Chegado a Lisboa com a viragem do século, assinou uma série de argumentos antes de conseguir por fim chegar à realização. Tem agora nas salas de cinema, Amadeo, a sua sétima longa-metragem, cujas filmagens terminaram pouco antes da pandemia, e que esteve todo este tempo a aguardar por uma aberta para se apresentar ao público. Conta no elenco com Eunice Muñoz e Rogério Samora, a quem o filme é dedicado e que se despedem assim da forma mais digna e comovente. Ainda este ano, mais para o final, deverá chegar às salas oitava longa de Alves do Ó. Para esta entrevista, não chegou para fazer aquela fita do artista meio enfastiado, nem ofereceu o menor sinal de sobranceria, respondendo às perguntas como se tudo fosse ainda só um projeto, revelando uma alegria invulgar, mesmo se nos falava a dias de ver mais outro dos seus filmes espezinhado pela crítica. Confessa que isso ainda o deixa perplexo, mas não o deita abaixo e chega até a ser instigante. No fundo, conhece bem o país e os vícios que lhe dão este ar de cemitério com boas vistas. É também por isso que o encontro com o mais célebre pintor avançado português, como Pessoa classificou Amadeo de Souza-Cardoso, foi tão marcante, e o filme, longe de ser uma obra prodigiosa, tem apesar de tudo uma graça inusitada cheia de detalhes impressivos no tão cuidadoso retrato que faz daquele percurso precocemente interrompido. É um gesto de cumplicidade que, sem ceder ao drama, tira bem as medidas a um desses desastres exemplares da tão discreta tragédia que tem colhido os nossos melhores espíritos. E, assim, 100 anos depois, o que se respira ainda intacto é o mesmo ar que nos lembra que o confinamento na segurança que este país oferece não veio com a pandemia, e seria uma piada de mau gosto assumirmos que temos hoje o futuro, que fizemos algum avanço sobre a ambição e os anseios de Amadeo. “Os meus destinos só estão bem comigo, ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, disse numa carta enviada à mãe. E nesse grau irado e grandiloquente próprio de qualquer artista imensamente desamparado, vai mais longe e avisa: “Cautela àqueles que desejam comungar comigo: – há na minha alma uma porta de salvamento e uma porta de abysmo. Viverei e morrerei como tudo o que existe.” A morte de Amadeo, aos trinta anos, vítima da gripe espanhola, diz-nos muito sobre a dificuldade que têm certos destinos de se cumprir num país que, como quem não quer a coisa, lá arranja forma de dar cabo de nós.
Há um momento no teu filme, em que a empregada que limpa o atelier do Amadeo tem com ele uma conversa em que lhe confessa que certas vezes fica ali só a olhar para os quadros, e, de uma forma bastante simples, deixa claro o quanto gosta deles. Isso foi a tua maneira de romper com um certo discurso mais especializado e também, em grande medida, balofo e bastante estéril que cerca hoje aquilo que se entende como alta cultura?
A Rosa, a empregada de que falas, existiu mesmo. Temos testemunhos dela e das coisas que ela terá dito em conversa com o Amadeo. Era a empregada do tio dele, que limpava o atelier, e era a ela a quem o Amadeo recorria sempre que queria saber notícias da guerra. E ela falava na pintura dele, gostava que fosse tão colorida, forte, alegre. Por outro lado, ela estranhava que ele, que pintava aquelas telas, fosse um tipo bastante fechado, macambúzio. Na verdade, a minha intenção foi simplesmente trazer esta pessoa para o filme, respeitando-a. Mas é evidente que esse olhar mais direto e simples de repente serve de contraste, consegue ver as coisas, sem se atrapalhar consigo mesmo. Por isso é fresco. Esse olhar consegue ver uma dimensão muito instrutiva na pintura, e isso não poderia deixar de interessar a um artista moderno, uma vez que ele e outros o que estavam empenhados era em romper com as regras, virar as coisas do avesso, ver para além do que já estava dado. Olhavam para outros lados, procuravam outros fios na tradição, como a pintura anterior ao Renascimento, movimento que ele desprezava. No fundo, essa cena foi uma tentativa de, trazendo essa simplicidade da Rosa, lembrar as pessoas de olharem os quadros, de se aproximarem de forma desassombrada deles, e, idealmente, explorar também esse desejo do Amadeo de subverter as expectativas e de estar aberto à sensação que provocava nessas pessoas que não têm propriamente uma leitura especializada.
E quanto ao peso de uma certa crítica, que leva a que não se consiga encarar, hoje, tantas obras sem sentir o acosso das aves de rapina a rodeá-la, ansiosas por reclamarem o seu quinhão?
Isso é um problema que eu tenho tido desde o meu primeiro filme. É muito difícil obteres uma opinião sincera e honesta, sobretudo quando trabalhas em meios muito pequenos. Um dos aspetos mais curiosos da pesquisa que fiz ao preparar-me para realizar este filme, foi o ter-me dado conta, no contacto com os especialistas da obra do Amadeo, que, passaram 100 anos, mas nas mentalidades isto foi ontem. Há uma certa promiscuidade e, ao mesmo tempo, um regime de clausura, em que não se consegue que alguém diga uma coisa sem estar preocupado com o que os outros irão pensar. Quis dar conta da exposição que ele fez no Salão Passos Manuel, em 1916, que à época era uma mistura entre Feira Popular e CCB, ou seja, cruzavam-se ali todo o tipo de pessoas, de todos os estratos sociais, e o intuito dele era mostrar os quadros, expô-los a todos os olhares, numa altura em que estava a sentir-se frustrado, depois de ter sido forçado a deixar Paris, sentindo-se confinado em Portugal há dois anos, para fugir à guerra e também para apaziguar a família, e uma das especialistas com quem falei quis saber porque é que eu não mostrei a exposição que ele fez nesse mesmo ano em Lisboa, na Liga Naval, a qual teria deixado um lastro bem maior junto da comunidade artística. O próprio Amadeo reconhecia que seriam duas exposições de natureza muito diferente. A de Lisboa ficou entre os das artes. Vieram os jornalistas, alguns ficaram agradados, outros foram queixar-se aos leitores que era tudo um disparate, o que também lhe terá agradado. Foi também a oportunidade de se relacionar com o grupo ligado à Orpheu. Jantavam no Tavares, e ele pagava, o que deixou o Almada todo satisfeito. No fundo, sendo ele um dandy, com dinheiro de família, viajado, alguém que se dava com a elite parisiense, tudo isso o recomendava… Mas não era coisa que o prendesse. E eu expliquei à especialista que nenhum lastro ficou em Lisboa, porque então como hoje Lisboa vive encerrada na sua bolha, convencida da sua importância, e depois miserável também porque ninguém lhe liga nenhuma. O que continua a interessar é a capacidade que tinham alguns artistas de não ficar limitados a isso, ao pequeno meio artístico lisboeta, e que os fazia até libertarem-se dele, preferirem expor-se àqueles que passam. A Rosa representa esse país que por aqui se refere como “país real”. É uma forma de paternalismo, mas também é uma forma de reconhecer que Lisboa é o centro de uma ilusão. Ao ouvirmos a Rosa estamos a ouvir essas pessoas que falam com as palavras que têm, conseguem ser mais espontâneas, seja quando gostam seja quando não vêem interesse nenhum nas coisas.
Falas nesse contraste entre um pintor que cria fazer irromper nas suas telas o futuro, que buscava a vibração e as cores de uma força que era como um desejo de ser arrancado à pasmaceira dos dias, e, por outro lado, referes que ele era um tipo algo soturno…
É a sensação que tenho dele, mas isso é nesse período em que se viu forçado a regressar a Portugal. Lendo as cartas dele e ao trocar depois impressões com a minha psicoterapeuta, pusemos a hipótese de haver nele uns traços de Asperger… Isto são exercícios que fazemos para nos tentarmos aproximar de pessoas que não podemos já conhecer. Mas havia nele uma natureza compulsiva, uma necessidade permanente de estar noutro lugar, uma urgência e uma sensação de perda… Era capaz de estar absorvido horas, chegava a pintar cinco quadros ao mesmo tempo. Teve de criar a sua vertigem para combater aquele confinamento em Manhufe, onde, de resto, não havia nada. Por mais endinheirada que a sua família fosse, há um certo tipo de miséria que não tem conserto. Ele estava ali, tinha as pessoas que amava à sua volta, mas depois de ter experimentado Paris… E é por isso que depois te dou um cheiro do que terá sido uma dessas noites em Paris… Mas depois de ser exposto a esse vendaval, dar por si fechado aos 27 ou 28, é uma tortura.
Não creio que tenha sido algo que foi feito de forma voluntária, mas a sensação que tive ao ver o filme é que a homenagem que o filme presta à pintura do Amadeo surge do contraste entre aqueles planos, entre o rigor e o cuidado na forma como tudo é retratado, da forma mais realista possível… Há, assim, um contraste decisivo que nos mostra os lugares e os ambientes de onde ele parte, e o desejo de fuga e de alucinação que exprimem aqueles quadros. Como se ele quisesse sufocar de vertigem…
Quando cheguei à conclusão de que queria fazer este tríptico, um filme que apanhasse três momentos-chave na vida do Amadeo, e que poderiam ser três quadros, eu, o diretor de fotografia e o responsável pelo departamento artístico, quisemos que houvesse uma relação substantiva com a pintura, mas não necessariamente a do Amadeo, e nem sequer a pintura modernista. A primeira parte, em Manhufe, é mais naturalista, e mesmo quando há tantas aspetos que estão também presentes nos quadros dele, é como se num fosse um rapto e no outro quisessem a sedimentação e o efeito do tempo. É em Paris que estamos mais perto do modernismo, e o que fiz foi acelerar. Os planos sucedem-se, interrompem-se, as imagens estão cortadas, apanhados bocados de conversa, mas não há princípio nem fim, nem é claro quem está e quem não está. Tudo fica ao nível da sugestão. Reuni elementos, mas não os legendo, não etiquetei nada. Foi um efeito de intensificação, a começar pelas cores, pelos movimentos. Lembro-me de o Poças [Rui Poças, diretor de fotografia] me ter vindo falar no Emil Nolde, que eu na altura nem conhecia, e isto era uma forma de tentarmos explicar o registo visual, como se os pintores nos permitissem trocar cartas entre sonhos. Queríamos Paris a explodir naquele quarto. Depois quando regressamos a Portugal, a Espinho, abraçamos a abstração. Aí o pintor que eu tinha na cabeça era o Hammershøi, mas isso para ir apanhando as imagens no interior da casa, mas a abstração seria a forma de fazer sentir a aproximação da morte, deixando o próprio tempo ficar enrolado, e a vertigem vai-se tornando algo de interior, as divisões estão lá, mas também parecem ceder à assombração. E a verdade é que ninguém ainda me perguntou porque escolhi fazer o filme como um tríptico com abordagens estéticas diferentes, ângulos e velocidades diferentes. Portanto, a pintura é influência, e quis que o Amadeo se fosse apagando. O fim fica-se pelo azul, o cinzento, o negro. Num certo sentido, aquela morte prematura define também algo que foi interrompido. Não quis ser modernista, senti que devia apanhá-lo como um vislumbre entre o que estava antes e depois, uma visão em choque face à história da pintura e dos movimentos artísticos daquele período. A verdade é que se passaram 80 anos antes que as pessoas pudessem sequer pôr os olhos nos quadros dele e, assim, redescobri-lo. Aliás, quando me perguntavam o que andava a fazer, e eu dizia que era um filme sobre o Amadeo, perguntavam se era o Modigliani. Assim, habituei-me a dizer o nome todo: Amadeo de Souza-Cardoso. Num certo sentido, ainda estamos nas apresentações.
Desse ponto de vista, entre nós há esta tendência para muitas pessoas assumirem que conhecem um pintor porque ouviram falar nele. Mas para além do nome, de serem capazes de situá-lo no tempo, o que te parece que sabem as pessoas sobre este pintor?
A esse respeito estou ainda muito curioso para ler os críticos que sabendo que vem aí outro filme meu não sabem nada senão que me vão dar pancada.
E podemos falar de nomes, só para não ficarmos pela entidade “críticos” no geral?
Olha, os do “Público” não dispensam as couves e os tomates sempre que entram na sala para ver um filme meu. Vou sempre corrido a uma estrela, sendo o céu as duas. Lembro-me de um deles ter escrito: “Este filme poderia ter sido interessante se fosse outro realizador a fazê-lo.” Felizmente, e como tudo foi sempre uma batalha, como cada filme que fiz foi o culminar de um processo de luta e trabalho, estou bem resolvido e as críticas não me causam grande mossa. Mas ali a ideia é mesmo a de abater, pôr em causa aqueles que não seguem pela mesma bitola. Na verdade, toda essa sanha e desprezo tornam-se instigantes, dão ainda mais vontade de trabalhar.
É curioso porque nenhum dos críticos do “Público” é outra coisa além disso. Sem aquela boia, não se imagina que conseguissem segurar uma revista. Sem apoios institucionais, sem a tribuna semanal e o reflexo mediático que daí advém, aquelas estrelas não seriam mais que a decoração de uma camarata de nerds. Não são propriamente críticos que sequer procurem construir uma obra.
Sim, e nem precisam. Porque esta coisa do cinema, por cá, funciona meramente como uma coutada, em que andam sempre os mesmos, e há muito pouca margem para que surjam outros criadores…
No fundo, funcionam como porteiros de discoteca.
Sim, são seguranças de discoteca. Primeiro porque politizam o cinema, e a partir daí discutem tudo a partir de posições quase dogmáticas, moralistas. Permitem-se atuar como uma forma de censura. Em vez de verem os filmes e informarem os leitores, estão ali para serem fãs deste, daquele, e chatearem os outros por não serem como os seus ídolos. Tratam-nos aos demais como infiéis. Já houve quem me viesse perguntar se eu era um realizador de direita… Porquê? Porque querem filmes que retratem de forma realista e quase documental certos dramas sociais. E eu digo-lhes que isso já existe, que o Pedro Costa é o que tem feito, que o João Canijo também o faz, e outros, e que isso tem saída no circuito dos festivais, e ganha prémios. Não vejo problema nenhum. Mas posso fazer outra coisa? E o problema começa por aí, por estas autoridades, estas figuras que, na verdade, o que gostariam era de exercer um regime de censura, bloquear, proibir. A politização nas artes é sempre uma forma de se impor uma conotação moral, para que, em vez de se discutirem opções estéticas, se possa censurar. Em certo sentido, isto é ajudado por este ser um meio muito pequeno, e, havendo tão pouco dinheiro, cria-se este espírito de vigilância e denúncia. É uma comunidade desoladora, em que, para se proteger uns, é preciso dar cabo de outros. Assim, há esta lógica de provocar embaraço, para se poder censurar um modelo de apoio que, apesar de tudo, continua a apoiar os que vão corridos a bola preta ou uma estrela. Estes assassinatos nem são, de resto, uma novidade. Noutros tempos os alvos foram o António de Macedo, o Lauro António… O intuito é tirar-lhes o ânimo, andar a azucriná-los até eles deixarem de filmar. Depois, quando morrem, logo tratam de vir empalhá-los, e lá lhes rendem aqui, na Cinemateca, umas homenagens muito bonitas, e até já lhes acham alguma graça. Mas o problema é que em vida eles queriam ter feito filmes e não lhes foi dada essa hipótese. É uma espécie de dança das bestas, em que o efeito que se pretende é achincalhar. Mas se me perguntas se me melindram estas críticas, a verdade é que não. Acho até que acabam por ser o nosso motivo de maior orgulho, o termos persistido, fazermos os nossos filmes sendo claro que não fazemos parte da família, e que não nos querem à mesa. E esta foi uma das razões porque me deu gozo fazer este filme, porque também o Amadeo se confrontou com estes mesmos vícios, com os preconceitos dos jornalistas, sendo que nenhum dos mais destacados mostrou interesse em fazer-lhe uma entrevista. A única entrevista boa que lhe foi feita em vida…
Foi um puto de 17 anos.
Sim, um miúdo do Diário de Coimbra, que se meteu no comboio e veio ter com ele, e que nos deu a hipótese de o ler em discurso direto. E posso dizer-te que estou a viver em Lisboa há 24 anos, que a minha primeira longa saiu em 2011, esta é a sétima que chega ao cinema, e nem o Expresso nem o Público enviaram alguma vez uma pessoa para me fazer uma entrevista. Querem dar-me um enxerto de porrada, muito bem. Mas com tanta coisa que têm para dizer sobre mim, curiosamente não têm nada para me perguntar. Quanto mais não fosse: quem é você? Ou: que raio de cinema é este? O que é que você quer fazer? Gostava, pelo menos, de poder rebater algumas das falhas que me apontam.
Não te parece que em certo sentido foste etiquetado como um provinciano, um autodidata, que, por isso, não corresponde ao gosto e ao regime escolar? Aliás, num filme como este muitas das soluções parecem ser as de um amador desta arte, ou seja, é um cinema que está longe de estar muito bem feito. Por outro lado, o que transcende é, acima de tudo, uma grande dedicação às personagens, ao trabalho dos atores. Mais do que os elementos estéticos, é nessa componente humana que o filme adquire uma espessura invulgar no cinema português, que parece sempre teatro refrigerado. Sei que levaste os atores para uma residência…
Alugámos um sítio em Amarante, uma espécie de aldeia, onde ficámos metidos em pequenas casas, numa altura em que aquilo estava deserto, em novembro. Além de trabalharmos a construção das personagens, a ideia era que eles vivessem como uma família, e adaptassem esses códigos de cumplicidade. Eu estive com eles, mas não quis intrometer-me. Aproveitei para ir revendo os guiões, e propunha alguns exercícios, fosse ler as cartas ou alguma outra coisa reveladora da vida daquelas personagens. Levei revistas da Ilustração Portuguesa da altura, líamos os fait divers, os anúncios, para termos uma ideia do ambiente que se respirava. Essa parte é muito importante, porque é das que mais gozo me dão: escrever as personagens, trabalhar com os atores…
E o Rafael Morais surge realmente como uma revelação…
Sim, ele é maravilhoso. Há um esforço grande da minha parte e da equipa de produção para que os atores quando entram no processo sintam a maior confiança da nossa parte. Quando eles chegam já eu estou há dois a preparar-me. O entusiasmo não pode ficar só comigo, nem o saber que fui acumulando. Quis saber de tudo, inteirar-me o mais possível em relação à época e à vida daquelas pessoas que íamos retratar. E gosto de poder transmitir isso aos atores, e parece-me que isso passa. É engraçado que tenhas falado de mim como um amador, porque tenho agora 51 anos, fiz sete longas-metragens, e uma das coisas que aprendi assim que cheguei a Lisboa, há mais de vinte anos, e quando tive de escrever guiões para outros realizadores, porque não conseguia ganhar o concurso do ICA para avançar com os meus projetos, e passei anos a trabalhar como argumentista, oito anos a candidatar-me sucessivamente antes de poder avançar para a primeira longa, e, nesse período, fui estudando, acumulando experiência. Às tantas aquilo de que me dei conta é que entre nós há sempre um momento em que a verdadeira derrota é que as pessoas chegam a um ponto em que sentem que já não encontram desafios, e não havendo como crescer, nem como sair daqui, ali por volta dos 40 ou 50 há algo nelas que se cristaliza, ganham medo à morte, começam a sentir que a parte mais interessante das suas vidas ficou para trás, e envelhecem naquele ramerrame, sempre a fazerem as mesmas coisas…
É o próprio meio que leva a isso?
Sempre tive essa noção de que o próprio meio nos mata, e quis garantir que não me aconteceria o mesmo. Essa é uma das razões porque gosto de ficar sem pé, procurar projetos que me obriguem a aprender tudo de novo. Este trabalho tem de ser feito como um desafio tremendo. Já fiz comédias palermas, coisas leves, que levaram as pessoas a achar que eu não tinha quaisquer ambições, alguém que tinha já feito coisas bem mais sérias… Mas é essa a razão, não quero acomodar-me, prefiro pôr-me em causa, cair no ridículo em vez de corresponder a essa construção de uma imagem de seriedade. Não estou muito preocupado em tornar-me uma figura de culto para um pequeno grupo, ficando refém de uma ideia fechada de cinema.
Se a tua relação com a crítica não será a melhor, por outro lado, neste filme, contas como uma homenagem invulgar dos atores. Desde logo, o filme é dedicado a Eunice Muñoz e a Rogério Samora, e estas parecem-me duas interpretações em que o desempenho deles não só é notável como comovente, ou seja, tens estes dois grandes atores a despedirem-se do público no teu filme, e a deixarem uma imagem indelével. O Rogério tem um dos desempenhos mais sóbrios, doce e terno, e a Eunice, embora esteja frágil, não surge diminuída, e não tendo já mais do que um fio de voz, gostava de saber como é que te lembraste que seria uma boa ideia tê-la a cantar?
É por isso mesmo. Por ter a voz destruída que ficaria tão mais doce. Isto pode até ter algo de infantil, mas é essa noção de que o que parece mais inusitado, menos óbvio, acaba por ser o que melhor nos conduz. Eu era aquele miúdo que andava sempre todo marcado, todo arranhado. Chegava a casa da escola todos os dias desfeito. Se me desafiavam, era aí que não queria mesmo recuar. Era importante provar que não tinha medo, e atirava-me às coisas. Não era por pirraça, era para ultrapassar os receios, porque pressentia o perigo de ficar aprisionado neles e não ir a lado nenhum. Sempre fui receoso, e daí o meu esforço para que isso não me limitasse. As questões agora são outras. É o estar aqui a assumir o que sinto, a falar da relação com os críticos, não fugir às questões…
Desse ponto de vista, é curioso, pois tratando-se de um meio tão minúsculo, de tal modo que para se saber quem cá anda é preciso olhar ao microscópio, depois as pessoas comportam-se como se fossem gigantes, como se cada gesto pudesse provocar catástrofes, e medem muito tudo o que dizem e fazem, ao ponto de se tornarem muito aborrecidas. Sendo este um filme pobre, de um país pobre, o que nele está melhor conseguido são as coisas que tu podes fazer e fazes, com esse grau de simplicidade e audácia.
Sim, e foi por todos me terem questionado sobre se seria prudente trabalhar com a Eunice, numa altura em que tinha já 93 anos, em que tinha perdido a voz e estava cansada, isso foi o que mais mexeu comigo, e, então, fiz questão que fosse ela, e foi numa conversa quando já estávamos a fazer o filme, que comentei com ela que teria muita graça se cantasse uma modinha lá de cima e daquela altura. Inicialmente, ela ficou reticente, mas eu garanti-lhe que ia ficar muito bonito, como ficou. A confiança dela deu ao filme um dos seus momentos de maior intimidade, e, no fim, creio que é com estes desafios que enriquecemos o trabalho. É preciso conquistar cada milímetro.
Com esta trilogia que dedicaste a autores portugueses, começando pela Florbela Espanca, depois o Al Berto, tinhas em vista fazer em seguida um filme sobre Sophia de Mello Breyner, mas acabaste por fazer este sobre o Amadeo… às tantas, ficamos a pensar se esta lógica de biografar figuras de relevo da cultura portuguesa se prende com uma tentativa de conquistar os apoios do ICA, e isto não é um exclusivo teu, pois muitos outros realizadores têm trabalhado a partir de grandes figuras literárias… Mas gostava de saber se não tivesses que começar por pensar os filmes de maneira a que o projeto fosse aprovado pelo ICA, se porventura terias no lugar destes filmes feito outros, contando histórias originais e criando as tuas próprias personagens?
Sim, é claro que se tivesse condições de financiamento teria explorado outros caminhos. O drama neste país é o tempo que é preciso para desenvolver os projetos e conseguir obter apoios. No fundo, todo o cinema português irrompe dessa camisa-de-forças. Se eu fosse um realizador espanhol, teria filmado estes três filmes biográficos a um ritmo de um por ano, a trilogia ficava arrumada e eu podia avançar para outras coisas. Mas deixa-me contar como nasceu a ideia do filme sobre a Florbela, pois parece-me que indo por aí se percebe tudo o resto. Lembro-me que estava num jantar em casa da minha produtora, a Pandora [da Cunha Telles], um daqueles jantares em que só foram convidados artistas, sumidades do meio, gente das artes plásticas, da dança… Estavam todos a fervilhar de ideias, projetos, tudo grávido. Na altura, eu tinha acabado de fazer o 15 Pontos na Alma, uma criação original, e as pessoas perguntavam-me o que é que eu ia fazer a seguir. Eu já andava a embalar também algumas ideias, uma delas o Golpe de Sol, que chegou às salas em 2018… E uma amiga minha que estava a seguir a conversa, perguntou porque é que em Portugal ninguém fazia os chamados biopics que então se faziam muito lá fora. Ela interrogava-se por haver tantas figuras do nosso passado com percursos muito significativos e que nunca tinham visto a sua história contada. A Pandora reconheceu que havia essa lacuna, mas também explicou que implicava custos maiores, pois tudo o que fossem produções de época fariam disparar os custos. Então, começou-se ali a esboçar uma lista de hipóteses a partir das nossas figuras ilustres. Foram aparecendo vários nomes, e às tantas alguém sugeriu o nome da Florbela Espanca. Epá, de imediato a sugestão foi alvo de um achincalhamento… Ora, a Florbela, de Vila Viçosa, alentejana como eu, uma poeta que foi importante para mim na adolescência, e ao vê-la ali ser alvo de mofa, saí de lá a sentir como se tivessem lançado na lama um familiar meu. Foram os clichés que de imediato voaram sobre a mesa, em parte devido ao célebre sketch do Herman, da Florbela ninfomaníaca… Eram os velhos estigmas: o incesto, a depressão, o suicídio… Ao vê-la reduzida àquilo, senti-me eu próprio posto em causa, pois era eu o provinciano sentado àquela mesa e a ser julgado daquela forma. Saí dali determinado a saber quem ela foi, a contar a história dela e tentar livrá-la desse juízo que tanto a tem menorizado. No jantar seguinte, quando me perguntaram em que é que estava a trabalhar, disse-lhes: um filme sobre a Florbela Espanca.
E porquê?
Foi mesmo um desejo de enfrentar esses vícios que se impõem sobre as pessoas, esses preconceitos. Os poetas foram importantes para mim. Não cresci numa casa com livros, nem sequer numa família tradicional. Foi a Biblioteca Municipal de Sines que me salvou, foi o cinema, a música. Porque eu podia ter acabado como muitos dos meus amigos de infância que deixaram os estudos e se meteram nas obras e nos caminhos-de-ferro de Sines, com uma vida ligada à toxicodependência, e teria morrido como alguns deles ainda na adolescência. As pessoas não têm noção do que era Sines, nos anos 1980, a nível do consumo de heroína. E isto porque este é um país onde para muita gente continua a não haver saída. O que me salvou foram os poetas, essa ideia de que era preciso procurar a vida noutra parte, a verdadeira vida. Mas agora que me propõem que faça filmes sobre este ou aquele, tenho de explicar que não o faço porque eles se tornaram figuras ilustres, que o que me interessa nos poetas é essa rutura com um horizonte miserável. Assim, já sabes porque fiz o filme sobre a Florbela. O Al Berto foi uma escolha que teve a ver com o eu ter privado com ele. É claro que depois muitas pessoas aqui em Lisboa se aborreceram com aquilo que eu retrato no filme porque se dizem os verdadeiros amigos e sabem tudo dele, mas não faziam ideia daquelas coisas que se tinham passado. Já a Sophia foi uma grande paixão, aquela poeta que é ainda para mim uma fonte de encanto imenso.
Mas ias-te ver lixado para conseguir a ajuda da família para fazer um filme sobre ela…
Não, mas essa ideia até acabou por ficar pelo caminho. Mas não era por não ter autorização, que isso também fiz o filme sobre o Al Berto tendo a família contra. Eles até podem criar dificuldades, mas não podem impedir. Tem os direitos sobre a obra, mas não são os proprietários deles. Mas a Sophia acabou por ficar pelo caminho depois de eu ter visto a exposição do Amadeo no Porto… Já conhecia os quadros, mas aquela exposição teve um grande impacto, pela belíssima organização que propunha. As citações dele nas paredes, retiradas da correspondência, da célebre entrevista. Lembro-me de ter saído dali aceso de possibilidades, instigado por aquele ânimo dele, aquela confiança de um espírito blindado, que, ao mesmo tempo, sonhava era com o que desejava vir a fazer, e não ficava preso ao que já havia feito, mas referia-se até com um certo desdém pelas coisas que já alcançara. Era alguém de um orgulho e uma vaidade imensa, mas num balanço que, em vez de o fazer barricar-se e defender o que quer que tivesse já criado, o fazia ansiar pelo porvir. Era o quadro que ia fazer a seguir, a exposição seguinte, a cidade onde iria mal lhe fosse possível, os artistas que descobriria… Esta forma de propulsão parece-me imensamente inspiradora.
Em certo sentido o Amadeo representa também esse desastre dos espíritos que prometiam livrar-nos da modorra em que vivemos, mas que tragicamente se veem interrompidos. Este país, que até certa altura esteve na dianteira da Europa, foi-se deixando ficar e às tantas surge como um limbo de onde é muito difícil sair. O tal reino da estupidez… Esta morte precoce aos 30 anos, e depois o luto prolongado que leva a mulher a encerrar-se num pequeno apartamento com os quadros dele…
Sim, ela encerra-se num sarcófago, com muitas das telas metidas debaixo da cama.
Portugal vive este seu sentimento trágico no segredo. No luto e na intimidade. Todas estas promessas que não se cumprem, como se a partir de uma certa altura a nossa fosse uma História de desencontros, de traições do destino.
A dimensão do país foi o que nos empurrou para o mundo. A catástrofe de nos termos visto novamente encerrados levou a que a alma fosse encolhendo, sobretudo a partir do momento em que as sucessivas vagas de imigração levam daqui muitos daqueles que poderiam ter negado aos piores a capacidade de terem tomado conta disto. É tudo uma questão de dimensão. Mesmo os nossos dons, os nossos melhores talentos, num lugar tão pequeno, e mergulhados no ácido desta mesquinhez e inveja, acabam por definhar. Esta pequena dimensão também retira dignidade às nossas aspirações. Temos sempre de resignar-nos. Temos grandes sonhos, mas se o país não tem como sair dos seus limites, se a população vai em perda, não há como desdobrar e dar eco às nossas melhores obras. Só vinga o pior. Tudo é uma coação e uma forma de chantagem. A verdade é que todas as pessoas que mais admiramos acabam por fugir daqui. Não é por acaso que os melhores espíritos pressentem que se ficarem se condenam.
É uma nação entregue a carcereiros, seguranças, porteiros…
Sim. E acho que as pessoas não saem apenas por o país ser sufocante, saem porque chegam à constatação de que não é uma questão de provarem a sua competência, é mesmo porque ser muito bom aqui chega a ser uma humilhação. Para si mesmo e para quem está em volta. O desafio só pode ser encontrado lá fora. Estou sempre a lutar com isto, e parece-me que os meus filmes também apanham muita pancada por isso, que é esta tentação de não se conseguir lidar com as pessoas na sua complexidade. Mal alguém revela um dom particular, fica sujeito a essa forma de sacralização, que é também um modo de lhes vir impor uma moral, neutralizá-los. Aqui grita-se génio da forma mais infame que eu conheço. É para manietar alguém. Porque a partir do momento em que se elege alguém, logo isso lança sobre estas pessoas o dever de serem impolutas. Na verdade, isto é uma coisa assustadora. Rejeita-se a complexidade humana, talvez até para desencorajar os outros de tentarem. E é muito comum neste país as pessoas verem-se sujeitas a esse processo de beatificação ainda em vida. Agora temos este miúdo nomeado para um Óscar com uma curta de animação. É a primeira vez que Portugal tem um nomeado, e agora se o miúdo ganha o Óscar, nos próximos anos já não o largam, e vão-lhe estender todas as passadeiras. Mas depressa ele se vai dar conta de como tudo isso, na verdade, é uma armadilha. Ele será desfilado, vai-se requisitar a opinião dele sobre tudo o que diga respeito ao cinema, e se ele não se puser a pau em menos de nada dá por si mais outra figura empalhada. A deia é apanhá-los logo, sacralizá-los, metê-los num frasco e com uma rolha, para estarem ali, expostos como loiça. Eu dou-lhe os meus parabéns, e desejo-lhe a maior sorte, reconhecendo desde já que a nossa animação é ótima. Mas vejo o perigo, e acho que as pessoas que têm em si uma intuição forte escapam a este abraço sufocante.