Não é fácil para nós, no Ano do Senhor de 2022, conceber uma história do mundo sem as pinturas de Lascaux, a máscara funerária de Tutankhamon ou os frescos de Pompeia. Estes três pontos altos da arte e da cultura estão hoje de tal modo enraizados no nosso imaginário que tendemos a esquecer-nos que passaram séculos ou mesmo milénios sepultados sem que se suspeitasse da sua existência silenciosa.
O caso da popularidade de Tutankhamon é especialmente curioso. Na realidade, tratar-se-ia de um monarca relativamente obscuro, que morreu com 19 ou 20 anos, sem conseguir deixar a sua marca, e ainda para mais filho de um faraó maldito. Como se tornou uma figura tão conhecida que até miúdos da escola são capazes de o identificar? Essa é uma pergunta a que a exposição Faraós Superstars, patente até 6 de março de 2023 na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, procura dar resposta.
A máscara que se encontra numa vitrina à entrada da mostra não é, evidentemente, a do tesouro descoberto em 1922 pelo famoso egiptólogo Howard Carter em Lucsor. Trata-se de uma interpretação feita em Limoges por volta de 1970. De resto, o facto de não se restringir aos (relativamente poucos) originais constitui precisamente uma das originalidades desta exposição, que se debruça, mais do que sobre objetos, sobre a penetração das imagens e símbolos do Egipto Antigo em todos os estratos da cultura e sociedade.
O objetivo é explicar como alguns dos mais de 300 faraós conhecidos sobreviveram a cinco mil anos de história e continuam a ser-nos hoje familiares, enquanto outros caíram por completo no esquecimento.
Toda a ideia, explica o curador Frédéric Mougenot, partiu de um simples preservativo. O nome da marca – Ramsés, uma filial da Durex – era no mínimo intrigante. «De que modo e por que razão veio a dar-se a um contracetivo o nome desse soberano do Próximo Oriente morto há mais de três mil anos? O que terá feito Ramsés – o segundo desse nome e de longe o mais célebre – para merecer tão duvidosa honra?», questiona Jean-Marcel Humbert no catálogo. A escolha era tanto mais insólita quanto Ramsés terá gerado mais de uma centena de filhos.
Arquivo de pedra
«Estamos aqui perante um dos grandes projetos que alguma vez foram tentados nesta casa, com mais de 250 peças e mais de 75 emprestadores», resumiu António Filipe Pimentel, diretor do Museu Gulbenkian, durante a apresentação da mostra, pondo em evidência a complexidade, mas também a «inteligência», do projeto.
«É uma exposição que nasce em 2019 e só três anos depois se concretiza», esclareceu João Carvalho Dias, diretor adjunto do museu lisboeta e co-curador. «De alguma forma somos beneficiários disso, porque pelo facto de só se realizar em 2022 temos a sorte de estar no duplo centenário: os cem anos da descoberta do túmulo de Tutankhamon por Howard Carter e os duzentos anos da decifração dos hieróglifos por Champollion, que traz um novo capítulo à história do Egipto e inicia a egiptologia moderna».
Mougenot chama a atenção para uma peça discreta, mas que tem muito para contar. «É uma antiguidade única», sublinha. «Trata-se de uma mesa de oferendas, uma peça do túmulo onde a família do defunto ou os sacerdotes colocavam oferendas, sobretudo comida, que vemos representada no tampo. Há milhares de mesas de oferendas egípcias nos museus. Mas esta é especial», explica, apontando para uma cartela em torno de hieróglifos. «Quando se encontra esta forma podemos estar quase 100% certos de que estamos a lidar com reis e rainhas. Esta mesa de oferendas é única porque tem o nome não de um rei mas de 18 reis e rainhas daquilo a que os egiptólogos chamam o Novo Reino, uma era de prosperidade. Temos todos os nomes dos predecessores de Ramsés II ao longo de 200 anos. Mostra que os egípcios tinham arquivos, registos, listas dos reis e rainhas que tinham reinado ao longo de séculos. Os arquivos de papiro desapareceram, mas por vezes temos o arquivo de pedra, como aqui».
Mas há ainda outro aspeto a ter em conta: «Esta lista é muito interessante porque inclui todos os reis que antecederam Ramsés II exceto uns poucos: Hatchepsute, a faraó, que foi apagada da história por ser mulher e a família de Akhenaton, Nefertiti e Tutankhamon, que também foram apagados porque eram considerados demasiado perigosos. Isto é a prova de que os egípcios também reescreveram a história».
A prudência de Gulbenkian
«O faraó era uma encarnação do deus que tinha criado o mundo segundo uma certa ordem», continua Mougenot. «No momento da criação o mundo era perfeito. E o trabalho do faraó era manter esta ordem perfeita e entregar tudo igual ao seu sucessor. A sua primeira tarefa é garantir que os deuses estão satisfeitos, porque isso assegura a paz e mantém o caos longe do Egipto». Para cair nas boas-graças das divindades, o faraó «constrói templos, que são as casas dos deuses na terra, e tem de providenciar-lhes mobiliário, oferendas, comida, bebida, incenso».
Como viria a acontecer noutros períodos, os egípcios atribuíam uma enorme importância aos materiais que destinavam aos deuses. Os templos e oferendas deviam usar materiais preciosos, como ouro e madeira de cedro, alguns dos quais não podiam ser encontrados dentro das fronteiras do Egipto. «Apresentamos aqui uma das obras-primas da coleção, e uma obra-prima da arte egípcia em geral, a cabeça de Senuseret III. Esta pedra preta, obsidiana, é uma pedra vulcânica, quase vidro, muito dura e difícil de trabalhar, vê-se que é uma obra-prima pelas feições delicadas, pelos pormenores, é uma proeza», descreve. «A obsidiana naquela época só podia ser encontrada na Anatólia, na atual Turquia. Isso mostra que o rei, naquele momento, era poderoso o suficiente para controlar as estradas por onde chegavam estes materiais ao Egipto».
Ao lado, da peça de obsidiana encontra-se outra cabeça de um soberano. «Foram ambas compradas por Gulbenkian em 1922 num leilão da Sotheby’s, em Londres», esclarece João Carvalho Dias.
O milionário arménio alimentava o desejo de se tornar o maior colecionador de antiguidades egípcias e escrevia ao arqueólogo inglês nesse ano: «Este desejo tem-se intensificado de dia para dia».
«Gulbenkian tem notícia de Howard Carter através de um grande dealer no mercado internacional, sabe que ele está no terreno, e recorre a Carter para ser seu intermediário neste leilão. Curiosamente, as duas peças mais valiosas são estas duas cabeças». Gulbenkian tinha instruído Carter a adquirir para ele as duas peças. «Mas não foram arrematadas por Carter, porque no mesmo leilão Gulbenkian pede a um arménio da sua confiança para licitar as duas peças. Ainda não conhecia bem Carter, não sabia se Carter ia comprar estas duas peças para Lorde Carnarvon, que era quem estava a financiar as suas escavações no Egipto, que conduziriam à descoberta do túmulo de Tutankhamon. Isto revela a prudência de Gulbenkian, que queria mesmo a cabeça de Senuseret», conclui Carvalho Dias.
Os faraós que ressuscitaram
Mas o que fizeram de mal Akhenaton e Nefertit para merecerem ser obliterados da história? Frédéric Mougenot detém-se junto de uma estátua do deus Amon com mais de 3 300 anos que ajuda a contar essa história: «Há muitos bons faraós que os egípcios consideravam que mereciam ser celebrados e venerados e manter vivo o seu culto. Mas quando um faraó não segue as regras, quando não mantém a ordem do mundo como se espera dele, os egípcios não hesitam em apagá-los da história, como vimos na mesa de oferendas. Isso aconteceu a muitos reis, nos 3 000 anos de história egípcia, mas alguns são mais interessantes para a exposição porque tornaram-se superstars – é a ironia da história», reflete.
«Se olharem para esta estátua, que representa o deus Amon, o rei dos deuses, havia outra figura entre os pés do deus a figura foi completamente destruída». E como podemos saber se não se tratou de um acaso ou de um acidente? «Não pode ter sido um acaso: tiveram muito cuidado para não tocar nas pernas do deus… E, na parte de trás, houve uma cartela que foi apagada, o que resta permite-nos deduzir que dizia Tutankhamon. As suas imagens foram apagadas e queriam fazê-lo desaparecer da história. Obviamente falharam».
Se os egípcios apreciavam a ordem e a estabilidade, Akhenaton, o pai de Tutankhamon, deu-lhes precisamente o contrário. «Só prestava culto ao deus-sol», refere Mougenot, o que fez dele um precursor do monoteísmo. «Embora nunca tenha atingido esse ponto, fez uma grande revolução», e os seus sucessores não gostaram. A nível artístico, o período do reinado de Akhenaton também foi revolucionário.
«Com o nascimento da arqueologia, os egiptólogos começaram a escavar no Egipto, em lugares onde Akhenaton, Nefertiti e Tutankhamon tinham vivido, e descobriram estes novos faraós», continua o curador da exposição. «A arte deste período, de que temos aqui um exemplo de uma representação de Nefertiti, com traços muito exagerados, uma boca comprida, grandes olhos, etc. Isto foi surpreendente, numa altura [a das escavações] em que a arte moderna estava a libertar-se dos cânones da arte grega e romana».
Tanta sede de inovação não agradou aos faraós mais tardios, que procuraram remeter o nome de Akhenaton, da sua mulher, Mefertiti e do seu filho, Tutankhamon, para, como diria Trótski dos mencheviques, o «caixote do lixo da história». Se conseguissem apagar todas as inscrições com os seus nomes era quase como se nunca tivessem existido. Mal imaginavam que esta trindade ressuscitaria, três milénios depois, ainda com mais força.
«Em 1912, a expedição alemã no Egipto encontra o original do busto de Nefertiti, um objeto único, cujas feições correspondem aos padrões de beleza do início do século XX. Vai para um museu de Berlim e de imediato a oficina de moldes de gesso do museu faz cópias da escultura, porque toda a gente quer uma cópia. Aqui temos duas réplicas do Museus Reais da Bélgica, compradas em 1933», explica Mougenot.
Dez anos depois, dá-se uma descoberta ainda mais espetacular e mediática. «Em 1922, o britânico Howard Carter, descobre o túmulo de Tutankhamon. É a primeira vez que se descobre um túmulo real intocado, com todo o tesouro, que é composto por mais de cinco mil objetos, a maior parte deles em materiais preciosos – madeiras preciosas, marfim, alabastro, e claro, ouro, lápis lazúli. São objetos impressionantes, especialmente a máscara, que a partir daí se torna o rosto de qualquer faraó. O que sublinhamos aqui não é a história da descoberta, que já foi contada muitas vezes, mas o papel dos media na ‘estrelificação’ de Tutankhamon. Na década de 1920 a imprensa já está a todo o vapor, a fotografia está a melhorar e a tornar-se mais fácil graças a aperfeiçoamentos nas câmaras, como o uso de película, em vez de placas de vidro, e as comunicações também. Em poucas semanas Tutankhamon torna-se uma estrela graças aos meios de comunicação».
O fim da ‘arqueologia de saque’
A fama do jovem faraó é amplificada ainda pela tese da ‘maldição’, que nasce depois de várias pessoas envolvidas nas escavações terem morrido de forma mais ou menos inesperada.
Além disso, «é a partir desta altura que os egípcios tomam o controlo dos seus próprios achados», nota João Carvalho Dias. O ritmo dos trabalhos nas escavações ressente-se, o que deixa Carter desesperado. «Com esta interrupção os egípcios constroem uma nova forma de lidar com a arqueologia que era uma arqueologia de saque. Chamam a si essa responsabilidade».
«Em 1922, alguns meses antes da descoberta do túmulo de Tutankhamon, os britânicos outorgaram oficialmente a independência ao Egipto», complementa o curador francês. «E porque havia esse movimento, nacionalista os egípcios abraçaram a herança faraónica. Este regresso à herança faraónica verifica-se sempre que os egípcios querem unir-se, seja por motivos políticos, seja até no futebol: ainda chamam à seleção egípcia ‘Os Faraós’».
Do estrelato dos faraós à sua presença nos mais diversos suportes – o cinema e a BD, claro, mas também em produtos de consumo tão surpreendentes como motociclos, máquinas de costura, maços de tabaco, cacau em pó ou preservativos – foi um salto.
Faraós Superstars exibe uma abrangente panóplia de objetos industriais do quotidiano que ostentam as insígnias reais do Egipto.
Mas termina num nota mais séria, com um punho que outrora pertenceu a uma estátua colossal de Ramsés II. A escultura é tão pesada – 1,6 toneladas – que não pode ser exposta na galeria de exposições temporárias. «Fazia um buraco no chão», explicam-nos. Por isso, o monumental punho foi colocado no átrio do museu. Trata-se de uma boa metáfora do poder esmagador dos faraós egípcios. Se só o punho é capaz de rebentar com o chão de um edifício, imagine-se o que a força do soberano podia fazer a um indivíduo.