O Menu. O “absurdo” mundo da alta gastronomia

Estreou na quinta-feira passada aquele que parece ser um dos filmes mais bizarros do ano: O Menu. Misturando géneros como o terror, o suspense e a comédia, o realizador Mark Mylond oferece ao espetador uma experiência que, ao invés de dar água na boca, dá a volta à barriga, numa sátira ao elitismo gastronómico.

Um restaurante que não é bem um restaurante, um menu não convencional e carregado de segredos, uma sala repleta de pessoas que representam o “pior” lado da sociedade. Jantar no exclusivíssimo restaurante do chef Julian Slowik é tudo menos um local acessível ao comum dos mortais. Localizado numa ilha remota, habitada apenas pelo excêntrico Slowik e pelos seus funcionários, o estabelecimento recebe só 12 clientes por refeição e cada um deles deve pagar a quantia de 1 250 dólares (cerca de 1 187 euros). Ao chegarem à ilha, as pessoas ficam sem acesso ao continente, nem a qualquer sinal de rede e, aquele que supostamente seria um jantar extraordinário, acaba por se transformar numa espécie de Jogos da Fome, onde os intervenientes estão divididos em duas equipas – os que servem e os que são servidos – e nem todos vão chegar ao fim do menu de degustação.

Por isso, e pela atmosfera que cria – conjugando o terror, o suspense e a comédia, O Menu -, filme realizado por Mark Mylod e distribuído pela Searchlight Pictures, já é considerado um dos filmes mais bizarros do ano. Estreou em novembro nos EUA e ficou disponível em todas as salas em Portugal na quinta-feira passada.

Uma sátira à elite gastronómica Tyler e Margot, interpretados pelos atores Nicholas Hoult e Anya Taylor-Joy, viajam até uma ilha privada para jantar no Hawthorne, um restaurante conhecido pelo elaborado, e caríssimo, menu de Slowik, chef a quem o ator Ralph Fiennes dá vida. O lugar oferece, por isso, a quem puder pagar, experiências de culinária absolutamente singulares. Porém, nesse dia, Slowik adiciona aos vários pratos um ingrediente inesperado, que “fará subir a experiência de cada um dos clientes a um nível absolutamente aterrador”, tal como explica a sinopse.  “Partilhar uma refeição é a interação mais primitiva que existe entre os seres humanos”, disse o realizador à Veja. “No restaurante do filme, a comida já não alimenta, não dá prazer, não cria conexões entre as pessoas. Só representa status”, explicou.  

Misturando vários géneros, talvez seja possível afirmar que a produção orbita, por isso, no campo da sátira: a sátira é presente no elitismo gastronómico onde pessoas abastadas pagam quantias exorbitantes para comer quantidades microscópicas. Numa cultura gourmet milionária que traz uma ideia de classe social, os personagens funcionam como estereótipos com funções muito específicas: existe, por exemplo, a pessoa multimilionária que está ali por causa do status, para partilhar nas suas redes sociais, não tendo qualquer conhecimento sobre gastronomia; existe aquela que quer realmente saborear os pratos; uma crítica gastronómica que tenta trazer uma explicação para tudo; estrelas de cinema e  milionários da tecnologia.

O projeto estabelece então uma crítica social a partir da gastronomia,  crítica essa que pode ser aplicada a qualquer outra área. Neste caso, geralmente, quando queremos elevar a escala do paladar, vamos a restaurantes muito caros. Porém, ao ser servidos, é natural que nos deparemos com pequenas proporções que juntas, resultam numa experiência gastronómica (e não em grandes quantidades). Aqui, não se paga apenas aquilo que está no prato, mas também o ambiente, o atendimento, a qualidade do trabalho do chef… Atualmente, nestes momentos, é também natural fotografar a comida para partilhar nas redes sociais e, desta maneira, elevar-nos a um status, integrando-nos numa elite. De certa maneira, o filme procura criticar essa base que é tão comum, quer seja num restaurante, como num concerto, numa viagem, etc. 

“Eu gosto de personagens superficiais e tento compreendê-las porque, na verdade, elas são muitas vezes mais complexas do que imaginamos. E quando nos damos conta do nosso engano, é em nós próprios e nos nossos preconceitos que ficamos a pensar. Nunca tive uma má experiência em restaurantes de luxo mas nunca me senti confortável em nenhum deles. Visitei alguns com o máximo de estrelas Michelin graças ao David e ao Dan (David Benioff e D.B.Weiss, guionistas de A Guerra dos Tronos), que são grandes foodies. Mas nunca tive bagagem para os acompanhar e fiquei sempre embaraçado. Foi nisto que pensei quando li o guião de O Menu pela primeira vez. Acho que, para começar, este é um filme sobre o desconforto”, afirmou  Mark Mylod, numa conversa com o Expresso. 

Ao longo do filme, o personagem de Fiennes tortura os seus convidados no sentido literal e figurado. Além de colocar as suas vidas em xeque, o chef esfrega nas suas caras a hipocrisia das suas vidas e conquistas.

Crítica aos chefs Aliás, quem gosta de acompanhar reality shows de culinária, como o Pesadelo na Cozinha ou o Hell’s Kitchen – em Portugal comandado pelo chef Ljubomir Stanisic e no Reino Unido, pelo chef Gordon Ramsay -, vai conseguir encontrar algumas semelhanças entre eles e o filme. Por exemplo, com a ordem na cozinha, a forma como os ajudantes respondem ao chef, a necessidade de entregar os pratos na hora certa, a apresentação incorrigível, etc. 

E, tal como nos programas de televisão, o grande destaque do filme vai precisamente para o chef, não só pelo comando da cozinha, como também pela ordem militar que cria no restaurante. Segundo o realizador, a personagem diz-nos muito sobre esse “estrelato fútil”, alimentado pelos meios de comunicação e redes sociais, que os gigantes da cozinha atingiram nos últimos anos.

Para se preparar para o papel, Ralph Fiennes assistiu a inúmeros episódios de Chef’s Table, na Netflix, tal como contou à revista Variety: “Adoro o programa, cada personagem, cada cozinheiro é retratado de forma brilhante. Ver os episódios foi uma experiência muito recompensadora”, afirmou. Além disso, passou algum tempo com Dominique Crenn, chef francesa que já conquistou três estrelas Michelin. 

“Não tanto em relação ao trabalho em si, porque sou o chef, só cozinho num momento perto do final. Foquei-me mais em tudo o resto que vai acontecendo na cozinha. Ela deu-me muitas dicas sobre como me comportar, como me mover, como falar com as pessoas. Aprendi muito sobre a comunicação numa cozinha. Foi ótimo, e também me deu uma desculpa para tentar cozinhar em casa”, acrescentou o artista britânico de 59 anos.

Tal como o ator, segundo o Hollywood Reporter, os co-escritores Will Tracy e Seth Reiss, fizeram muitas pesquisas sobre quais poderiam ser os ingredientes específicos para cada prato do menu. Para manter o rigor da degustação, a equipa também enviou o roteiro para  Dominique Crenn, que “o adorou”. 

Juntos, durante o tempo de filmagens, criaram “várias iterações do que estava no papel”, garantindo que fosse “suficientemente escultural” e que a lista estivesse certa. “Dominique Crenn, cuja comida é emocionalmente quente, construiu esses pratos lindamente, mas também se certificou de que fossem emocionalmente frios para refletir o caráter do chef Slowick”, explicou o realizador à mesma publicação.