Perdidos para qualquer significado épico, os homens dão-se conta de como a vida contemporânea dá cabo da imaginação, vergando-nos a circuitos dominados por uma ênfase patética, enredos bestializantes, ficções que constantemente nos impõem o dever do confronto, a necessidade de se avaliar e se afirmar, de se submeter a essa contínua tensão implícita no conflito. Não falta quem entenda o quanto a fantasia pode ser eficaz para organizar os impulsos e as frustrações que este estado de coisas produz em todos nós, e, por essa razão, para garantir esse armistício desolador em que os homens caem à margem das suas próprias vidas, foi sempre necessário controlar esses ímpetos, criando um regime de guerra inescapável. De resto, George Orwell percebeu bastante cedo como, no século XX, o futebol se tinha tornado “a continuação da guerra por outros meios”.
Numa altura em que se tornou impossível escapar ao futebol, a essa redução essencial da tragédia a um espetáculo que segrega esta mitologia cultural tão fácil de manipular, gerando formas de culto alienante, numa linguagem universal que chega a todos, através dessa profanação dos signos e significados antes relacionados com a religião. Assim, é como se a vida espiritual fosse deixada devoluta à medida que o discurso sobre o futebol e à sua volta chama a si termos como catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, ressurreição, veneração, inferno, o diabo ou a mão de Deus. Destitui-se a liturgia dos seus meios, para que o futebol seja reforçado, à medida que o adepto se torna um fiel, benzendo-se em nome do seu clube, sacrificando-lhe e aos seus ídolos de chuteiras as suas preces, superstições, todos os seus sinais de devoção, querendo assinalar a sua lealdade a esse regime de contenda através do qual “o medíocre se transforma em herói”, como nos diz Agustina, projetando-se “no furioso trabalho do peito, dos ombros, dos pés”, e resolvendo assim a sua agressividade, que o reduz a uma impotência cada vez maior, a uma cólera que vê no adepto da equipa contrária a representação de todos os males, toda a indefinição e bloqueio da sua própria vida.
Há umas décadas, já Alexandre O’Neill lavrava numa das suas crónicas o seu protesto face ao cerco quase sufocante a que nos vemos diariamente submetidos: “O que perde o futebol não é o jogo propriamente dito, mas todo o barulho que se faz à volta dele. É impossível a gente alhear-se do futebol, falado, comentado, transmitido, relatado, ouvido, apostado, gritado, uivado, ladrado, festejado, bebido. O futebol passa deste modo a ser uma chateação permanente. É que não há tasca, pastelaria, salão de jogos, barbearia, recanto de jardim público, quiosque, bomba de gasolina, restaurante, Assembleia da República, supermercado, hipermercado, livraria, loja, montra, escritório, colégio, oficina, fábrica, habitação, diria até, onde, de algum modo, não se ouça falar do jogo que decorre, decorreu ou decorrerá. Quando há transmissão via TV ou Rádio, então a infernização é total. (…) Enfim, o País fica futebol!”
O que se descreve aqui é uma espécie de buraco negro que se escava na vida de todos nós, um culto que tudo suspende, que impõe e atualiza um regime de conscrição que não deixa de se articular com imperativos de ordem mercantilista. E se o futebol se tornou esta celebração tão expansiva e generalizada no nosso quotidiano, se o fervor que provoca nos aficionados o equipara a uma religião, ainda que politeísta e pagã, este permite que o regime mediático se universalize, promovendo estes modelos de concentração emocional, capturando a atenção de todos através de um espetáculo que consegue o nosso assentimento alegre face às manifestações de um regime de integração forçada que não deixa de estar condicionado pelos mecanismos do poder económico ou financeiro, e que, na verdade, permite até reforçar as relações de dominação de acordo com as regras do neoliberalismo. Assim, tudo conspira para que o futebol assuma uma presença que vai muito para além dos estádios, uma ênfase desproporcionada que permite inocular o seu vírus, produzindo nas massas uma reação coreografada, com as multidões a responderem à chamada, colocando-se em cena e dispondo-se a esse dever do confronto, a essas rivalidades fabricadas, a responderem hipnotizadas ao clarim de guerra. Vislumbramos aqui uma tentativa de excitar os ímpetos e controlá-los, através da gestão de uma neurose coletiva. Agustina serviu-se deste termo, notando que o mundial de futebol “implica a neurose coletiva que inventa o homem constantemente”. E adianta que, “se não fosse por estes espetáculos, em que o indivíduo é assobiado, escarnecido, vaiado, aplaudido e abandonado pela multidão, não se mantinha a consciência do mundo que nos cerca”.
Em nenhuma outra região do planeta este fervor viu a fronteira entre futebol e política diluir-se de tal modo como na América Latina, onde não seria difícil assinalar uma série de paralelos entre o que ocorre nas quatro linhas e o plano mais geral das tensões regionais. Em “A Guerra do Futebol”, Ryszard Kapuscinski assina uma espantosa crónica que viria a emprestar o título a um livro de reportagens sobre revoluções e guerras civis que ocorreram entre 1958 e 1976. Nesse ensaio, este mestre do jornalismo moderno lembra que há uma longa lista de governos que caíram ou foram derrubados após a derrota da seleção, com os jogadores da equipa vencida a serem denunciados na imprensa como traidores. “Quando o Brasil venceu o Mundial no México, um colega brasileiro exilado ficou com o coração desfeito: ‘A direita militar’, disse ele, ‘pode contar certamente com, pelo menos, mais cinco anos de reinado pacífico’. No caminho para o título, o Brasil venceu a Inglaterra. Num artigo com a manchete ‘Jesus defende o Brasil’, o jornal carioca Jornal dos Sportes explicava assim a vitória: ‘Sempre que a bola voava em direção às nossas redes e o golo parecia inevitável, Jesus esticava o pé do meio das nuvens e sacudia-a dali’. O artigo era acompanhado por desenhos, ilustrando essa intervenção sobrenatural.”
O grau de demência que o futebol excita é de tal ordem que o pacto social parece suspender-se nos estádios de futebol, e Kapuscinski lembra que qualquer pessoa pode perder a vida num estádio, caso interprete mal os ânimos ao seu redor e os indisponha violando alguma das leis implícitas da bancada. O jornalista exemplifica com a partida que o México perdeu para o Peru, dois a um, naquele mundial. Um adepto mexicano amargurado terá gritado em tom irónico: ‘Viva México!’ Instantes depois o seu corpo jazia sem vida, tendo sido massacrado pela multidão. Outro exemplo referido por Kapuscinski, seguiu-se à vitória do México frente à Bélgica por um a zero. Num acesso eufórico, Augusto Mariaga, o diretor de uma prisão de segurança máxima em Chilpancingo (estado de Guerrero) quis que a celebração impressionasse os deuses, e depois de ter começado a correr e a disparar uma pistola para o ar enquanto gritava “Viva México!”, não sentindo que pudesse sozinho fazer tremer os céus, foi tomado de um impulso de abrir todas as celas, libertando os 142 presos que não demoraram a impor um motim infernal. Mais tarde, Mariaga viria a ser absolvido por um tribunal, com o veredicto a mostrar compreensão com aquele estado de delírio momentâneo, determinando que ele agira tomado pela “exaltação patriótica”.
Multiplicam-se por todo o lado os sinais da contemporização face aos excessos a que são levados os adeptos devido ao clima de fervor produzido pelo “ininterrupto matraquear futebolístico do espaço público”, o que conduz a um estado de excepção em que, como sinaliza António Guerreiro, nos submetemos alegremente a essa “continuada violência simbólica, exercida através do empreendimento dos media”. Mas o aspecto mais perigoso é a forma como se perde a leveza do jogo à medida que o futebol é sobrecarregado por esse incitamento constante à guerra, pela transferência de todos os resíduos de agonia social para as suas contendas. Kapuscinski começa por lembrar naquela sua reportagem o confronto as seleções das Honduras e de El Salvador, num momento em que os dois países disputavam o direito de participar no Mundial do México, em 1970. A primeira mão teve lugar a um domingo, 8 de junho de 1969, na capital hondurenha, Tegucigalpa. E o jornalista polaco conta-nos como a seleção salvadorenha chegou a Tegucigalpa no dia anterior e passou a noite em claro no hotel. Os jogadores foram impedidos de dormir por se verem vítimas de uma guerra psicológica levada a cabo pelos adeptos da equipa rival. Um enxame de pessoas cercou o hotel. A multidão atirava pedras às janelas e batia com paus em placas de estanho e barris vazios. Serviram-se de fogos de artifício para sacudir os céus e enervar os jogadores. Não largaram as buzinas dos carros estacionados em frente ao hotel. Assobiaram, gritaram palavras de ordem e cânticos hostis. Esta forma de guerra prolongou-se toda a noite, garantindo que os jogadores da equipa rival, sonolentos, nervosos e exaustos não poderiam senão sofrer uma derrota em campo. E assim foi.
No dia seguinte, as Honduras impunham uma derrota a El Salvador, numa vitória por um a zero que só chegou perto do apito final. Mas para adensar o drama, foi só quando os ecos desta batalha perdida começaram a ser amplificados pelos jornais nos dias seguintes que surgiu um ícone da humilhação sofrida pelos salvadorenhos. “Amelia Bolanios, de 18 anos, estava sentada em frente à televisão em El Salvador quando o atacante hondurenho Roberto Cardona marcou o golo da vitória no minuto final”, lembra Kapuscinski. “Ela levantou-se e dirigiu-se à escrivaninha do pai, e à gaveta onde este guardava a sua pistola. Amelia deu um tiro no coração.” A imprensa já tinha uma baixa com que excitar os ânimos dos adeptos, e a manchete no dia seguinte no El Nacional clamava: “A jovem não suportou ver a sua pátria de joelhos”. Kapuscinski recorda como toda a capital participou do funeral de Amelia Bolanios emitido pela televisão, e como uma guarda de honra do exército marchou com uma bandeira à frente da procissão. O presidente da república e os seus ministros caminhavam atrás do caixão coberto pela bandeira. Atrás do governo vinham os onze jogadores salvadorenhos que, vaiados, alvo de chacota e cuspidos nessa manhã ao regressarem ao aeroporto de Tegucigalpa, num voo especial, não quiseram deixar de marcar presença e honrar a jovem que não aguentou assistir ao seu fracasso no jogo de bola.
Faltava ainda jogar-se a segunda mão, e esta iria ter lugar em San Salvador, no belo estádio Flor Blanca, uma semana depois. Como era de se esperar, desta vez coube à seleção hondurenha enfrentar uma noite de martírio na véspera do jogo. As multidões cercaram o hotel, quebraram todas as janelas e atiraram ovos podres, ratos mortos e trapos fedorentos para o interior. Os jogadores tiveram de ser levados para a partida em carros blindados da Primeira Divisão Mecanizada de El Salvador, a única medida que foi capaz de impedir que sobre eles se abatesse a fúria e a ânsia de vingar a morte de Amelia Bolanius, com a multidão a acenar com os retratos da jovem à passagem da comitiva. O exército viu-se obrigado a cercar o estádio para evitar um mais que certo episódio de derramamento de sangue. Um cordão de soldados de um regimento de elite, armados com metralhadoras segurou a multidão. Kapuscinski lembra que, enquanto o hino nacional hondurenho soava, este foi submergido pelo ruído no estádio e fora, com a bandeira hondurenha a ser queimada diante dos espectadores, o que os levou a um estado de absoluta euforia. Depois, e em lugar da bandeira, foi hasteado um pedaço de pano sujo e esfarrapado. Como é evidente, os jogadores não estavam minimamente compenetrados no jogo e sim em sair dali vivos. “Tivemos muita sorte em termos perdido”, disse o treinador da seleção visitante, Mario Griffin, claramente aliviado com o desfecho. El Salvador vencera por três a zero. E a caravana de carros blindados levou a seleção hondurenha diretamente do campo de jogo para o aeroporto. Mesmo assim, para os jogadores o martírio não tinha ainda acabado, pois no regresso a casa tinham ainda de prestar contas aos seus adeptos. Quanto aos que foram até ao estádio de San Salvador apoiá-los, muitos foram perseguidos e espancados, obrigados a fugir em direção à fronteira. Dois morreram, e largas dezenas tiveram de ser socorridos no hospital. Além disso, centena e meia dos carros dos visitantes foram queimados. Para prevenir que a fronteira entre os dois países fosse pontuada por rixas e batalhas campais, teve de ser fechada algumas horas depois.
É possível ler nestes episódios como na vasta crónica dos conflitos e rivalidades que se têm desencadeado à sombra das chuteiras, uma espécie de épica degradante que vai sendo abastecida de todos os ímpetos que são esmagados e frustrados pelo miserabilismo da vida quotidiana, pela esterilização que resulta de ciclos em que cada indivíduo se vê abandonado à sua sorte, extraído de um contexto político, incapaz de afetar a própria vida e o campo de jogo social ao seu redor. O futebol surge assim como essa “religião laica do proletariado” (Eric Hobsbawn), na medida em que alimenta uma perspectiva de redenção, em que oferece este regime de intoxicação voluntária, com os fiéis deste culto a permitirem-se essa forma de delírio que por alguns instantes lhes permite esquecer o desencantamento da vida moderna, lendo nos caracteres do fenómeno futebolístico espalhados por toda a parte uma articulação para essas aspirações heroicas, uma sentimentalidade e emoção exacerbadas e num confronto de alienados. E é esse delírio que permite que, no que toca ao futebol, tudo seja permitido, e a corrupção se instale e normalize condições absolutamente inaceitáveis, precisamente porque se trata de uma guerra, e só instâncias superiores podem condenar alguns ilícitos para purgar de tempos a tempos este ambiente cada vez mais sórdido e obsceno. Enquanto isso, enquanto facções identificadas com um clube ou uma seleção se digladiam a cada oportunidade, favorecendo por todos os meios os rituais da inimizade, dos quais nunca resulta qualquer transformação das condições de vida, segue a campanha mediática, que conta com um número cada vez maior de intelectuais, que desculpam todas as formas de degradação que este fenómeno tem produzido exaltando as virtudes do futebol, pelo entusiasmo que provoca nas multidões, por uma suposta vingança dos pobres e das minorias, pelo reforço dos ideais de independência e de estima nacional. Assim, à boleia dessa benevolência, dessa forma de condescendência que entende que as manifestações à volta do futebol são a forma como “os povos rejeitam a sua dissolução, procurando restabelecer-se pela auto-afirmação” (Redeker), a violência é normalizada, o ódio vê-se banalizado e torna-se um elemento chave que permite animar essas fórmulas concentracionárias de populismo, os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e outras formas de ódios identitários ou racistas, originando “uma regressão cultural generalizada”. António Guerreiro entende que o futebol-espetáculo não é simplesmente um jogo coletivo, mas tornou-se “uma organização para o enquadramento pulsional das multidões”. E Marc Perelman, professor na Universidade de Paris-Nanterre e autor de uma extensa bibliografia sobre o que classifica como o fenómeno da “barbárie desportiva”, assina um ensaio num recente número da revista Electra (n.º 17), cujo dossier é dedicado ao futebol, em que defende que este tem permitido uma inversão das posições políticas tão profunda que, atualmente, “o chauvinismo e o nacionalismo engendrados pelo futebol já não são denunciados, mas postos em evidência como manifestações de uma revitalização dos povos”. Temos assim essa rede laboratorial em que, nos estádios de futebol e ao seu redor, vemos serem encenadas manifestações que nos transportam para uma nostalgia do fervor totalitário, um eixo de representações que preparam as condições para um fascismo de sorte alienante que serve para distrair inteiramente os homens do seu destino. Como vinca Guerreiro, “é preciso abdicar da ideia de que são os grandes acontecimentos que determinam essencialmente os homens. Pelo contrário, são as catástrofes minúsculas de que é feita a vida quotidiana que têm uma influência maior e mais duradoura. Ora, o futebol, que é uma crónica ininterrupta de catástrofes minúsculas, dramatizadas de maneira enfática através da mediatização e da espetacularização exacerbadas, propõe de maneira ideal a violência da competição desportiva”. Por sua vez, Perelman adianta ainda que toda a mitologia em torno do futebol-resistência, do futebol-emancipador ou do futebol-cidadão não resiste perante a realidade e a constatação essencial de que “nunca o futebol foi um meio de luta contra o fascismo, nunca ajudou ou favoreceu o mais pequeno avanço social das classes populares, nunca pôs em causa a ordem social”.