Este ano está prestes a chegar ao fim. Para trás fica a recordação das coisas boas e más que passaram pela vida de todos nós e a saudade por aqueles que ficaram pelo caminho.
Agora, de olhos postos no futuro, começamos a construir o novo ano à nossa imagem e semelhança, com os planos que cada um tem para ele; e com os seus desejos e esperanças, por mais escondidos que estejam, apesar de muitos deles não dependerem de nós.
Que acabasse a guerra e voltasse a paz ao mundo inteiro, não depende de nós. Que não houvesse mais covid e não se falasse mais de pandemia de modo a sermos livres plenamente, também não. Que o SNS seja remodelado, como todos desejamos e merecemos, parece-me mais uma miragem do que um desejo concretizável, e não está, igualmente, nas nossas mãos.
Como consequência disso, e sendo realista, penso que vamos continuar na mesma – isto é, com mais portugueses sem médico de família, com falta de resposta dos serviços ao ponto de se esperar mais de um ano por uma consulta hospitalar, com noites passadas à porta do centro de saúde para uma consulta de recurso no dia seguinte, e tendo de aguardar mais de um mês pela renovação da medicação habitual.
Falar de uma vida melhor, mais justa e mais humana, está sempre presente no nosso espírito, principalmente depois da covid-19, que veio afastar as pessoas em vez de as aproximar, como na altura se pensava.
Aqui, a perspetiva muda, pois, se não conseguimos coisas extraordinárias, difíceis de atingir, podemos, pelo menos, melhorar a vida dos mais necessitados com coisas simples e pequenas ao alcance de qualquer pessoa; quanto mais não seja, com uma palavra, um gesto, um carinho.
Se todos pensássemos assim, podíamos fazer de 2023 um ano de afetos e o mundo seria melhor.
Presenciei um dia uma discussão entre duas pessoas, em que uma defendia categoricamente que o dinheiro é que comandava a vida e o mundo, enquanto a outra dizia que as coisas melhores que temos são gratuitas. Nunca mais esqueci esse episódio e ainda hoje o recordo, por acreditar também que o dinheiro não compra as coisas verdadeiramente importantes da vida.
Invocamos muitas vezes a falta de dinheiro para justificar aquilo que não fazemos. Ora, basta por vezes um simples sorriso, a tal palavra amiga dita na hora certa, um gesto de conforto em momentos de aflição, um carinho em alturas dramáticas, para fazer a diferença. E todas estas ações são gratuitas, e só dependem de nós.
Partilho um desses exemplos, que ilustra bem esta reflexão – e que deixo à consideração dos leitores. Numa residência de idosos, fui contactado pela diretora-técnica, pedindo-me para me deslocar ao quarto de uma das residentes, que não se sentia bem com a medicação que vinha fazendo. Como o pessoal de enfermagem estava ocupado com outros doentes, ela própria fez questão de me acompanhar, apesar de não ser essa a sua função na casa.
Depois de eu ter prestado à paciente os cuidados médicos de que necessitava, e de rever o tratamento, explicando como se devia fazer, a diretora-técnica aconchegou-a no leito com a sensibilidade própria de uma mulher e mãe. Mas, quando nos preparávamos para abandonar o quarto, já perto da porta, a minha acompanhante, sem dizer nada, voltou atrás como se se tivesse esquecido de qualquer coisa – e, aproximando-se de novo da doente, deu-lhe um beijo na testa. Presenciando a sua atitude e o seu carinho, não fui capaz de articular palavra. Há momentos em que o silêncio fala por si. Tocou-me profundamente este gesto que, por achar de extraordinária beleza e de profunda humanidade, deixo aqui neste final de ano, desejando que o próximo nos possa trazer mais gestos simples e genuínos como este. Deus nos ajude para que 2023 seja um ano de muita luz e esperança e, mais do que isso, o ano da concretização dos nossos sonhos.