Sónia Peres Pinto e Daniela Soares Ferreira
As fortes chuvas que se fizeram sentir um pouco por todo o país, em que a Grande Lisboa, em menos de uma semana, foi novamente devastada trazem boas notícias. O cenário de seca com o qual Portugal se via a braços foi afastado, o que permite aliviar o problema de falta de água em quase todas as regiões, como admite ao i, Patrícia Gomes do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). “Provavelmente já podemos afastar um pouco esse cenário de seca, mas tudo depende da evolução dos próximos tempos. Mas, neste momento, até a região sul já está ligeiramente afastada desse cenário. Agora com a continuação do inverno vamos ver”, disse a meteorologista.
A responsável refere que a percentagem de água no solo nas regiões de norte e centro já estão acima dos 99% e também a região do sul, Alentejo e Algarve, já está com uns valores razoáveis: entre 40 a 60%. Números que são visíveis no último boletim semanal da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que data desta segunda-feira e que, por isso, ainda não inclui as chuvas desta terça-feira, em que depois de um período de seca severa, um quarto das barragens portuguesas já está acima dos 90% de capacidade.
Os gráficos mostram que as albufeiras estão a 65% da capacidade a nível nacional e há já barragens muito perto do limite, tendo em conta que em 18 albufeiras – que representam 23% do total – a capacidade excede os 90%, sendo que a maior parte delas está situada na zona do Douro.
Destaque para as do Carrapatelo (97%), Régua (97%), Pocinho (98%) e Serra Serrada (102%), que são as que apresentam os níveis mais elevados.
A maioria das albufeiras está com a capacidade acima dos 50% mas o sul não está igual ao resto do país. Sado conta apenas com 37,6%, seguindo-se o Alentejo com 30,9% e o Barlavento com apenas 9,7%. No Alentejo há que salientar o Alqueva com 65%.
É certo que depois dos apelos para os portugueses ficarem em casa e da ameaça de agravamento durante a tarde de ontem tudo indica que o pior ficou para trás, como admite ao i, Patrícia Gomes. “Mesmo hoje de manhã, apesar de assistirmos a um período em que a precipitação poderá ser, por vezes, forte, acompanhada de trovoada, a situação vai ter grandes diferenças comparando com o que se verificou ontem”. E aos poucos e poucos, a situação vai-se desagravando. “Quando chegarmos ao fim de semana já estamos a falar de aguaceiros, de um modo geral, pouco frequentes. Poderemos mesmo dizer que em algumas zonas fracos, já com algumas abertas. No imediato estamos a falar de cinco dias, em que o pior foi na madrugada de segunda e no dia de terça”.
Rasto de destruição Cenário desolador e zonas “em estado de catástrofe”. Foi desta forma que Carlos Moedas reagiu ao rasto de destruição provocado pelo mau tempo que se fez sentir em toda a Grande Lisboa, mas com especial enfoque na capital. O presidente da Câmara já veio admitir que “fenómenos que aconteciam de 50 em 50 anos agora estão a acontecer semanalmente”, como já tinha sido referido ao Nascer do SOL, Carlos Antunes, professor e investigador da Faculdade de Ciências de Lisboa e do Instituto Dom Luiz. “Uma coisa é o período de retorno atual de 100 anos, mas no futuro, no final do século, poderemos ter esses mesmos eventos com um período de retorno mais curto, de 30 em 30 anos ou de 40 em 40 anos, o que significa que os eventos muitos extremos se vão começar a observar com mais frequência e com intensidades maiores”.
O que é certo é que só até às 17h de ontem, choveu mais em Lisboa do que em qualquer mês deste ano.
Devido ao mau tempo, todas as escolas do concelho de Oeiras, quase todas de Loures e algumas na região de Lisboa, como é o caso de Belém, Alcântara, Saldanha, São Domingos de Benfica, Penha de França, Ajuda, Olivais, Campo de Ourique, entre outras, decidiram encerrar durante o dia de ontem por precaução. Sobre esse assunto, o Ministério da Educação diz que “no âmbito da sua autonomia, os diretores dos Agrupamentos de Escolas e Escolas Não Agrupadas decidem sobre o encerramento dos espaços escolares (o que já aconteceu em alguns casos) em função da avaliação das condições de funcionamento e das recomendações da Proteção Civil”, descartando a hipótese de o encerramento ter de ser ordenado pela tutela.
Para ajudar, as Forças Armadas foram acionadas para reforçar as operações em curso nas áreas mais afetadas pelas chuvas, na área da Grande Lisboa. “Face a esta situação houve a necessidade de haver este reforço de meios em particular ao distrito de Lisboa e à cidade de Lisboa”, disse André Fernandes, comandante nacional da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, acrescentando que foi chamado um grupo de bombagem de Santarém e ainda um grupo específico de Viseu “com grande capacidade de bombas de alto débito para auxiliar naquilo que é a reposição da normalidade”.
Perdas elevadas Os prejuízos vão-se somando. António Costa já veio admitir a possibilidade de recorrer ao fundo europeu de solidariedade para prestar apoio às vítimas das cheias na região de Lisboa. “Passa pela cabeça de alguém que sendo possível recorrer ao fundo de solidariedade da UE não o vamos utilizar?”, questionou o primeiro-ministro ontem no Parlamento.
Também a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) garantiu que já está no terreno. “As empresas de seguros estão a tomar, individualmente, medidas específicas para assegurar a pronta resposta aos seus clientes, deslocando equipas de profissionais experientes para o local, abrindo canais específicos de comunicação, agilizando a regularização dos sinistros e prestando o apoio e assistência às pessoas afetadas que beneficiam da proteção que os seguros conferem”.
A associação disse ainda que, de acordo com as primeiras indicações que vão sendo obtidas, “haverá já milhares de ocorrências participadas e valores significativos de indemnizações a processar, e as seguradoras tudo farão para que os seus clientes, individuais e empresas possam retomar a normalidade da sua vida com a maior rapidez possível”.
Recorde-se que, tal como o nosso jornal já tinha avançado, no caso de particulares, a indemnização em relação ao carro pressupõe um seguro que tenha um seguro com cobertura de danos ou fenómenos naturais. “São seguros facultativos e essas coberturas ficam de fora daquilo que é o seguro de responsabilidade civil obrigatória, ou seja, pressupõe por da parte do consumidor um investimento, isto é, a contratação de uma cobertura que é mais cara. E como tem de despender mais dinheiro sabemos que isso é um obstáculo para as famílias e muitas não contratam por isso mesmo”, garantiu Susana Correia, jurista da Deco.
Já em relação ao seguro com cobertura de danos próprios ou contra todos riscos, a responsável revela que é necessário verificar se esta cobertura que cobre os danos nos veículos e que inclui tempestades, inundações e até aluimentos de terras está incluída.
A jurista admite ainda que é mais fácil fazer essa ativação do seguro, no caso do carro ser ‘apanhado’ no meio das inundações. “Quando são situações esporádicas, as seguradores geralmente pedem uma prova junto do IPMA que tem de passar uma declaração a dizer que naquele determinado dia se verificou uma quantidade de chuva fora do normal e que entra nos padrões para ser indemnizado. Neste caso, as situações foram tão noticiadas que geralmente as seguradoras dispensam a prova de que houve uma queda de precipitação anormal. Ainda assim, os peritos podem fazer a vistoria aos carros para avaliar se os danos reclamados estão de acordo com aquilo que aconteceu”.
Uma situação diferente será para quem circulou na estrada e horas mais tarde poderá ter sido confrontado com a avaria do carro. “Neste caso, o condutor quando faz a ativação da cobertura, o perito da seguradora vai verificar quais são os danos que o veículo tem e de onde é que resultam: cheias e inundações. Coisa diferente seria resultado de um ato de negligência, em que as estradas estavam cortadas e o condutor insistiu na passagem. Aí poderá ser considerado negligência e a responsabilidade é do consumidor”.
Para os comerciantes, a dor de cabeça poderá ser maior. Apesar das coberturas existirem, ao que o i apurou, nem sempre são subscritas devido ao preço elevado e mesmo quando existem o valor da indemnização poderá não estar atualizado porque também isso tem implicações no preço a pagar. E em zonas mais suscetíveis de inundações, como Alcântara ou Algés, o prémio será ainda mais alto.
Falhas Ao longo do dia de ontem foi-se assistindo a cortes de eletricidade que afetaram milhares de clientes ao longo do dia na Grande Lisboa. Também os CTT admitiram “constrangimentos pontuais em algumas zonas do país” devido ao mau tempo, apontando mesmo o MARL (Lisboa) como um dos exemplos de “situações mais complexas”.
O cenário repetiu-se junto das operadoras. A MEO, NOS e Vodafone afirmaram que os serviços de telecomunicações não escaparam a falhas, mas apenas de forma “residual”, no entanto, garantiram que não se verificaram afetações significativas.
Carlos Moedas tem vindo a garantir que o grande túnel de drenagem de Lisboa se já estivesse pronto estas situações poderiam ter sido evitadas. O objetivo prevê a construção de dois túneis, cada um deles com cinco metros de diâmetro: um entre Campolide e Santa Apolónia, outro entre Chelas e Beato, cujas obras devem arrancar em março, implicando também obras na rede de esgotos.
Mas não convence. Ainda ontem a Quercus salientou que “os dados científicos demonstram que estamos perante uma crise climática, em que fenómenos climáticos extremos irão ocorrer com maior frequência e violência”, lembrando que “Lisboa é uma cidade com problemas de planeamento urbanístico, problemas de gestão de recursos, como entubamento de linhas de águas que fazem a drenagem natural das águas pluviais, entre outras más escolhas que culminam na situação atual”. E chamou a atenção para a necessidade de pensar a cidade de forma mais sustentável e para a “urgência de criar e fomentar espaços verdes biodiversos e multifuncionais nas áreas urbanas”
Também Carlos Antunes já tinha referido ao Nascer do SOL que “hipoteticamente, o próprio sistema que atualmente estamos a desenhar, e que vamos construir nos próximos anos, pode não ser suficiente, nomeadamente por haver mais construção junto à zona ribeirinha e isso dificultar mais a drenagem à superfície. Por outro lado, o nível de mar mais elevado dificulta a drenagem para o sistema que vai ser construído. Vamos ver o que é que este sistema vai fazer em situações futuras”.
Já o arquiteto Tiago Mota Saraiva, apesar de reconhecer que essa obra é importante, já tinha garantido ao nosso jornal que a construção dos novos edifícios na zona ribeirinha de Lisboa tem agravado o problema de inundações. “Não podemos estar continuamente a construir. E o problema agrava-se quando as câmaras obrigam os novos edifícios a terem estacionamentos nas caves. Devia ser considerado crime”.
E dá vários exemplos, como a CUF Tejo, e a nova sede da EDP, na Avenida 24 de Julho, dois edifícios que contam com estacionamentos subterrâneos, exemplo que será seguido no novo Plano Pormenor do Aterro da Boavista Poente (PPABP) – que vai ter quatro novas torres à beira-rio, entre Santos e o Cais do Sodré. “São compromissos urbanísticos já encerrados e se a Câmara se não os quiser vai ter de indemnizar os promotores. Todos esses projetos urbanísticos aprovados para a frente rio são um desastre. Por exemplo, o edifício da CUF Tejo estar em paralelo ao rio é um bloqueio das águas que andam ali”, salienta.
Situações críticas um pouco por todo o país Apesar de as situações mais gritantes terem sido vividas na região da Grande Lisboa, todo o país foi afetado pelas chuvas fortes que se fizeram sentir. Ainda que da parte da manhã muitas zonas estivessem em alerta vermelho, ao início da tarde a Proteção Civil baixou para nível laranja todos os distritos do continente, à exceção de Bragança.
A título de exemplo, em Monforte, no distrito de Portalegre, numa hora choveu um sexto do que é normal ao longo de todo o ano para aquela zona. O concelho contou com inúmeras habitações inundadas, estradas que colapsaram e muros que caíram. Pelo menos duas pessoas ficaram desalojadas.
Em Avis, no mesmo distrito, o presidente da Câmara falou em situação complicada, uma vez que várias habitações ficaram inundadas e um dos acessos à Estrada Nacional esteve submerso.
Também em Portalegre, algumas das casas ficaram inundadas “quase até ao teto”, com garagens, vias públicas e automóveis submersos. Uma das situações mais alarmantes aconteceu em Campo Maior, como confirmou a autarquia, falando numa “catástrofe” no centro da localidade
Mas não foi só por aqui. O mau tempo deixou vários lugares da Marinha Grande, no distrito de Leiria sem água devido ao mau tempo. Em Pombal, quatro pessoas ficaram desalojadas devido ao perigo de derrocada de um muro sobre a casa onde vivem.
Quatro pessoas desalojadas no concelho de Estremoz, no Monte da Balofa, na zona da União das Freguesias do Ameixial (Santa Vitória e São Bento). Este distrito registou ainda quedas de árvores e movimentos de massa.