Adeus ao ‘Rottweiler de Deus’

Bento XVI é sepultado hoje, perante uma multidão de fiéis. É a primeira vez que um Papa enterra outro em 600 anos.

Se Bento XVI foi o último Papa a abdicar em 600 anos, é porque a Igreja já não é o caos que era. Há escândalos, mas já não há Papas espancados e raptados pelo Rei de França, compra às claras dos votos de cardeais, luxos tão absurdos comono Renascimento. Se a Contrarreforma acabou com isso, Bento XVI, o “Rottweiler de Deus”, sonhava purificar o espírito da Igreja. 

Quando dizemos que Francisco se tornou o primeiro Papa em 600 anos a enterrar outro, foi porque a hierarquia da Igreja Católica deixou de ser o pandemónio que costumava ser algures no século XVI. Isso não quer dizer que a instituição mais antiga continuamente em funcionamento no planeta tenha deixado de ter escândalos. Tendo o próprio Bento XVI, que faleceu a semana passada aos 95 anos, enfrentado alegações de ignorar abusos sexuais dentro da Igreja. Além do chamado Vatican Leaks, em 2012, quando o mordomo do então Papa entregou documentos internos detalhando lavagem de dinheiro através das finanças do Vaticano ou tentativas de chantagem sob ameaça de expor a homossexualidade de prelados. Mostrando uma organização que escapara ao controlo de Bento XVI, algo que tem sido associado à sua decisão de abdicar do trono papal no ano seguinte.

No entanto, costumava ser ainda pior. Inclusive com antipapas, ou seja, sacerdotes que tentavam afirmar-se como herdeiros de S. Pedro e usurpar o legítimo líder católico – quem foi Papa e quem foi antipapa é, claro, uma questão de interpretação. Houve mais de quarenta quezílias desse género, na história da Igreja, sendo a última delas no século XV. E a mais notória talvez tenha sido o chamado cisma do Ocidente, quando dois cardeais reclamaram o trono papal, um deles sediado em Roma, outro em Avinhão, em França, em 1378.

Hoje pode parecer-nos óbvio que Roma é o quartel-general da Igreja Católica, mas nesses tempos não. A Cidade Eterna tornara-se numa enorme ruína, quase abandonada, em que os pastores soltavam gado na relva que crescia no Coliseu, as catacumbas eram refúgio para bandidos e havia uma insalubridade geral desde a destruição do aqueduto que abastecia a cidade. E Filipe IV de França, o Belo, não gostou quando foi excomungado por Bonifácio VIII, em 1303, ordenando a um exército que o raptasse.

Reza a história que deram uma chapada ao Papa, quando estava sentado no trono de S. Pedro, levando-o preso e espancando-o. Bonifácio VIII – que já surgira como um dos principais antagonistas na obra Inferno, de Dante, por ter exilado o poeta italiano – acabou por enlouquecer com a humilhação e morrer. Sendo o seu sucessor escolhido a dedo por Filipe, que lhe ordenou que se estabelecesse em Avinhão, ali à mão de semear do Rei de França, não fosse ter ideias, e conseguiu depois destruir a Ordem dos Templários, uma das mais poderosas instituições da Igreja, ficando com os seus bens.

Sete décadas depois, o papado conseguiria voltar a Roma, pela mão de Gregório XI, o que não deixou satisfeitos os cardeais franceses. Ainda por cima o seu sucessor, Urbano VI seria mortalmente odiado pela liderança católica, por proibir a Curia de receber prendas ou dinheiro, condenado os seus luxos e aplicando violentamente as novas regras. Os cardeais queixavam-se que Urbano VI era louco, descreve o Christian History Institute, acabando por ser eleito também Clemente VI, em Avinhão. O Grande Cisma do Ocidente duraria mais de 35 anos, até que Gregório XII, de Roma, aceitou ceder e abdicar, sendo o último Papa a fazê-lo antes de Bento XVI.

É que o espírito frugal de Urbano VI voltaria a surgir como defesa face à reforma protestante. A Igreja Católica procurou corrigir alguns dos abusos de que se queixava Martinho Lutero, naquilo que se chamaria de Contrarreforma. Provavelmente foi isso que permitiu a estabilidade que fez não haver dois Papas simultâneos há seiscentos anos. Durante o renascimento a Igreja Católica era um caos absurdo, sendo dominada por um rol de figuras como Alexander VI, oriundo da infame família Bórgia, cujo pontificado decorreu entre 1492 e 1503, ficando conhecido por ter organizado mais orgias que missas (páginas 14-15). Mas, com a Contrarreforma, cresceram as tendências mais ascéticas na Igreja, ganhando destaque figuras como São Francisco de Assis e a sua ordem de monges mendicantes, como antídoto para os luxos de Papas como os Bórgia.

Se a Contrarreforma impôs disciplina ao poder secular da Igreja, o projeto de Bento XVI, alcunhado como o “rottweiler de Deus”, foi impor disciplina espiritual. Também levou a cabo reformas como a alteração das regras do infame Banco do Vaticano, procurando que seguisse normas internacionais, é certo, mas o seu grande foco sempre foi a teologia. O sacerdote alemão, mais à vontade a ditar doutrina do que entre multidões, ao contrário do seu antecessor João Paulo II, chegou ao posto de Papa com a avançada idade de 78 anos, querendo uma Igreja mais “pura”, mais estrita e talvez até pequena, um baluarte contra aquilo que chamava “ditadura do relativismo” da sociedade ocidental.

Mesmo assim, apesar do seu sucessor, Francisco, ter uma perspetiva tão diferente, conseguiram conviver pacificamente. Teve a vantagem de antes da reforma não ter travado uma guerra civil dentro da Igreja, ao contrário de Gregório XII. Sendo que, contudo, a ala mais conservadora do Vaticano – saudosa de Bento XVI – tem feito a vida do atual Papa num inferno, até com pedidos de excomungação. Mas isso nunca impediu Francisco de mostrar enorme carinho pelo seu antecessor, “um grande mestre de catequese”, descreveu, perante uma multidão de dezenas de milhares de pessoas que se reuniam na Praça de São Pedro para se despedir de Bento XVI, na quarta-feira.