A Deco – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor – tem recebido centenas de contactos de famílias a pedir esclarecimentos sobre o aumento das prestações do crédito à habitação face ao aumento das taxas de juros por parte do Banco Central Europeu (BCE). Ao i, Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira (GPF), admite que foi a partir de setembro que as “famílias começaram verdadeiramente a sentir esse impacto” por terem créditos indexados à Euribor a três e a seis meses. “Foi aí que assistiram à revisão do valor da prestação e assistiram ao aumento dos valores a pagar todos os meses ao banco”.
No entanto, reconhece que as dores de cabeça começaram há cerca de um ano, quando a entidade liderada por Christine Lagarde sinalizou que vinha aí uma subida das taxas Euribor, mas que iria ser gradual. “O ser gradual acabaria por permitir que as próprias famílias se fossem preparando para esses aumentos, mas a verdade é que não foram graduais, mas sim galopantes”.
Uma situação que, de acordo com a responsável, está a afetar quem tem rendimentos relativamente baixos ou quem tem taxas de esforço muito elevadas. E se há casos de famílias que se veem a braços com subidas na ordem dos 10 ou 30 euros, o i sabe que há quem esteja a ser confrontado com aumentos na ordem dos 400 euros. O cenário é reconhecido por Natália Nunes. “Por exemplo, um aumento de 100% na prestação para um rendimento elevado acaba por não fazer grande diferença, já num rendimento de famílias com baixos rendimentos faz toda a diferença, até porque as famílias estão a sofrer com o aumento da prestação do crédito à habitação, mas também com a inflação”.
As pessoas mais afetadas por estas subidas “galopantes” de “100, 200, 300 ou 400 euros” são as que têm maior capital em dívida ou que ainda falta muito tempo para terminar o empréstimo. E a penalizar ainda mais está o valor dos imóveis comprados por serem mais elevados devido aos preços praticados nos últimos anos.
Banca restringe soluções
Apesar de as novas regras para renegociar o crédito à habitação terem entrado em vigor em novembro e permitir, por exemplo, às famílias baixar a prestação da casa para um valor compatível com os seus rendimentos, o sistema financeiro não tem estado sensível e até tem dificultado a renegociação dos créditos. “O que temos estado a assistir é que continua a existir alguma resistência e alguns entraves por parte da banca na hora de renegociar e de reestruturar os créditos. Temos visto famílias que ainda estão numa situação de regularidade, isto é, ainda estão a conseguir pagar as prestações, mas com muito esforço, a contactarem a banca e esta, muitas vezes, a dizer que não reúnem as condições para levar a cabo essa mesma restruturação, sem muitas vezes explicar o porquê de não reunir as condições”, salienta Natália Nunes.
Uma situação que leva a responsável a dar cartão vermelho ao setor, já que uma das medidas defendidas pela Deco, desde que foi introduzida a legislação, é que tivesse sido consagrado a obrigação de a banca de informar o consumidor em relação ao motivo que o pedido de renegociação teria sido recusado. “Isso não está na legislação. As instituições de crédito estão apenas a dizer às pessoas que não reúnem as condições, mas não apontam qualquer argumento. Claro que olhando para as situações dos créditos podemos tirar algumas conclusões: vemos que existem créditos que são muito longos, que estão a terminar aos 75 anos, créditos que foram contraídos há muito pouco tempo, por exemplo, há menos de um ano. Estes podem ser alguns aspetos que estarão na origem de levar, por exemplo, alguns bancos a dizerem que não cumprem os requisitos”, diz ao i.
Por outro lado, Natália Nunes revela que vê alguns bancos a renegociar apenas os períodos de carência, nomeadamente de um ano. “A manter-se o valor da taxa Euribor elevada acaba por ser um adiar a situação”, refere.
Ainda assim, o Banco de Portugal já veio garantir que os contratos renegociados no âmbito do novo regime do Plano de ação para o risco de incumprimento (PARI) “não têm qualquer marcação específica na Central de Responsabilidades de Crédito que permita aos bancos a sua identificação”, ou seja, não irá parar à lista negra do regulador. Natália Nunes diz ainda que, a par desta situação, os bancos não podem alterar as condições de contrato, afirmando que “não pode haver a cobrança de qualquer valor pela negociação, nem qualquer comissão. Isso está claramente previsto na legislação”.
No entanto, chama a atenção para o facto de existir na Central de Responsabilidade de Crédito duas classificações: a renegociação em incumprimento e a renegociação regular. “As famílias que forem renegociar os seus créditos, e não estando numa situação de incumprimento, vão aparecer com a informação de regular. Mas acredito que o Banco de Portugal estará atento ao cumprimento da legislação em vigor”.
Cenário vivido na troika afastado
A coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira acredita que os tempos vividos durante o período da troika, em que os bancos ficaram com milhares de casas por falta de pagamento, engordando a sua carteira de crédito mal parado, não se voltarão a repetir, até porque reconhece que os tempos agora são diferentes. “Neste momento, temos legislação que vem desde 2012, que obriga à banca a fazer um acompanhamento regular do cumprimento e da boa execução por parte dos contratos. Temos também o próprio Banco de Portugal atento à forma como se tem concedido o crédito”, acrescentando que, “ao contrário do que aconteceu entre 2008 e 2012, em que tínhamos taxas de desemprego elevadas, neste momento, as taxas estão relativamente baixas, o que significa que as famílias continuam a ter rendimentos”.
Natália Nunes garante ainda que essa situação de incumprimento é evitada a todo o custo tanto pela banca como pelas famílias, apesar de admitir que “o grande problema é que os rendimentos estão a ser insuficientes para aquilo que são as despesas das famílias, mas com toda a certeza a banca também está preparada para conseguir dar resposta e evitar que se atinjam os níveis de incumprimento que se verificaram então”. E acrescenta: “Vemos as famílias que assim que têm a perceção de que vão ter dificuldades contactam os bancos. Por outro lado, é necessário é que da parte dos bancos, nomeadamente de quem está na primeira linha para dar resposta aos consumidores, tenham as competências necessárias para aconselharem e informarem”.