação? Obviamente, trata-se de uma história que tem muito a ver com o nosso tempo de globalização. De repente estamos ligados a todo o mundo. Como a internet organiza toda essa informação é uma das grandes questões da atualidade. Parte do meu interesse sobre a Torre do Tombo veio daí, de como a informação global flui.
Para si também deve ter sido um quebra-cabeças juntar, selecionar e depois organizar toda a informação que está no seu livro de uma forma que fosse apelativa para os leitores.
Sem dúvida. Uma das coisas fascinantes em relação às vidas de Damião de Góis e Camões é que, se as juntarmos, cobrem quase todo o globo terrestre. Como disse, isto partiu de um interesse intelectual sobre a ideia do arquivo global. Mas um livro só sobre isso podia resultar um bocado árido. Incluir Camões e Damião permite acompanhar as viagens deles por todos esses lugares e pensar como a história europeia, durante esse período, se relacionou com o mundo mais vasto. Essa é uma das razões por que Portugal é um dos lugares mais estimulantes – é uma charneira entre o que está a acontecer na Europa e o que está a acontecer no resto do mundo. Devido ao eurocentrismo que se impôs depois do início da Idade Moderna, tendemos a pensar a história europeia como uma coisa e a história global como outra. E raramente vemos as ligações entre elas.
Isso não está a mudar?
Esperemos que sim. A história global está a tornar-se uma tendência. Ainda assim, continuamos a pensar em temas como a Reforma ou o nascimento da ciência moderna como fenómenos exclusivamente europeus. Não pensamos que estas coisas estavam a acontecer ao mesmo tempo que os europeus encontravam culturas completamente diferentes na Índia, na China, na América do Sul, e no impacto que isso pode ter tido na ideia de modernidade europeia.
Damião de Góis escreveu uma descrição de Lisboa por volta de 1550. A cidade era, como já foi dito, uma espécie de Nova Iorque do século XVI?
Lisboa era de longe a cidade mais cosmopolita da Europa, tinha a população mais diversificada. Damião, quando era jovem, como pajem da corte deparou-se com turbantes da Pérsia, um rinoceronte da Índia, esculturas de marfim da África ocidental, panos de casca de árvore também de África, tecidos feitos com fibras de palmeira, tudo isto antes de sair de Lisboa.
Ou seja, já tinha visto muito do mundo sem precisar de sair casa.
Tanto na sua descrição de Lisboa como nos seus escritos sobre Espanha e Portugal uma das coisas de que mais se orgulha em relação a Lisboa é dessa sua natureza global. A quantidade de coisas vindas de todo o mundo que chegam à cidade. Isso incutiu-lhe a curiosidade e o interesse por outros lugares.
Ao mesmo tempo que havia essa azáfama, o comércio, o lado ‘luminoso’, Lisboa tinha também uma face mais sombria.
É verdade.
Que nos é descrita por Camões em duas cartas a um amigo.
Os escritos de Damião de Góis sobre Lisboa falam-nos todos da sua riqueza gloriosa e do seu cosmopolitismo. E Camões, nessas cartas, mostra-nos o avesso, o submundo das prostitutas, dos jovens sem ocupação, sem rendimento, à procura de brigas. E todo o tipo de negócios corruptos que decorrem na cidade. É um contraste de claro-escuro, uma espécie de yin e yang do Renascimento.
Como se cruzou com Damião de Góis? É uma figura muito menos óbvia do que Camões.
A verdade é que há muito tempo que eu queria escrever alguma coisa sobre Camões. Cresci no Quénia e dedico-me ao estudo do início da Idade Moderna. Os escritos de Camões permitem-me conjugar o início da história moderna com os lugares de África que conheci na minha infância. Acontece que aquilo que sabemos sobre a vida de Camões é muito incompleto, por isso pensei complementá-lo com algo mais abrangente sobre as explorações portuguesas daquela época e com a ideia da Torre do Tombo como arquivo global. Assim que comecei a investigar, deparei-me com Damião de Góis como uma das figuras centrais, e apaixonei-me de imediato. É um homem com quem me identifico muito. Ele era como uma pega: gostava de colecionar todo o tipo de coisas interessantes do mundo, estivessem elas relacionadas com tritões [versão masculina da sereia], etíopes, povos da Escandinávia…
E pintura.
E pintura. Muitos iam visitá-lo para ver a sua coleção, que tinha quadros de Hieronymus Bosch [entre os quais, quase de certeza, As Tentações de Santo Antão do Museu de Arte Antiga], de Quentin Matsys e muitos outros… E ainda nem falámos sobre a sua devoção pela música, em especial pela de Josquin des Prez, ou da amizade com Erasmo. Desde logo ficou muito claro para mim que Damião foi uma destas figuras extraordinárias que estão presentes em todo o lado. E é uma verdadeira dádiva para um historiador porque nos permite contar a história de todo um período através do percurso de vida de uma pessoa. Portanto, de imediato me saltou à vista como alguém sobre quem eu queria escrever, pensar e ler tudo o que tinha escrito. Por fim, o facto de ter morrido em circunstâncias misteriosas, de forma um tanto trágica, também é uma benesse para um biógrafo…
Ao ler este livro dei-me conta de quão pouco sabia sobre ele. Claro, sabemos que foi um humanista, colecionador, amigo de Erasmo, retratado por Dürer, mas o meu conhecimento não ia muito além disso. Não sabia que tinha viajado tanto, que tinha estado em Vílnius, Gdansk, Moscovo.
Sim, foi um homem que viajou imenso. Penso que em parte esse desconhecimento se deve ao facto de que só agora, com o interesse pela história mundial, começa a tornar-se óbvio o quão especial era Damião de Góis. Porque como humanista ele foi uma figura de segundo plano, mas como alguém que pensava no mundo como um todo estava léguas à frente da maior parte dos seus contemporâneos. Mesmo Erasmo, que obviamente foi o grande humanista daquele tempo, não estava interessado no que acontecia para lá da Europa, apesar de ter vivido na época dos encontros com o Novo Mundo e das viagens de Vasco da Gama. Não estava interessado nisso. Tal como a maior parte dos humanistas. Os combates que se estavam a travar eram muito dentro da Europa. Já se escreveu bastante sobre as interações de Damião com outros humanistas. Mas não me parece que isso seja o mais interessante. O mais interessante, quanto a mim, é a sua curiosidade em relação aos etíopes, aos lapões, a Moscovo, à Índia, etc.
Da leitura do livro, ficou-me a parecer que sente maior afinidade por Damião de Góis do que por Camões. Confirma?
É capaz de ter alguma razão. Damião é uma figura riquíssima. Obviamente Camões é um grande poeta, mas também tem uma personalidade difícil. Por vezes revelou-se algo desdenhoso para com as outras culturas e algumas das suas atitudes em relação às mulheres não nos parecem hoje das mais agradáveis. Também é uma figura fascinante, mas Damião é alguém com quem nos relacionamos mais facilmente, uma figura muito moderna.
É uma ironia cruel que Damião de Góis tenha sido vítima precisamente da sua tolerância, curiosidade e abertura de espírito.
É verdade.
Isso deve-se ao facto de as suas ideias serem consideradas perigosas?
Em última análise, sim. Damião viveu num momento de viragem da história. No início do século XVI, quando os europeus estavam a começar a descobrir estas culturas no Novo Mundo, na Índia e na China, havia um certo grau de abertura. Tal como no início da Reforma, penso que havia margem para refletir sobre o que estava a correr mal no seio da Igreja.
Para o debate, portanto.
E havia a esperança de que se pudesse ainda chegar a uma reconciliação e de que a Reforma fosse uma coisa temporária. Mas, nas décadas de 1540 e 1550 as posições endureceram e cada um dos lados da barricada passou a considerar inaceitável qualquer simpatia pelo outro lado. Ao mesmo tempo, julgo que havia alguma preocupação de que qualquer interesse por outras culturas nos quatro cantos do globo pudesse provocar uma erosão da identidade europeia. Escrever sobre outras latitudes e as respetivas culturas torna-se um bocadinho suspeito, especialmente se tiverem alguma coisa a ver com o Islão, o Judaísmo ou alguma coisa desse tipo. Na primeira metade da vida, Damião move-se num mundo muito cosmopolita; na segunda metade, o mundo vai-se tornando mais estreito e sombrio, a abertura de espírito passa a suscitar uma enorme suspeição. E ele acaba por ser vítima disso. A Inquisição investiga-o. Toda a curiosidade dele, o querer conhecer Lutero e ouvir o que tem para dizer, o fascínio por Erasmo, tudo isso torna-se muito perigoso para ele. Também por essa razão esta me parece uma história muito moderna. Hoje vivemos numa era de globalização e de abertura, e partimos do princípio de que vai ser sempre assim. Pode não ser. E agora, como vemos, com tudo o que se está a passar no mundo, uma cultura de abertura, tolerância e aceitação é algo que não se pode dar por adquirido.
A visão de Camões é muito diferente da de Damião de Góis, é uma visão de combate e conquista. Também podemos vê-la como um produto deste combate religioso que estava a ser travado?
Camões queria contar uma história épica. Tinha de ser uma história a preto e branco, com o Cristianismo e os portugueses de um lado, como heróis, e o Islão do outro, como os vilões – e tudo o resto pura e simplesmente desaparece. É a história de uma luta maniqueísta entre duas grandes civilizações, entre o bem e o mal. Novamente, durante a Contra-Reforma havia a ideia de que se se fosse demasiado tolerante, se o Cristianismo não cerrasse fileiras, acabaria levado na corrente e perderia o combate contra o Islão. Portanto, sim, acho que em parte esse sentimento eurocêntrico resulta de um receio de que a nossa própria cultura se dilua, o que leva a um conservadorismo radical e a um afunilamento da visão. E esse é um risco que também corremos hoje. Em vez de sentirem interesse pelo que há do outro lado, as pessoas sentem-se ameaçadas. Há uma tendência para o fechamento e para ser mais conservador, para nos agarrarmos ao que conhecemos.
Desculpe, agora vou ter de citar em português: «O dia em que eu nasci morra e pereça». Camões tinha razões para se considerar o mais infeliz dos homens?
A grande ironia e tragédia da vida de Camões foi só depois da morte alcançar a fama que tanto desejava. De facto não teve sorte. Andava constantemente dentro e fora da prisão, falido… Qualquer coisa boa que lhe acontecesse era-lhe tirada de imediato. Teve este cargo em Macau de provedor dos bens dos defuntos, que era importante e lucrativo.
O ponto alto, digamos assim, da sua carreira pública…
Mas logo a seguir foi acusado de gastar os fundos e destituído. Parte do pano de fundo d’Os Lusíadas é o seu esforço heroico para escrever um épico para Portugal, mas também para se erguer da falta de sorte constante que o perseguiu durante a vida. E conseguiu, claro, só que não viveu o suficiente para saborear o triunfo. É mais tarde, nos séculos XVII, XVIII, XIX, que Camões se torna esse poeta idealizado, um aventureiro e uma figura central da identidade portuguesa.
Sei que não é uma hipótese tão sedutora como um assassínio, mas ao ler as descrições pensei que Damião de Góis pode ter morrido simplesmente sufocado com o fumo ou de intoxicação por monóxido de carbono…
Quem sabe.
Ainda hoje muitas pessoas, sobretudo no campo, morrem assim, à lareira.
Sim, também é uma possibilidade. Um crime por resolver é um recurso narrativo. E não ter sido afinal homicídio nenhum também é uma solução perfeitamente possível para o mistério. Em parte, a hipótese de Damião de Góis é isso, um recurso narrativo para puxar o leitor para um mundo sobre o qual, sem isso, ele poderia não ler, porque quer descobrir o que aconteceu. Claro que quando estamos a investigar um crime com quase 450 anos nunca poderemos ter a certeza. Mas as histórias que se contavam logo a seguir à morte de Damião…
Querem dizer alguma coisa?
Mostram que as pessoas, na época, acharam que o que se passou foi muito suspeito. E há vários relatos independentes uns dos outros, incluindo um novo que encontrei na Biblioteca da Ajuda, que sugerem que ele foi empurrado para as chamas. Como eu digo no livro, provavelmente nunca saberemos o que aconteceu, até porque não é plausível que apareça uma confissão assinada – mesmo assim nunca se sabe… os arquivos são sítios estranhos. O que é certo é que na altura muita gente achava que podia ter sido um homicídio. E isso leva-nos a pensar: porque é que eles achavam que pode ter sido homicídio? Porque é que eles achavam que Damião tinha inimigos suficientemente maléficos para quererem matar um velho?
Ou seja, mesmo que não tenha sido homicídio, havia pessoas que gostariam de o ver morto…
Há uma nova prova que junta mais uma peça ao puzzle, uma carta de Simão Rodrigues a Inácio de Loiola, que encontrei no arquivo dos Jesuítas em Roma. Simão acusa Damião e os seus filhos de serem o centro de um círculo de luteranos, que eram considerados heréticos, em Portugal. E diz: ‘Vou fazer com que ele seja acusado, e ainda mais do que isso’. Simão tinha passado 25 anos a tentar que Damião fosse queimado na fogueira, por isso não deve ter ficado muito contente com o resultado do processo na Inquisição, que, por alguma razão, termina a dizerem a Damião que abjure dos seus pecados e vá para o Mosteiro da Batalha. Portanto, havia pessoas que o queriam ver morto e pessoas que acreditavam que ele tinha sido assassinado. Não vou dizer que não há fumo sem fogo, mas…
Podemos dizer que as vidas de Camões e de Damião de Góis acabam por formar as duas faces de uma mesma moeda?
Sim. Camões viaja para a Índia, para a China e para Moçambique, e quando regressa parece querer cortar com essas experiências. Damião nunca sai da Europa, o mais longe que vai é à Rússia…
É uma figura mais continental, nesse sentido.
Mas com uma mente muito mais aberta e com uma visão mais global. Viajar não nos torna necessariamente pessoas mais tolerantes. Curiosamente, Damião escreveu sobre todos os lugares por onde Camões andou mas acerca dos quais não escreveu. E Camões, por sua vez, compôs um grande poema épico neoclássico, humanista, que Damião, apesar de ser um humanista, nunca conseguiu fazer. Em vários sentidos são figuras complementares. Mas acabam por ter destinos muito diferentes. Apesar dos anos finais, do processo da Inquisição e de possivelmente ser vítima de assassínio, Damião teve uma vida muito feliz. Os amigos diziam todos que era um grande anfitrião – aliás, um dos prazeres de fazer este livro foi escrever sobre essas belas refeições, grandes almoçaradas que ele dava. Já Camões era uma figura muito mais torturada, perseguida pelo azar, que sentia que o mundo estava contra ele. Talvez isso ajude a explicar por que um era tão aberto e tão bom anfitrião e o outro não.
Tal como os dois protagonistas do seu livro, o Edward também é uma pessoa muito viajada. Como foi crescer no Quénia?
Foi uma sorte enorme. Claro que na altura eu achava que todos os miúdos tinham uma infância igual à minha, só mais tarde me apercebi do privilégio que foi crescer na África Oriental. Eu e o meu irmão apanhávamos cobras e andávamos sempre no mato, de espingarda ao ombro. Os meus pais são conservacionistas, trabalham com vida selvagem, por isso passei a infância em safaris, a observar animais nos lugares mais bonitos do mundo, muitas vezes na companhia de um livro, porque sempre fui uma criança que gostava de ler. Às vezes levantava os olhos do livro e via os leões ou os elefantes. Tenho pena de os meus filhos não poderem crescer num lugar assim.
Uma coisa que recordo sempre de uma reserva onde estive no Quénia são os empregados ao pequeno-almoço com fisgas para afugentar os macacos, que se aproximavam para roubar comida.
Quando eu era pequeno, a nossa casa ficava mesmo no fim de Nairóbi. A partir dali começavam as florestas, onde havia macacos. E os macacos vinham a nossa casa e roubavam fruta da mesa. Repito: é o sítio mais maravilhoso do mundo, e o único a que chamo casa. Embora seja descendente de anglo-americanos e tenha acabado por fixar-me no Reino Unido não me sinto britânico. Sinto-me queniano e talvez também um pouco europeu.
Os animais também têm um papel importante neste livro, por exemplo quando estabelece a diferença na maneira como eram vistos e tratados na Europa e na Índia. Isso é um reflexo da sua educação e formação?
Sem dúvida. Em todos os meus livros aparecem elefantes. Neste aparecem elefantes, rinocerontes e muitos outros animais. Uma das principais diferenças entre a cultura europeia e outras culturas era o entendimento do que é uma pessoa, quem tem uma alma e quem não tem, que vidas merecem ser respeitadas. Muitas culturas têm deuses que são animais ou consideram que os animais são pessoas cujas almas encarnaram neles. Seja como for, consideram que os animais existem no mesmo plano que nós. Enquanto na cultura europeia a diferença entre o homem e os outros animais é uma distinção fundamental.
Somos herdeiros de Aristóteles, que definiu o homem como um animal racional, por oposição a todos os outros.
É verdade. Dizem-nos desde pequenos, por exemplo, para não nos comportarmos como animais. Ou seja, está implícito que quanto mais diferentes formos dos animais, mais humanos somos. E claro, no Renascimento uma das ideias-chave era que o homem é tão diferente dos animais que pode tornar-se uma espécie de deus. O lado perverso disso é que obviamente implica não respeitar os animais. Isso teve consequências desastrosas. A tremenda diminuição da biodiversidade e dos habitats naturais é catastrófica. Parte da ideia deste livro é recuar a um momento em que a Europa se deparou com outras formas de encarar os animais e questionar se não podíamos ter aprendido com essas culturas.