A a história da Revolução Russa de 1917 já foi contada muitas vezes. Mas talvez nunca como o faz Antony Beevor, num livro que imaginou há 35 anos e que só agora concretizou, porque na altura o seu editor lhe disse: «Temos uma sugestão muito melhor para ti».
Rússia – Revolução e Guerra Civil, 1917-1921 (ed. Bertrand) não explica apenas como uma pequena fação de radicais conseguiu apoderar-se do Governo e usar o terror para submeter largas faixas da população. Analisa também todo o período de incerteza em que o Exército Vermelho (fiel aos bolcheviques) e o Exército Branco (que juntava monárquicos, conservadores, democratas e, de uma forma geral, todos os que se opunham aos bolcheviques) se digladiaram para decidir para que lado caía o destino da Revolução.
As atrocidades foram cometidas de parte a parte – e os horrores descritos ao longo das páginas do livro são de dar a volta ao estômago de qualquer um. No final, é uma daquelas ironias amargas de que a História está repleta: uma revolução que eclodiu porque os russos estavam fartos da Grande Guerra acabou por levar o conflito para o interior das próprias fronteiras do país e por prolongá-lo mais três anos.
Antony Beevor, que se formou na prestigiada Real Academia Militar de Sandhurst e foi discípulo de John Keegan, sucedendo-lhe no círculo restrito dos maiores especialistas em história militar da II Guerra Mundial, conversou com o Nascer do SOL através do Zoom.
Foi para mim uma surpresa quando soube que este livro ia ser publicado, porque conhecemos o seu trabalho mas como especialista na II Guerra Mundial. Quando se dedicou ao estudo do período da Revolução Russa?
Curiosamente, a primeira vez que pensei escrever este livro foi em 1987, quando já tinha terminado a primeira versão de A Guerra Civil de Espanha [ed. Bertrand]. Nessa altura já era óbvio para mim que a guerra civil russa tinha sido o conflito mais influente do século XX. Os historiadores têm toda a razão quando dizem que a I Guerra Mundial foi a catástrofe original. Mas a guerra civil russa, pela sua crueldade, o seu inacreditável grau de destruição, e as mortes e horror que desencadeou, teve um efeito poderoso, ao criar um círculo vicioso de medo que atravessou toda a Europa e chegou até Espanha. Do ponto de vista da burguesia, havia medo porque Lenine, e mesmo Largo Caballero, o ‘Lenine espanhol’, falavam da aniquilação da classe média, como se se tratasse quase de um genocídio de classe. E, claro, a esquerda tinha medo de uma contrarrevolução branca, fascista. E este círculo de receio mútuo ditou de facto a história do século XX e podemos dizer que nos trouxe até onde estamos agora. Se pensarmos nisso, de 1917 em diante, passando pela guerra civil de Espanha e a II Guerra Mundial, temos sempre o mesmo cenário, depois com uma ligeira mudança, quando se tornou uma questão de capitalismo contra comunismo, no que podemos considerar a Primeira Guerra Fria.
Há uma Segunda?
É a que estamos a viver agora. É diferente no sentido em que houve uma mudança de eixo, já não se trata tanto de esquerda contra direita ou de comunismo contra capitalismo, mas antes de autoritarismo contra democracia. Em termos de geopolítica, estamos num mundo diferente, porque começamos a perceber que mesmo na Primeira Guerra Fria os líderes comunistas, da China ou da Rússia, de uma forma geral mantinham a sua palavra nos acordos que faziam com o Ocidente. Hoje já não é assim. E esse parece-me um aspeto assustador do futuro. Tanto o Presidente Xi, na China, como Putin, na Rússia, não fazem quaisquer tenções de manter as garantias dadas ou os compromissos feitos, seja no que toca ao Mar do Sul da China ou, claro, o que vemos com Putin, que é capaz de num dia mudar de ideias em relação ao que assumiu no dia anterior. Isto abala toda a base da diplomacia tradicional. Como se pode chegar a acordo para acabar com uma guerra com alguém como Putin, que está apostado em usar essa trégua só para ganhar tempo para reequipar os exércitos e voltar a atacar? Voltando a 1917 e à Revolução Russa, obviamente foi um acontecimento que mudou o curso da História, provavelmente mais do que qualquer outro. Mas na altura em que propus escrever um livro sobre isso, o meu editor respondeu: ‘Não me parece que seja uma boa ideia. Temos uma sugestão muito melhor para ti’. E foi por isso que a ideia caiu. Na verdade, ainda bem que me disseram isso, porque acho que enquanto historiador não estava preparado, não tinha experiência suficiente para fazer justiça a este tema. Além disso, os arquivos russos não estavam ainda abertos. Só pude visitá-los pela primeira vez em 1992. Por isso, em certo sentido tive sorte. Pode parecer que este livro chega atrasado, mas a cronologia nunca é a melhor forma de avaliar a produção de um historiador. A História nunca é arrumadinha e a carreira dos historiadores também não, pelo menos no sentido de seguir um guião e uma sequência de acontecimentos.
Tendemos a ver a Revolução Russa acima de tudo como um acontecimento político e social. Com este livro quis mostrar que ela também teve uma gigantesca dimensão militar que não pode ser dissociada da política e social?
Essa é uma questão importante. Na verdade foi o meu velho amigo Orlando Figes que me encorajou nessa direção, porque basicamente todas as histórias da Revolução Russa, como você diz, e bem, são muito análises políticas, sobre divergências ideológicas e por aí adiante. E muito pouco sobre como a guerra e a própria revolução afetaram a grande massa do povo russo. Porque estes acontecimentos não se limitaram a Petrogrado e Moscovo. E é tudo isso que o livro tenta explicar. A coisa mais importante na Revolução, como disse antes, são os efeitos internacionais, mas a outra coisa que espero ter mostrado é o puro horror e crueldade que afetaram o povo russo. E aí percebe-se como a Rússia é prisioneira do seu próprio passado. Essas atrocidades traziam à memória os tumultos de períodos anteriores, como as invasões mongóis do século XIII. E se olharmos para o que está a acontecer na Ucrânia, emerge sempre a pergunta: ‘De onde vem esta crueldade?’. Esse é um grande debate, e muito importante, a meu ver.
Uma das chaves do triunfo dos bolcheviques parece ter sido a simplicidade da sua mensagem. Os slogans primários apelavam mais facilmente aos pobres, às pessoas sem estudos, às bases?
É verdade. Temos de nos lembrar de que, no caso da maioria dos partidos democráticos, desde o Partido Kadet e dos da direita e centro aos Socialistas Revolucionários, mencheviques e por aí fora, estamos a falar de um nível muito mais intelectualizado. Curiosamente, isto foi retomado na eleição entre Clinton e Trump. Analisaram a linguagem usada por uma e outro e descobriram que a de Trump raramente recorria a expressões que não estivessem ao alcance de uma criança de 11 ou 12 anos, enquanto Clinton falava essencialmente a um nível universitário, que não chegava à maior parte da população. Nesse sentido, não é um fenómeno completamente novo. Os bolcheviques foram muito espertos. Mesmo não tendo ganho as eleições para a Assembleia Constituinte, o que deixou Lenine furioso, terem obtido 30% foi um resultado impressionante, tendo em conta o seu ponto de partida um par de meses antes. Mas a questão é que era de longe mais eficaz limitarem-se a repetir máximas muito simples que a população analfabeta conseguia apreender. Muito mais do que os democratas moderados, tanto à esquerda como à direita, cuja mensagem passava ao lado da vasta maioria da população.
Outro ponto fundamental, que aliás já referiu, foi o ódio à burguesia. É espantoso como Lenine emprega para os burgueses o mesmo tipo de linguagem que os nazis viriam a usar cerca de 20 anos mais tarde para os judeus. Acha que este ódio era genuíno ou foi instrumentalizado para fazer da burguesia o bode expiatório de todos os males, como aconteceu com os judeus na Alemanha nazi?
Penso que não era inteiramente ‘fabricado’. Não devemos esquecer que o irmão de Lenine tinha sido executado e o próprio Lenine teve de se exilar, portanto havia algo de muito pessoal nesse ódio. Ao mesmo tempo, para concretizar a sua obsessão de virar a sociedade russa de pernas para o ar, de destruir o passado ao ponto de o tornar irrecuperável, Lenine estava preparado para dizer e fazer o que fosse preciso. Grosso modo, o poder bolchevique, e por conseguinte toda a base da União Soviética, assentou em três mentiras muito simples e eficazes. A primeira era a promessa aos operários, ao proletariado, de que iriam ser eles a mandar nas fábricas, por intermédio dos sovietes, quando, evidentemente, os bolcheviques iam tomar conta dos sovietes e mandar nelas sozinhos, ou seja, o partido e Estado ficariam com todo o poder. A segunda mentira foi a promessa, e isto foi tirado dos socialistas revolucionários de esquerda, de que os camponeses ficariam com toda a terra. Embora o próprio Lenine desprezasse esta ideia, acabou por aceitá-la relutantemente, sabendo que era a única forma de obterem o apoio do campesinato num momento crucial.
E a terceira mentira?
A terceira mentira foi a promessa de acabar com a guerra para conquistar os soldados, quando Lenine não tinha qualquer intenção de acabar com a luta. Basicamente, queria apenas mudar o hino da guerra imperialista contra a Alemanha para o de uma guerra civil à escala internacional. Desse ponto de vista, Lenine estava disposto a dizer o que fosse preciso para alcançar o poder de que precisava para converter a sociedade de alto a baixo. Muitas pessoas colocam questões contrafactuais [a também chamada ‘história virtual’, do que poderia ter acontecido se…], do tipo ‘Os brancos poderiam alguma vez ter ganho a guerra?’. Neste caso particular, uma das coisas que posso afirmar sem grandes dúvidas – e aqui deparamo-nos com a tese histórica dos grandes homens, aceitemo-la ou não – é que não creio que alguma vez os bolcheviques tivessem conquistado o poder se não fosse Lenine. Foi a sua determinação, a sua clareza mental, sempre a olhar para o futuro, e a sua total implacabilidade que ganharam a disputa política e as discussões estratégicas esgrimidas na guerra civil. Desse ponto de vista, o papel de Lenine foi decisivo, particularmente no primeiro momento, tanto em 1917 como em março de 1918 com o tratado de Brest-Litovsk [que pôs um ponto final às hostilidades com a Alemanha, com grandes perdas de território para os russos]. Mesmo os outros membros do Comité Central achavam que ele era louco quando propôs estes planos depois da sua chegada à Estação Finlândia [em Petrogrado, atual S. Petersburgo] no início da primavera de 1917. Ninguém o levou a sério. Subestimaram completamente a ameaça em parte por os bolcheviques serem um partido tão pequeno, e em parte também porque ninguém acreditava nos planos de Lenine para o futuro.
Não é uma ironia cruel que uma revolução que começou com o descontentamento provocado pela guerra só tenha feito com ela se prolongasse mais três anos?
Claro que é. Não há nenhuma outra área da atividade humana tão marcada pela lei das consequências indesejadas como as revoluções. No entanto, esse prolongamento não foi uma mera coincidência. Desde o princípio que Lenine dizia que ‘a guerra civil é a forma mais nítida do conflito de classes’.
Falámos da burguesia, mas não era o único grupo social que Lenine abominava. Os agricultores, e não apenas os grandes proprietários, os kulaks, como se alegava, foram um alvo dos bolcheviques. A revolução foi o confronto entre a velha e a nova Rússia, mas também entre a cidade e o campo?
Sim. E acho que essa foi uma das razões da revolta dos camponeses, e não apenas dos kulaks. Como é que se distinguia um camponês rico de um camponês médio? Não era possível. Por isso os bolcheviques propuseram outras categorias. Quando o campo se voltou contra eles tentaram criar uma guerra de classes no mundo rural. E foi aí que prometeram aos camponeses pobres a oportunidade de se vingarem dos camponeses ricos. Isto foi completamente desastroso para a produção de alimentos porque significava que os agricultores eficientes foram os primeiros a serem atacados. O ódio ao campesinato acabou por gerar outra ideia entre a grande maioria dos agricultores, não apenas os ricos, de que estavam a ser tratados como os servos do proletariado, cabendo-lhes produzir comida para esse proletariado, porque era aí que residia a base do poder bolchevique nas cidades. Quando as requisições de comida começaram a despojar as quintas, e não apenas dos excedentes de produção, como diziam, mas até das sementes para as colheitas do ano seguinte, as fomes vieram sem qualquer surpresa. Estas fomes foram completamente provocadas pelo homem, não houve qualquer sabotagem pelos kulaks. Ou melhor, acabaram por gerar mesmo sabotagem pelos kulaks, mas porque a situação era tão grotesca que passaram a transformar cereais em vodca e a abater todo o gado para não terem de o mandar para as cidades.
No seu livro nota que Kerensky, o primeiro líder do Governo Provisório que sucedeu ao czar, via-se como o ‘Bonaparte russo’. As pessoas – e estou a falar sobretudo dos políticos – viam 1917 como um remake da Revolução Francesa de 1789?
Além dessa houve muitas outras referências à Revolução Francesa, mesmo entre os bolcheviques. Por exemplo, o vermelho e o branco vinham do barrete frígio vermelho dos revolucionários e do cocar [penacho] branco dos Bourbons. No que toca às matanças, é verdade que não levaram a guilhotina para a Rússia, tinham as barcaças que afundavam com pessoas amarradas no interior e coisas desse tipo. Mas a Marselhesa foi a canção dos revolucionários antes da Internacional. Havia muitíssimas referências ao passado. Quanto a Lenine, estava sempre mais preocupado em fazer paralelos com a Comuna de Paris de 1871, por ter fracassado. Além destas referências, havia uma semelhança na linguagem genocida da ideologia, na tentativa de aniquilar toda uma classe, a aristocracia e burguesia. Algumas dessas coisas vieram de França. Mas a maioria foi preparada na Rússia. Nos escritos e discursos de Lenine há expressões como sanguessugas, vermes, ratazanas, tudo o que pudesse ser alvo do ódio dos seres humanos e esmagado – um tipo de linguagem, lá está, muito usado pelos nazis. Aliás, no livro aponto para várias relações entre estes dois regimes, por exemplo como os SS copiaram muitas das práticas da Cheka [polícia secreta soviética] por exemplo os homicídios em massa, o tiro na nuca, as valas comuns, as câmaras de tortura. Há um elo muito claro entre os dois. Vemos como na II Guerra Mundial Estaline copiou uma quantidade de práticas alemãs e, por seu lado, Hitler também copiou muito dos soviéticos, tratasse-se de unidades de bloqueio, como agora vemos também na Ucrânia, especialmente por trás do grupo Wagner [grupo privado de mercenários ao serviço dos russos], do fuzilamento dos desertores, ou ideias em relação ao uso dos prisioneiros. Na II Guerra foram mandados para os gulags e usados para limpeza de minas, prometiam-lhes a liberdade em seis meses, tal como agora Prigozhin promete aos prisioneiros de guerra que se juntem ao Grupo Wagner. E, claro, Hitler copiou a ideia dos comissários para a liderança Nacional Socialista dos oficiais, porque percebeu que precisava de politizar o Exército, porque não o considerava suficientemente leal aos nazis. Vemos muito este intercâmbio de ideias neste período. Algo que também se torna muito claro é o que diz respeito às baixas. Hitler desprezava os receios em relação às baixas na Rússia. Mas na Rússia foi muito pior. Algo que vem muito de trás, não apenas da I Guerra Mundial mas até antes do tempo dos czares, é a forma como a liderança russa maltratava o seu próprio povo. Os soldados eram tratados como os servos do século XIX antes da libertação. Isto contribuiu para aquilo a que chamo a ‘teoria da opressão à pancada’, que foi uma das razões por que os soldados russos sempre trataram tão mal os civis, e em especial as mulheres, como estamos agora a ver na Ucrânia. A minha tese é que eles foram tão mal tratados e humilhados pelos seus próprios líderes que depois se vingam em todos aqueles com que se cruzam, seja na Ucrânia hoje, na Polónia ou na Hungria em 1945.
E Lenine também libertou todas essas forças destrutivas. Nesse caos, houve grandes abusos, muita destruição gratuita?
O problema é que em 1917, embora o Governo Provisório tivesse ministros e ministérios, não tinha poder efetivo. A polícia tinha colapsado. O exército estava a implodir. Na verdade, alguns dos piores saqueadores eram, claro, soldados vindos da frente que estavam a desertar e a espalhar-se pelo campo, que despejavam a sua raiva e amargura na estrada destruindo tudo o que era belo. Vingavam-se desfigurando e queimando as mansões que encontravam, e achavam que de alguma forma iam sentir-se melhor. Mas claro que não fez. Só os fez sentirem-se pior e mais zangados. Até porque normalmente a primeira coisa que faziam era dirigirem-se para a adega ou para a destilaria. E a seguir ficavam com uma ressaca monumental. Isto foi uma tragédia para a Rússia, como seria para qualquer sociedade que estivesse a tentar passar de uma autocracia para uma democracia. No livro chamo a este período ‘A viúva grávida’. Há desacordo em relação ao futuro, está tudo num caos porque não há polícia nem exército para manterem a ordem, a situação está propícia para ser aproveitada por um pequeno grupo como os bolcheviques, que sabem exatamente para onde querem ir – enquanto todos os outros não conseguem chegar a acordo em relação ao rumo político a tomar. Kerensky tinha sido um líder profundamente carismático ao início, mas na verdade não tinha uma ideia clara do que pretendia alcançar. Era basicamente um fantasista, um lírico que acreditava que se podia caminhar para uma nova Rússia democrática quando na realidade não tinha controlo de nada. Depois há todo o mal-entendido com o General Kornilov, uma confusão monumental. E tudo isso deixa a porta escancarada para Lenine e os bolcheviques. É sempre nestes períodos em que uma sociedade está mais vulnerável e incapaz de se defender que fica o caminho aberto para a destruição da cultura. Lenine acolhia com satisfação essa destruição porque queria chegar a um ponto em que o passado fosse irrecuperável. Foi por isso que desejou a matança da aristocracia e da família real. Pura e simplesmente para ter a certeza de que não era possível voltar atrás.
E Lenine não se preocupava em relação a como recuperar o controlo e repor a ordem?
Naquele ponto específico, o poder bolchevique estava realmente focado nos cidadãos do Norte e certamente não no Sul. E foi aí que ele viu a necessidade do terror vermelho. Quando se está em minoria numa determinada zona, não diria que é inevitável, mas o mais provável é que se use o terror como forma de manter o controlo. Foi por isso que a falange na Andaluzia, por exemplo, usou esse tipo de terror, para instituir o seu poder e assumir o controlo. Passou-se mais ou menos como os horrores da Cheka nas cidades da Ucrânia e sul da Rússia, para impor uma certa apatia, ou medo, de modo a reduzir a resistência. E então é aqui que tem origem esse ciclo de revolta, repressão e vingança – em particular com os cossacos, em 1917 e 1918 – até a Guerra Civil começar a tomar um curso mais uniforme no final de 1918, e certamente ao longo de 1919, que é o ano decisivo da guerra civil russa.
A morte dos Romanov também é um momento importante – e dramático da revolução. Não teria sido mais sensato usar a família do czar como moeda de troca?
Lenine estava determinado a ver-se livre deles mais cedo ou mais tarde. Havia divergências no seio do Comité Central do Partido Bolchevique sobre se eles deveriam montar espécie de julgamento-espetáculo em Moscovo. Algumas pessoas perguntam: ‘Porque é que o Governo Britânico não fez mais esforços para os resgatar?’. O que parecerem esquecer é que na verdade foi Kerensky quem os mandou para a Sibéria, na esperança de os pôr fora de perigo na primavera de 1917. Foi aí que os Romanov foram enviados para Tobolsk, na primeira etapa da sua prisão siberiana. A partir daí tornou-se impossível resgatá-los. E muitos dos outros membros dos grão-duques da família imperial mais ampla também fugiram para a Sibéria, pensando que essa poderia ser uma maneira de escapar. Outros foram para o sul, para a Crimeia, que era uma espécie de lugar de eleição. Mas a região já havia sido tomada pelos Vermelhos. E foi um milagre eles terem sido resgatados pelo couraçado britânico HMS Marlborough em 1918. Portanto, a verdadeira questão para Lenine era que, uma vez que estavam tão longe, não eram um assunto importante. Lenine tinha coisas mais urgentes em que pensar. Mas assim que os checos começaram a avançar sobre Ecaterimburgo, o risco de os Romanov serem resgatados e se tornarem um símbolo de resistência Lenine ficou preocupado, e por isso a ordem para se verem livres deles foi aprovada. Acho que nunca houve realmente qualquer intenção de tentar negociar ou mesmo obter dinheiro. Em relação a isso, o que fizeram foi vender tudo o que pudessem. E por isso pilharam as igrejas e venderam os tesouros, bem como pinturas e tudo o mais a que pudessem deitar a mão. Mas tudo isso veio um pouco mais tarde, depois da guerra.
Existe uma discussão acesa sobre se a miséria do povo da União Soviética foi uma consequência da perversão dos ideais comunistas ou se ela já estava inscrita no ‘ADN bolchevique’ desde o primeiro minuto. Qual é a sua posição?
Os ‘ideais comunistas’ só podiam ser impostos universalmente pelo terror e essa conversão forçada compulsão só poderia levar à miséria, à injustiça, à incompetência e a um terrível desperdício de vidas. A miséria da União Soviética não estava no ADN bolchevique, mas a crença perigosamente equivocada na engenharia social de que a reviravolta da sociedade transformaria a humanidade certamente estava.
Uma última questão. O facto de ter estudado numa academia militar permite-lhe ter uma melhor compreensão da natureza e evolução dos conflitos, de como as coisas se passam numa guerra?
Sim, ajuda muito para compreender o comportamento aparentemente ilógico dos exércitos, especialmente porque, no meu ponto de vista, a principal tarefa do historiador é primeiro compreender e depois transmitir o que sabe ao leitor.