Assim que a contagem decrescente atinge o limite e o temporizador mostra 0m:00s, a iluminação da galeria apaga-se e os ecrãs emudecem. “A cada 20 minutos esta exposição transforma-se num concerto”, anuncia Benjamin Weil, diretor do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian. Uma floresta de sons não identificáveis começa a tomar conta do espaço em volta, enquanto um espetacular efeito de luzes, um tanto futurista, atrai os olhares. A combinação de luzes e sons segue em crescendo, num ritmo que se torna frenético.
A música que sai dos altifalantes é um excerto de La Légende d’Eer, considerada a obra-prima da maturidade do compositor Iannis Xenakis (1922-2001). Na realidade, o som que não conseguimos identificar é feito a partir de carvão a crepitar, depois tratado num computador especialmente concebido e programado para o efeito, explica-nos Thierry Maniguet, comissário da exposição Révolutions Xenakis, que é hoje inaugurada na fundação lisboeta e que pode ser vista até 23 de março de 2023.
Durante quatro minutos, temos uma amostra do que eram os polítopos, algo que o compositor definiu como “uma espécie de fluido da imaginação – estético, racional e intuitivo – que parece circular entre a luz, o som, a tecnologia, as teorias, quase sem quebra de continuidade”. Xenakis via estas criações como uma espécie de “jogo” e “ao mesmo tempo um diálogo e um espetáculo interativo”, um pouco à semelhança dos concertos em que os artistas pedem à assistência que empunhe os seus smartphones e com eles descreva um arco no ar, gerando um padrão de milhares de minúsculos pontos de luz em movimento. Xenakis falava em convocar “aspetos da pesquisa científica de ponta, aliados aos aspetos artísticos mais proféticos, mas ainda assim permanecendo numa poderosa abstração semelhante aos fenómenos cósmicos”.
Toda a maquinaria necessária para gerar este espetáculo multissensorial, refere o engenheiro da ExperiencesS, a empresa responsável pelo projeto de som e luzes da exposição, “era super dispendioso, especialmente naquela época”. “O que hoje podemos substituir por um computador gaming na altura ocupava uma sala com maquinaria”. Mas, embora o equipamento fosse quase proibitivamente caro, “o que era realmente precioso era a engenharia, a mentalidade com que Xenakis abordou a tecnologia enquanto meio para criar”, bem como a “experiência” sonora e visual resultante.
Xenakis íntimo
Concebida originalmente pelo Museu Nacional da Música/ Philarmonie de Paris, Révolutions Xenakis celebra uma das personalidades mais ricas e influentes da música do pós-guerra. “Desde o início estivemos de acordo em mostrar algumas facetas íntimas de Xenakis”, notou Maniguet. “Ao contrário de outros compositores, a vida de Xenakis esteve desde o início ligada à sua obra, por isso quisemos mostrar o máximo de elementos biográficos e objetos relacionados com a sua obra”.
Embora filho de gregos, Xenakis nasceu em Braila, no leste da Roménia, em 1921 ou 1922. Tinha apenas seis anos quando perdeu a mãe (ela própria uma melómana que lhe incutiu o gosto pela música), vitimada por ter contraído sarampo quando estava grávida. Mandado pelo pai para um colégio de modelo britânico na ilha grega de Spetses, aí vive até à adolescência, altura em que decide ir para Atenas cursar Engenharia.
Entretanto sobreveio a II_Guerra Mundial e a Grécia foi invadida pelos italianos e pelos nazis. “Depois dos nazis, vieram os ingleses, que queriam restaurar a monarquia. Xenakis fez parte da resistência que se opunha a essa ideia e foi ferido por um estilhaço”, conta o diretor do CAM. Ficou desfigurado em metade da cara e perdeu um olho. Mas sobreviveu. “Nesse momento teve de fugir da Grécia porque estava condenado à morte”, continua Benjamin Weil. “Foi com um passaporte falso até Itália e da Itália para Paris. Em Paris encontrou, através de um amigo, Le Corbusier, com quem foi trabalhar como engenheiro. E desenhou o Couvent de la Tourette, que é um monumento de arquitetura moderna, onde começou a trabalhar sobre a ideia de combinar arquitetura e música. Então podemos considerar todo o sistema de janelas do Couvent de la Tourette como uma partitura musical”.
“Tinha à minha frente um herói”
Foi também em Paris que Xenakis conheceu o compositor Olivier Messiaen, o célebre autor do Quarteto para o Fim dos Tempos e uma das figuras tutelares da música contemporânea. “Iannis Xenakis é, sem dúvida, um dos homens mais extraordinários que conheço”, diria Messiaen. “Falou-se muito sobre o nosso primeiro encontro e sobre o facto de eu o ter aconselhado a desistir dos estudos de música clássica. Enquanto professor do Conservatório, esta posição poderia ser considerada uma loucura. Porém, a personagem que tinha à minha frente era um herói, como nenhum outro que conhecia, e não fiz mais do que cumprir o meu dever”.
A exposição patente na Gulbenkian propõe cinco núcleos, que colocam em paralelo as estações da vida e a evolução da obra do engenheiro, matemático e compositor. O_segundo desses núcleos é dedicado ao Pavilhão Philips para a exposição universal de Bruxelas de 1958, cujo projeto arquitetónico Le Corbusier delegou em Xenakis. Outro núcleo fala-nos das “aliagens”, expressão que Xenakis cunhou para designar os cruzamentos, ou melhor, as parcerias fecundas entre arte e ciência. E a meio da sala, como se fosse um pequeno santuário que nos é dado espreitar, foi montado um pequeno gabinete, que evoca o ambiente de trabalho do compositor, com alguns objetos que lhe eram queridos. “Não tentámos fazer uma reconstituição exata do seu estúdio, que era bastante desarrumado, estava cheio de livros, de fotos, tinha muitos muitos objetos”, explicou Maniguet. “Ele deixou a Grécia com uma mala sem nada lá dentro”. Talvez fosse por isso que, a prazo, Xenakis viria a sentir necessidade de rodear-se de alguns objetos que lhe davam conforto: livros, conchas, pequenas esculturas, fotografias, postais, um instrumento musical. “Muitos são cópias, não são verdadeiras obras de arte, mas ele não se importava com isso, não queria ter objetos preciosos, queria artigos que o inspirassem”. Outro dos objetos marcantes é um quadro de ardósia onde tanto escrevia fórmulas como desenhava planetas.
A sobremesa
Fora da galeria, perto da entrada da Biblioteca de Arte, foi montado um pequeno núcleo que documenta a relação entre o Xenakis e a Gulbenkian. O_primeiro passo foi dado pelo compositor em 1968, quando solicitou um apoio para a sua equipa de matemática. Foi o início de uma bela amizade, em particular com Madalena Perdigão, a primeira diretora do Serviço de Música da Fundação, que inclusive tinha o projeto de realizar um festival Xenakis, abortado pela revolução de 25 de Abril de 1974. Mas a colaboração manteve-se, com apoios à criação, encomenda de obras e conferências, tendo o compositor estado pela última vez em Lisboa em 1994. Esta valsa a dois entre Xenakis e a Gulbenkian é atestada por correspondência, cartazes, fotografias e outros materiais, num núcleo a que o diretor do CAM deu o epíteto de “sobremesa”.
A exposição Révolutions Xenakis é ainda complementada por programação paralela, incluindo a recriação de um espetáculo de luz e som do autor grego, adaptado aos dias de hoje, intitulada Polytope 2022 (hoje, sexta, às 19h e às 21h; amanhã, sábado, às 16h, 18h e 20h).