Federico Bertolazzi nasceu em Terni, na Itália, em 1973. Doutorado pela Universidade de Lisboa, é professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Roma Tor Vergata e responsável científico da Cátedra Agustina Bessa-Luís. É um dos mais respeitados especialistas da obra de Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen, de quem preparou uma edição crítica integral da prosa dispersa não ficcional – ensaios, entrevistas, testemunhos, depoimentos -, cuja publicação foi entretanto recusada pelos herdeiros de Sophia. Trata-se de meio século de participação da autora de O Nome das Coisas no debate público e cujos materiais ficam a hibernar «por um incompreensível veto imposto pelos herdeiros». No Reino Terrível da Pureza, acabado de publicar pela Documenta, recolhe uma proveitosa bibliografia desses textos dispersos, seguida de três admiráveis ensaios sobre a autora.
De que é que se encantou primeiro, da literatura portuguesa ou de Portugal?
Na verdade, comecei o meu curso na universidade estudando economia e nunca cheguei a acabar esse curso porque sempre gostei de poesia. Foi um gosto que ganhei comprando uma revista muito importante na Itália, que se chama Poesia, de Crocetti, um editor de Milão com o qual acabei depois por colaborar, o que me deu muita alegria. Era uma revista com dez mil exemplares a cada mês, agora já a reorganizar-se numa nova série, e que trazia sempre imensa informação sobre poetas estrangeiros, novos poetas… E eu lembro-me de ler umas coisas do Eugénio de Andrade que foram publicadas nessa revista, na altura ainda estudava Economia.
Estávamos em que ano?
Creio que em 1997. Depois, em 1998, marquei uma viagem para Portugal e foi aí que comecei a minha relação directa com este país, um pouco à procura dos lugares do Eugénio de Andrade, que já admirava. Depois, mudei de faculdade, passei para o curso de Letras, sempre na Universidade de Roma. Fiz uma tese de licenciatura sobre Chico Buarque e depois candidatei-me ao doutoramento em Lisboa para estudar o Eugénio de Andrade, o que vim a fazer com a orientação da professora Paula Mourão; foi uma experiência muito interessante. E ao mesmo tempo comecei a dar aulas em Itália, na Universidade de Tor Vergata. Publiquei depois a tese sobre o Eugénio, uma antologia também do poeta.
E como é que essa inversão de marcha profissional foi recebida na família?
Na altura, o meu pai tinha uma empresa e cheguei a ponderar continuar a trabalhar lá, mas aquilo não era para mim, era diferente do que eu imaginava. Se bem que aquela parte da economia ligada à filosofia e às teorias económicas fosse interessante, o ambiente da Economia era muito árido: tudo o que tinha a ver com números, contas, dinheiros não se me ajustava. O meu pai reagiu muito mal, inicialmente, mas depois ficou muito contente. Ele era engenheiro, e os engenheiros funcionam…
E nessa primeira viagem a Portugal que impressões colheu?
Tratou-se de uma exploração individual e, assim que cheguei ao Porto, fiquei com uma sensação de tranquilidade, sem pressa de ver coisas, porque sabia que ia voltar de alguma maneira. Não sabia como, mas passeava como se tivesse de voltar no dia seguinte. Acabado o curso, fiz um ano de Erasmus na Faculdade de Letras de Coimbra. E aí é que consegui ir a uma apresentação que o Eugénio de Andrade fez no Porto de Os Sulcos da Sede, acabado de publicar. Foi a primeira e a única vez que estive com ele. Trocou comigo umas palavras, naquele seu jeito majestoso. Ele tinha uma impressionante precisão nos gestos, uma consciência plena de onde e como devia estar. E a obra dele, organizada como a deixou, aponta exatamente para isto, sem pontas soltas, tudo fechado e arrumado, da maneira que ele achava que tinha de ser.
Como é que viu, na altura, a extinção da Fundação Eugénio de Andrade, formalizada em 2011?
É uma coisa curiosa, daquelas que muito provavelmente só acontecem em Portugal: uma fundação em vida do poeta e extinta depois da sua morte. Pelo que sei, tratava-se de uma questão de sustentabilidade jurídica que veio a falhar e que motivou este desfecho. Eu cheguei a ir à Fundação, ainda em vida do poeta (ele não descia porque já estava adoentado) e tive oportunidade de consultar o espólio, que não estava ainda organizado: estava em pastas, coisas ainda com agrafos. A minha única preocupação é que esse espólio, que foi para a Biblioteca Municipal do Porto e agora parece que vai transitar para a Universidade do Porto, possa ter o tratamento que merece. É uma pena não haver uma coordenação superior a nível nacional destes materiais que são, de certa maneira, monumentos nacionais. São testemunhos muito importantes de personalidades, autores, artistas que atravessaram o tempo e a sociedade de uma maneira única. Seria necessário porque estes espólios acabam por ficar nas mãos de herdeiros que, até com as melhores intenções, não têm a capacidade de os tratar de forma adequada.
E em Itália, com funcionam as coisas neste campo?
Lá, há uma atitude, mais aceite, de deixar aos especialistas as coisas que aos especialistas pertencem. Não é por sermos filhos de um grande artista ou de um grande escritor que reconhecemos e sabemos tratar um legado da melhor forma. É claro que o nosso interesse é zelar pelo respeito e pela difusão da obra da pessoa a que estamos afectivamente ligados, mas é necessário reconhecer uma diferença de competências e respeitá-las. Há casos de escritores que não são publicados porque os herdeiros não acertam na quota de direitos de autor e questões do género. Costumo dizer que ao lado dos direitos do autor deveriam ser contemplados os deveres do herdeiro, porque a obra de arte que alguém herda não lhe pertence, pertence à humanidade. E o herdeiro só tem posse, possibilidade de a gerir durante aqueles 70 anos. Não está no âmbito das competências que lhe cabem impedir a circulação. Isto é, a meu ver, um crime a nível cultural. E estou a lembrar-me de autores como Teixeira de Pascoaes, José Rodrigues Miguéis… Na Índia, há aquele caso extremo de Rabindranath Tagore, que quando os herdeiros não se entendiam, o governo retirou-lhes completamente as competências para que o autor pudesse ser publicado.
O Jorge de Sena escreve, talvez com aquele excesso que lhe é característico, que, de um modo geral, as famílias não conhecem «as obra dos seus maiores por lado nenhum, sequer pelas lombadas»…
Sim, e a relação com a obra naturalmente não é a mesma de quem a estuda e interpreta. Até há casos em que os autores podem vir a ser censurados pelos próprios herdeiros, por terem posições que eles não partilham.
Tem preparada uma extensa edição crítica com a prosa dispersa de Sophia cuja publicação entretanto foi recusada pelos herdeiros da poeta. O que sucedeu?
Depois do primeiro colóquio internacional na Gulbenkian, que foi em 2011, quando se deu a sessão de cedência do espólio de Sophia à Biblioteca Nacional, a que se seguiu, em 2012, uma antologia da Sophia, pedi aos herdeiros autorização para trabalhar no espólio, porque queria ir atrás dos dispersos. E na verdade eles abundam; e acabei por fazer uma bibliografia extensa. Foi um trabalho de anos, de consultas de hemeroteca, um trabalho de rato de biblioteca. E dei-me conta de que é um material extraordinário. Desde 1953 até 2003, Sophia aparece sempre nos periódicos com alguma coisa brilhante a dizer sobre a cultura, a sociedade… Todas estas publicações – artigos, entrevistas… – a meu ver são muito interessantes e são um testemunho fundamental de uma vivência cultural, sempre atenta, lúcida, original. De modo que entreguei tudo o que recolhi à Assírio & Alvim mas os herdeiros não quiseram continuar com a publicação, que ficou suspensa, hibernada. A intenção era publicar um volume extenso com toda a prosa não ficcional, à semelhança do que se fez, por exemplo, com a Agustina Bessa-Luís, com o que o próprio Eugénio de Andrade fez, recolhendo três volumes.
E conversou com quem?
Com a filha de Sophia, Maria Andresen, que é a cabeça de casal.
E quais foram os argumentos?
Disse-me que a Sophia não era ensaísta, era poeta. Mas na verdade o que interessa não é o rigor académico dos ensaios, mas a leitura poética através dessas outras formas de expressão, como a entrevista. E há aspectos extraordinários, como por exemplo a relação que manteve com a Vieira da Silva, textos que revelam uma profundidade de admiração e uma maneira de se alimentar daquelas reflexões para a sua própria reflexão. Basta confrontar estes textos com Poesia e Realidade, a arte poética – lúcida, clara – que Sophia escreve em 1960, que é um texto magnífi co e que nunca mais foi reproduzido. E quando escreve, por exemplo, sobre Cecília Meireles as afinidades são notórias. E há interpretações momentâneas sobre Hölderlin, esta publicada no Jornal do Comércio. Enfim, textos sobre Camões, Tolstoi sobre quem diz: parece que estamos a viver as nossas próprias memórias. A relação que se tem com Guerra e Paz é uma coisa extraordinária (eu li cinco vezes: é como voltar a ouvir a voz de um ente nosso que nos conta a nossa própria história, a história da nossa vida, da nossa família).
O argumento parece ter pouca força… consegue descortinar outros motivos mais consistentes?
Se há não me são acessíveis. Acho que há uma reticência talvez por não se conseguir enxergar claramente o que esta parte da obra representa. Eu sei porque a li, conheço-a, estudei-a. Os herdeiros conhecem apenas uma parte. Tenho muita pena e ainda guardo a esperança de que voltem atrás nesta decisão. E há outros tantos textos que ela pronunciou, mas não chegou a publicar na forma escrita, conheceram apenas a forma manuscrita, nalguns casos com emendas. Dou-lhe apenas um exemplo: duas conferências sobre Fernando Pessoa, uma proferida no Centro Nacional de Cultura, outra no Palácio Fronteira, que são a base de todos os poemas que veio a fazer sobre Fernando Pessoa. Aquela ‘guerra’, aquela reflexão sobre Pessoa nasce numa prosa crítica e depois toma a forma de poema, o que é muito interessante. Conseguir traçar este percurso seria excelente.
Sendo Maria Andresen poeta com vários livros publicados, esperar-se-ia outro entendimento…
Até que ponto os herdeiros de Sophia podem bloquear, cercear, censurar, no limite, uma obra que só temporariamente lhes pertence? É um pouco incompreensível esta dupla medida. Mas eu sou um optimista e espero mesmo que voltem atrás. O espólio da Sophia é uma mina de ouro e é uma pena não haver ninguém a estudá-lo. E espero que a publicação deste livro seja um estímulo para se ver o que é possível encontrar: aquilo que a professora Maria Lúcia Lepecki chamava uma narrativa de percurso intelectual. Porque, entre as revistas em que Sophia publica, os círculos de pessoas com quem publica, os temas que enfrenta – no meio século de cultura portuguesa resumida numa perspectiva – se tudo isto for cruzado com a bibliografia canónica é algo extraordinário. E então se pensarmos nos programas de rádio que a seguir ao 25 de Abril de 74 ela foi fazer, trazendo como exemplo máximo da liberdade, da nova liberdade, as elegias de Camões, isto é espantoso. Ela usava a poesia para mostrar a potência da liberdade, a sua concretude. É a ideia da cultura posta em comum. Era avessa à cultura de clérigos e letrados.
Curiosamente, o público associa o nome de Sophia a um certo elitismo…
Ela vinha de uma família de elite mas a sua atitude, avessa às elites, era a de considerar ‘o socialismo como uma aristocracia para todos’, o que era extraordinário dentro do Partido Socialista, que ela integrava, e dentro da Assembleia Constituinte, onde as intervenções dela têm sempre em consideração o papel desalienante da cultura e da poesia. E são de uma lucidez desenfreada. ‘A cultura é cara mas a incultura é mais cara ainda’ é justamente um dos títulos dos textos dela. Dentro desta bibliografia nós reconstruímos uma vivência muito profunda.
Pelo estudo aprofundado que tem feito da obra de Sophia, e pelo trato próximo que tem mantido com a figura, como lhe parece que ela reagiria a este bloqueio por parte dos herdeiros?
Eu acho que Sophia desaprovaria completamente, mesmo porque ela era muito ciosa do que fazia. E sendo uma criadora extremamente rigorosa nunca permitiria nenhuma manipulação exterior, nenhuma intervenção no trabalho dela, cuja consciência era muito elevada. Os herdeiros de Sophia têm uma ligeireza que não se explica. Nenhum outro autor vê um conto inacabado [‘Os Ciganos’], concluído e publicado por um neto [o jornalista Pedro Sousa Tavares]. É inacreditável! Imagine, por exemplo, o Ernest Hemingway e o inacabado ‘Islands in the Stream’ postumamente acabado. Isto não existe! Noutros países tudo isto é muito mais sagrado. Sophia, que lutou toda a sua vida contra a censura, acaba censurada dentro da sua própria casa. É paradoxal.
E é isso que custa também?
Claro, é isso que custa mais. Admiramos na Sophia aquela lucidez, a busca de clareza, a transparência, a tentativa de infringir e quebrar limites. E depois quando vemos que não se deixa atingir essa dimensão, por motivos que não conseguimos perceber, isso deixa-nos muito tristes. Espero pois que os herdeiros olhem para esta bibliografia com a calma e a lucidez devidas e percebam que toda a obra da autora se debate contra as sombras da falta de conhecimento. A literatura é uma outra forma de conhecer – por fusão. É a diferença entre o conhecimento do cientista, numa atitude diante de um corpo morto, estudado e analisado. O conhecimento do poeta é um conhecimento por fusão, um corpo vivo que ele ama e com o qual se une. Esta é a realidade que Sophia vive, e é uma perspectiva extremamente potente. E anunciámos esta publicação já em 2018, quando houve o primeiro colóquio do centenário de Sophia, porque eu sabia que isto alimentaria uma nova perspectiva crítica sobre a sua obra. Há muitas coisas que se podem repensar em torno da obra dela, há tantas chaves para ler a obra que seria interessantíssimo ter estes instrumentos à disposição. Nos colóquios mais recentes – na Gulbenkian, no Rio de Janeiro, em Roma, em Nottingham – havia, por parte dos estudiosos convocados, raras referências a textos não canónicos. Há neste livro uma bibliografia que dá a medida da amplitude da reflexão de Sophia.
Os seus trabalhos têm provado que o discurso académico pode ser claro sem perder a densidade ou a criatividade. Como é que reage a uma certa obscuridade tipicamente académica, a que por vezes se acrescenta uma dimensão um tanto enfastiante?
Vejo com pena. Há pessoas com muito potencial, que escrevem bem, dizem coisas interessantes mas falta ali um brilho criativo. Parecem não aproveitar os exemplos e os autores a que se dedicam. Parece-me que o principal no nosso trabalho com os poetas é deixar-nos influenciar pelo melhor que eles podem. O meu método é conhecer o mais possível do autor para alimentar a minha perspetiva crítica. E quando se trata de autores tão coerentes, tão sólidos, como o Eugénio de Andrade ou a Sophia, a leitura intratextual é sempre muito rica porque dentro de um livro encontramos uma coisa que nos esclarece outro livro, conseguindo traçar assim uma rede de relações. Eles perseguem as suas próprias obsessões até à exaustão. Depois, a estrutura, a sintaxe do pensamento vem naturalmente porque temos uma capacidade de nos orientar nestes universos que se torna o nosso ambiente. A clareza é o corolário, é uma questão de concretude. Se eu penso e quero mostrar uma coisa, o que me preocupa é que essa coisa tenha a sua plasticidade. A Sophia ficou contente quando o João Cabral de Melo Neto disse que a poesia dela tinha muito substantivo concreto. É justamente isto: há coisas que acontecem na obra dos poetas e estas coisas têm a sua evidência.
Há lances nestes ensaios que se referem à transparência, à solidez e densidade de Sophia, e que acabam por calçar bem ao seu próprio modo de ser ensaísta, avesso a atavios…
A Adília Lopes, no seu último livro, estabelece a diferença entre a escrita «farfalhuda» [risos] e a escrita depenada. Acho que é isto. Eu considero a escrita de ensaio um trabalho criativo, em que o estudo se alia a uma necessidade criativa. E toda a investigação científica, mesmo tratando-se de ciências exactas, parte de um estímulo, chamemos-lhe inspiração. É na técnica da criação que nos envolvemos de uma outra forma e esquecemos o lado vaidoso da escrita para nos concentrarmos no lado necessário da escrita. E é ali que acontecem as coisas mais interessantes, mais bonitas.
A mão longamente afeita à tradução de poesia também ajuda?
Sim, há um treino que vem da tradução da poesia. Quando eu traduzo Eugénio, Sophia, Camões aproprio-me de um universo estético que se torna meu. Aquela urgência que estava na base do poema torna-se numa urgência minha. Eu vivo o trabalho de tradução de forma criativa, o que implica dormir com um caderno ao lado, andar no carro sempre com papel e lápis para resolver um verso, uma rima. É algo que vem connosco e não nos larga até ser resolvido, até brilhar na sua exactidão. A escrita de ensaio, se partir de uma necessidade destas, é enfrentada de uma forma naturalmente fluente e aí não há muito espaço para efeitos. E nestes ensaios que juntei à bibliografia da prosa dispersa de Sophia quis dar uma amostra do que é possível fazer.
Nota: na versão em papel referia-se que No Reino Terrível da Pureza foi publicado pela Assírio & Alvim, quando o foi pela Documenta. Pedimos desculpa aos visados pelo lapso.