O bom gosto organizou-se nos nossos dias ao ponto de tornar-se uma conspiração que dissolve os elementos mais cruentos da existência no ácido da sua tolerância malsã. Todos estes modos de amortalhar os gestos mais conspícuos e rudes, de cercear os humores mais infrenes debaixo de uma farsa que destitui tudo do seu vigor, substitui tudo o que nasce de um ímpeto vitalista produzindo um efeito de neutralização das tensões. Assim, vemo-nos sacrificados a uma ideia de progresso e condenados a um limbo e aos sucessivos impasses de um regime que, em função de valores de ordem económica, vulnera os processos históricos, todas as disposições de força humana que prosseguem uma evolução de acordo com os padrões de ilusão e decepção na forma como relatamos as nossas próprias histórias. O capitalismo impõe o fim das possibilidades da narrativa.
Paul Tillich afirmou que a profundidade é a dimensão perdida do nosso tempo. “Que melhor síntese para um diagnóstico da inconsistência?”, questiona o poeta Roberto Juarroz. “Não foi em vão que Oppenheimer reconheceu que a nossa tentação maior é a de sermos superficiais. Poderíamos suspeitar que aí reside a força negativa ou o peso por excelência da nossa época e também da sua literatura.” Se a literatura quiser aceitar o desafio de se resgatar a si mesma do feixe de estruturas que impedem a transmissão das experiências e das histórias individuais, apagando-as da memória do mundo, é necessário desenvencilharmo-nos do regime das débeis ideologias que nos empurram para os embates que se dão no campo da propaganda, cultivando um espaço de diferença e de interrupção desse registo de fanfarra esgotante.
É preciso libertarmo-nos desses modos de representação que nos serve a literatura bem-intencionada e tranquilizadora, procurando aquelas narrativas que nos obrigam a atravessar os desertos da existência, livros que se tornam decisivos para a nossa compreensão da vida precisamente por, como frisa Claudio Magris, obrigarem o leitor “a refazer o mesmo caminho do escritor e a atolar-se na angústia e no lodo desse caminho, em vez de lhe oferecer uma varanda panorâmica da qual ele possa tranquilamente admirar os infernos e os abismos sem se sentir ameaçado ou sorvido no redemoinho”.
Nos últimos tempos, da leva de obras contemporâneas que nos vão chegando às mãos, tem sido difícil encontrar textos que nos arranquem a este tumulto imbecilizante e que nos arrasta entre tombos e indigestões até não podermos sequer cometer erros que possamos assumir como próprios. De algum modo, nos nossos dias todos aguardamos uma repreensão, sentados como de castigo, e até aquilo que vai saindo sob a designação genérica de literatura contribui para essa repressão dos moralistas puritanos. Toda essa vaga de um ecumenismo cultural que tem assumido cada vez maior expressão não passa da maquilhagem de um regime cada vez mais eficaz de assimilação e subjugação. E nada é mais exemplificativo disto do que actual “cantilena” identitária, que quase sempre recorre a imposições ao nível da reforma da linguagem no sentido de gerir a campanha de esterilização do discurso, atirar terra sobre um solo que começou a desagregar-se, para fazer calar a falha que reside a um nível mais profundo.
“Abaixo da linha do Equador, quase a tocar no fim do mundo, muitas de nós fomos desenterrar a palavra travesti. Tinham-na sepultado com elegância sob nomenclaturas que nos eram totalmente alheias. Disseram que éramos mulheres trans, transexuais, transgénero, falaram mesmo em disforia de género e em dissidência sexual. Impunham novamente a sua academia vinda do Norte, enquanto aqui tratávamos de sobreviver, de viver, de foder, de nos alimentarmos nem que fosse com terra. Exibiram teorias a nosso respeito para tornar mais higiénica a nossa existência. Nós, travestis latino-americanas, criadas pelas mãos de todas aquelas que nos precederam, assumimos que éramos isso, mulheres trans, sem desconfiar de que nos atiravam para cima toneladas de pedras de identidade. Algo tão mortífero quanto isso.”
Assim se abre na nossa língua uma flor que se alimenta de si mesma, dos reflexos que produz na carne daqueles a quem atiça os desejos mais recalcados, as licenciosidades mais ofensivas, lembrando-nos que não há literatura que não rasgue o pacto social dos seus dias. Aos poucos, e sendo embora uma obra imensamente cativante, cheia de episódios que nos embalam entre a ternura e as compensações que nos fazem guardar e proteger o fio que nos liga à vida, não deixa de evidenciar todos os subterfúgios de um ambiente cultural e social pretensamente mais aberto e inclusivo, apenas para salvaguardar a posição moral do elenco que se oferece à telenovela das aparências. “No cemitério onde estão enterradas tantas travestis anónimas, das quais só é recordada uma alcunha ou uma façanha, aí onde as raízes são fosforescentes, algo dessas vidas passadas pulsava. Arrancámos as primeiras camadas teóricas e restaram os insultos, primorosamente cobertos por mantos deliberados de boas maneiras e de educação branca endinheirada. Esses insultos já nos eram próximos, de modo que os retirámos com cuidado. Muito por debaixo, onde correm os rios secretos do mundo, apareceu uma palavra que cheirava a morte, a merda, a sémen, a prostituição, a noite, a frio, a subornos, a sangue e a cárcere, a abandono e a miséria. Uma palavra afiada como uma lâmina, ofensiva, cheia de sujidade.”
Aqui está tudo o que é preciso saber sobre a tarefa que se impõe à literatura: não se trata de fazer qualquer tipo de excisão, mas de lembrar-nos a importância desse ímpeto que nos obriga a rejeitar o cerimonioso tráfico de noções candentes e celestiais, perceber que o mais importante, quando nos fazem refocilar nesses simulacros e representações tão omissas quanto aos níveis a que pode descer a existência é aceitar aqueles convites de quem nos guia na descida aos Infernos, àquilo a que Flaubert chamava “a latrina do coração”.
Tão raros são hoje os escritores capazes de nos expor à repelente violência da vida, e, por isso, quase todos esses paraísos que nos servem se mostram pouco convincentes, faltando-nos um sentido de escala, uma vez que o mal, por mais que esteja presente no mundo, debaixo de todo este manto sórdido de representações hipócritas é-nos ocultado permanentemente, como se fôssemos crianças. E é natural, por isso, que a verdadeira literatura não possa ser servida nesse regime afectado à motivação de grupos, nas missas culturais, onde se insiste nos “slogans” sagrados de sempre, e onde a democracia e a liberdade são invariavelmente o tema de todas as transmissões e editoriais, mas sempre reduzidas à sua condição mais caricatural e inconsequente.
Nesse sentido, uma verdadeira obra literária não pode hoje ser recebida senão como um susto, e tantas das páginas deste romance de desfloração da nossa patética ingenuidade produzem em nós esse choque perante as evidências de um mundo com o qual contactamos por aí mal saímos de casa, mas que nos é sonegado pelo pacto cultural mais alargado. Este livro devolve-nos a esse confronto com a cruel e impiedosa aniquilação dos fracos, a amoralidade da vida debaixo de todos esses códigos que maquilham a forma como a crueldade e a injustiça continuam a fazer o seu caminho sem serem perturbadas. As páginas de As Malditas têm o odor dessas lendas que chegam tão perto da pureza que, nos momentos mais agudos da sua denúncia, não conseguimos distingui-las das representações mais diabólicas, precisamente porque revelam a gangrena que se perpetua nos nossos símbolos habituais, dessa consciência do horror que se reforça através do castigo de ver a sua realidade submetida ainda a “termos cirúrgicos, frios como um bisturi”, que procuram recortar da superfície as evidências de um regime de opressão e conformação que passa por agredir todos aqueles que transgridam as normas.
Camila Sosa Villada conta-nos a sua história, desde a infância miserável, no sufoco da província argentina, da rejeição que sofreu na adolescência de todos quantos a rodeavam e da própria família, numa contenda em que soube persistir e atravessar um clima de suave desastre, de bendição terrível, balançando entre abusos de toda a espécie e a capacidade de encontrar no seu íntimo um abrigo expansivo “para poder viver a vida que é preciso viver nessa idade, a vida inteira em excesso de sensualidade clandestina”.
Esta obra estupenda, funciona como uma inversão audaciosa dos princípios que regem a lei do mais forte, um romance de sagaz deformação que supera a resiliência desse mito menor do herói épico, restituindo-nos aos valores e à importância dos laços afectivos que estruturam aqueles clãs de desajustados sociais capazes de escavar os seus redutos e defender estranhas e radiosas formas de vida. “Pouco a pouco fui-me entregando àquele rebanho que se deslocava, furtivo, até ao Parque. Era a mais nova, a mais ingénua. Não fazia ideia de nada. Mas aquelas travestis davam a sua sabedoria como davam tudo o que tinham na carteira a quem as tratasse com respeito. O coração travesti: uma flor da selva, uma flor repleta de peçonha, vermelha, com pétalas de carne.”
Hoje actriz e escritora, Camila Sosa Villada prostitui-se durante vários anos antes de se estrear com uma peça de teatro (“Carnes Tolendes”). O romance que fez dela uma sensação num mapa literário que continua a expandir-se, alimenta-se da sua história de vida sem trair o elemento de fantasia que impede esta obra de se definir e fixar num registo, vagueando deliciosa e anarquicamente, numa prosa que transborda de transcendência, momentos de lirismo e outros de uma ferocidade arrebatadora, sendo que muitas destas páginas ganham precisamente pela forma como chegam a convencer-nos que são o trabalho de alguém que nem sabia muito bem como contar todas as coisas que lhe foram acontecendo, resvalando aqui e ali para a fábula, cosendo elementos dispersos, asas de anjo ao corpo de moscas e vice-versa, levando-nos a compreender que se pode atingir um ponto em que o real se torna de tal modo feio que extravasa e alcança a irrealidade, esse inferno que, a partir daí, permite também aos anjos servirem-se das armas mais inesperadas. Camila foi obrigada a valer-se dessa duplicidade de uma identidade bifurcada, pagando os estudos de Comunicação e Teatro na universidade de Cordoba que frequentava como rapaz durante o dia com o que tirava à noite prostituindo-se no parque Sarmiento, e integrando o tal clã de personagens extravagantes que, diante da estátua de Dante, “trepam todas as noites desse inferno sobre o qual ninguém escreve, para devolver a Primavera ao mundo”.
Para Camila Sosa Villada as verdadeiras revelações estão ao nível daquela intimidade que só a degradação, a necessidade e a urgência podem trazer à superfície. Esta é uma novela que nos fala dessas horas em que os anjos sentem vontade de morrer, em que as pessoas em volta, no seu cerco miserabilista, se alimentam através da sua troça daquilo que lhes escapa, de toda essa beleza que irradia sempre no limite mais inseguro, nessa presença sagrada que alcançam entre nós as existências ameaçadas e perseguidas. E isto porque a verdadeira vida só pode ser testemunhada em segunda mão por aqueles a quem falta uma grande coragem. A estes causa-lhes uma espécie de pavor, que só conseguem vencer pela agressão mais doentia, a que se alcança através dos números. Assim, numa das cenas a narradora fala-nos de uma irmã travesti, dessas que se tornam um alvo demasiado evidente, e que despertam o insulto e a rejeição a essa indistinta maioria sem aquele ardor para assumir algo que não a condição mais banal e funesta que envergam os que são transparentes. Mas elas, no simples propósito de respeitarem a si mesmas, cultivando um reflexo que seja minimamente leal à imagem que têm de si, representam uma hipótese de revoltoso milagre que envergonha tudo à volta, toda essa natureza intolerável e que se conforma em ser o simples tojo da vida. “Por isso, com mais ou menos arte, tentávamos atingir a transparência. O triunfo de voltarmos para casa tenso sido invisíveis e chegarmos limpas de agressões. A transparência, a camuflagem, a invisibilidade, o silêncio visual eram a nossa pequena felicidade diária. Os momentos de descanso.”
Aquela travesti entra na farmácia, e os que lá estão lançam-se sobre ela. “Não se contentam em deixar a sua maldade atrás do balcão. Começam a procurar cúmplices entre os clientes que imediatamente se lhes juntam. De repente, estão todos a olhar para a travesti que acabou de entrar na farmácia a tentar passar o mais despercebida possível. (…) Eu vejo tudo isso. Vejo a minha irmã, a minha amiga, a minha familiar, cansar-se dos olhares trocistas e sair sem comprar o que precisa. Eu também ando com pouco tempo e com pouca chama. Não encontro em mim a energia necessária para fazer o escabeche que merece aquela caterva de miseráveis escravos dos bons costumes. Que vergonha me dão. Que vergonha sinto por não me transformar em justiceira e mandá-los a todos para o lugar mais hediondo da Terra. Filhos da merda mais merdosa, irmãos da merda mais merdosa, praticantes da pior das merdas. O que sabem eles sobre as horas perdidas a tentar dominar a arte difícil da transparência e do deslumbramento? ‘Somos como um entardecer sem óculos de sol’, dizia a Tia Encarna. ‘O nosso brilho deslumbra, ofusca e assusta aqueles que nos vêem.’/ É verdade, mas sempre podemos partir. E o nosso corpo vai connosco. O nosso corpo é a nossa pátria.”
É este corpo, o fruto da mais poderosa das metamorfoses, a mais dolorosa e difícil, o parto incessante, a busca que extravasa todos os limites e bloqueios, este corpo que se vinga sobre todas as contrariedades e desbrava um caminho único para o desejo – este é o corpo que precisa ser salvo, o bem último, essa forma de encarnação sedutora que nos horroriza precisamente por superar todos os obstáculos, todos os impedimentos, e fixar bem para lá do nosso escândalo uma possibilidade verdadeira de um homem ou uma mulher se imporem à luz do seu destino mais secreto, aquele em que só eles acreditam – uma fé contra o mundo.
Esta metamorfose é a verdadeira terra santa. Porque para mudar a vida é preciso ter dotes para a encenação, ser capaz de pagar o preço por algo que nasça como uma peça de teatro escandalosa até cativar uma audiência capaz de transformar o mundo. “Com a cara a parecer uma máscara, a mais bela de todas as máscaras, com aqueles traços travestis mais reais do que os nossos próprios traços, concebidos para outro mundo, um mundo melhor, onde pudéssemos ser essa máscara.” E que se dane o paraíso se não houver nele lugar para estes seres que iluminam tudo à volta com o clima suave e subtil de incêndio, essa desordem fragorosa, que nos provoca no sangue uma espécie de ousadia de se recriar segundo um fôlego autónomo, essa “vertigem de desaguar num destino”, um destino que seja só nosso.
E, no fim de contas, o ambiente de nojo que se cria em volta dos seres que não rejeitam inspirar-se em si mesmos só exprime o “pavor de uma beleza maiúscula”. Mas, detendo os olhos perante essa força, é quase impossível retirá-los, e simplesmente não temos como explicar a nós próprios esse raríssimo fascínio. Como no poema de Herberto do livro Vocação Animal, “o coração corre entre iluminuras rápidas, é uma criança sucessiva nas pautas da música, assim escrevo uma nação simultânea, desapareces na respiração do teu vestido, entretanto a revelação anuncia-se pelo medo, curvas-te como as aldeias devoradas pela lua, mais tarde sempre que penso em ti estás com um lenço escrito nas duas mãos, e a tua velocidade abranda junto aos espelhos, expandes-te assim lentamente gravada, és uma floresta de silêncios visíveis, sempre que penso penso sempre ao contrário do fim, estás cada vez mais no princípio de ti mesma, então vejo que nesse lugar é o meu começo eterno, quando danças é um corpo rodeando a brancura rodeada ou de novo qualquer coisa criminal entre o cuidado e o espaço, nas linhas puras da solidão arde a cabeça, arde o vento, atrás de ti as imagens assassinas da noite – estrelas: subversão da noite, sempre que penso em ti danço até à ressurreição do tempo.”
É preciso proteger estas formas tão singulares de sagração, e o paraíso que se dane se não tiver espaço nele para este jogo de se esconder e se mostrar exponenciando a vida. “O que a natureza não dá, o inferno empresta”, lembra-nos Camila Sosa Villada. E que outra imagem pode ser mais prometedora do que a dessa caravana de travestis ali, naquele Parque contíguo ao centro da cidade, seguindo esses corpos pedindo “emprestado ao inferno a substância da sua sedução”.
O verdadeiro desejo, como se sabe, morre irredento. E este livro é um monstro na forma como cose os seus pedaços confusos e torturados, mas inspiradores, uma obra que é constantemente arrebatada de novo para a vida pelo seu circuito ferido, essa massa de partes dispersas – sendo difícil saber ao certo quais são essenciais e quais são supérfluas – unidas por um sentido de propósito extraordinário. Assim, cativa-nos para essas iluminuras fulgurantes que muitas vezes só ganhamos a coragem de seguir quando é demasiado tarde, e não há já forma de seguir o balanceio das suas ancas até ao fim do seu rastro, onde morre a nossa imaginação. Aquela caravana de travestis segura ainda o que resta de fantasia e propósito onírico neste mundo e não há outra coisa mais instigante, hoje, para os nossos sentidos do que deterem-se nessa crítica que se exerce num estado de radiante combustão contra este pano de fundo tristíssimo das nossas vidas dominadas de tal modo pela rotina que se arrastam à beira da inanição.
“Enquanto isso, éramos índias pintadas para a guerra, feras preparadas para caçar à noite os incautos nas goelas do Parque, sempre chateadas, brutas até na ternura, imprevisíveis, loucas, ressentidas, venenosas. (…) Era assim a raiva que tinham inoculado em cada uma de nós. Tomar de assalto a cidade, esse era o nosso desejo mais ardente. Acabar de uma vez com todo aquele mundo exterior ao nosso mundo, o mundo legítimo. Envenenar-lhes a comida, destruir os seus jardins de relva bem cortada, ferver a água das suas piscinas, destruir à martelada aqueles todo-o-terreno de merda, arrancar-lhes do pescoço aqueles colares de ouro, pegar naquelas caras de gente bem alimentada e esfrega-las no chão até se verem ossos.”