Texto de João Oliveira Duarte
Chegará o dia em que será necessário perceber o lugar de Manuel de Freitas dentro do campo poético. Seja através do trabalho crítico, do trabalho editorial ou, como é o caso com este primeiro volume dos livros reunidos (e o que se seguirá depois desta reunião?), da poesia, o lugar será, certamente, central – por muito que esta voz se queira cada vez mais impercetível, à beira do desaparecimento e do esquecimento. E é igualmente interessante o estranho silêncio que se faz quando um dos mais importantes poetas dos últimos 20 anos decide reunir tudo quanto fez, provando, aliás, a absoluta falência de todo o esforço de divulgação, por mais bem-intencionado que seja. Não apenas torna tudo igual, como faz com que poetas como Manuel de Freitas, por várias razões, se vejam relegados a um lugar de invisibilidade – é a velha e famosa máxima do economista David Ricardo a funcionar em todo o esplendor.
Levar Caminho I reúne a produção poética de Manuel de Freitas desde 1989 até 2002. São sete livros quase monocórdicos, quase sempre iguais, quase sempre o mesmo, declinando infinitamente o mesmo motivo ou ausência dele – mas não nos enganemos: esta repetição, este tom sempre igual, sempre ou quase sempre à beira do desaparecimento, é aquilo que faz de Manuel de Freitas um dos raros exemplos de poesia em Portugal. É um monumento, sem dúvida, por mais que aquilo que encontramos pretenda ser o contrário de qualquer monumento – mas um estranho monumento, um monumento a nada, para nada.
Um dos aspetos interessantes que resulta de Levar Caminho I é uma espécie de movimento a contrapelo que, se não é único, é quase único em Manuel de Freitas. A poesia portuguesa contemporânea (contemporânea, isto é, dos últimos 30 a 40 anos) é pouco dada a reuniões, apesar de poder dar boas ou razoáveis antologias. Isto é, não tem muito interesse reunir a poesia completa destes nossos poetas mais ou menos menores, mas talvez fosse boa ideia optar por antologias, dando-nos o que de mais interessante eles fizeram, permitindo, aliás, que eles surgissem a uma luz muito mais favorável. Havendo aqui um juízo epocal que não é muito lisonjeiro para com o campo poético – nem todas as épocas produzem o seu Fernando Pessoa, muitas ficam-se por uma mediania que também é necessária -, é preciso realçar, no entanto, que a poesia de Manuel de Freitas é talvez das únicas que pede uma certa ideia de totalidade, que pede para ser lida do primeiro ao último verso.
Há, sem dúvida, poemas que, pela finura do gesto, pelo rigor e sobriedade que colocam nos versos, são, para usar uma palavra caída em desuso, belos, “perdidas imagens” onde algo de muito antigo se deixa ver, se dá a ler – Joaquim Manuel Magalhães sublinha, num texto sobre Game Over, que não devemos ter medo da palavra “beleza” e há momentos na poesia de Manuel de Freitas onde faz todo o sentido usá-la. “Lady day sings solitude”, “game over”, “depois do fim”, “estudos camonianos” ou “sessenta quilos de paixão” são apenas alguns exemplos dessa intensa e ténue vibração (apetece citar Santo Agostinho: é uma “beleza tão antiga e tão nova”) que estes poemas instauram, perdurando enquanto eco que vem de longe. Uma pequena passagem de “Depois do fim”, por exemplo:
“A voz de ninguém há-de atenuar/ esse grito – gestos de fuga/ e riso que por descuido apenas/ deixamos que existam. Encostados/ nulos à parede dos minutos,/ à espera de quem prometeu não vir/ (com que rosto inábil, venha o diabo/ e diga). Não vale a pena o esforço,/ a inspiração da mágoa sob/ os pulmões desatentos”
A sobriedade e a elegância destes versos que parecem ter sido pensados em todos os seus momentos – sem qualquer excesso, sem imagens gratuitas vindas não se sabe bem de onde – são uma das dimensões dessa beleza que diríamos antiga (e, ao mesmo tempo, tão nova, tão urgente), não uma melancolia, não uma depressão, como tantas vezes se pode pensar, nem mesmo uma qualquer tristeza, mas uma emoção sem data, sem tempo, não psicologizável – chamemos-lhe, para complicar as coisas, de pura matéria do poema, que nada tem que ver com temas ou com linguagem. É interessante, aliás, que o poeta que ficou conhecido por um certo conjunto de motivos urbanos – as tascas, o álcool, os cigarros – transporte com ele uma tonalidade tão antiga, uma tonalidade que arriscaríamos a chamar de anacrónica e que, no entanto, dificilmente conseguimos localizar no corpo do poema – e isto, gostemos ou não, é efetivamente impressionante, essa incapacidade que o poema cria em nós de localizar, na sua frágil espessura, aquilo que realmente importa, não sabendo nós, de facto, o que é que aqui realmente importa.
Se há, efetivamente, estes momentos maiores, poemas que conseguem declinar o “exílio cantante de todas as minhas antigas manhãs” ou, o que talvez equivalha ao mesmo, as “incertas inúteis tardes”, é necessário, por outro lado, ler tudo, todos os versos de todos os poemas – Manuel de Freitas permanece, assim, um dos poucos poetas não antologizáveis, apesar das antologias que existem e que se possam fazer dele. A razão para isto é, ao mesmo tempo, bastante simples e complexa: só lendo tudo é que temos acesso a esse “olhar sem paixão” que nos é devolvido, mas que não nos devolve nada, ao esgotamento que este gesto acarreta – “estava-se cansado de alguma coisa, mas esgotado de nada”, apetece dizer, citando o pensador francês Deleuze -, ao vazio que todos os poemas cartografam.
É o outro lado da beleza, que coincide com a “matéria fria do quotidiano”, e é também por isso que dizemos que há nestes poemas qualquer coisa de muito antigo, um vazio sem tempo que todos os poemas, em conjunto, erigem, não como tema, mas como declinação (“E é ainda para ninguém/ que estamos a falar de coisa nenhuma”), como se fossem dando, da forma mais sóbria possível, os múltiplos pontos de vista de um abismo que só eles conhecem (Camões, que é ao mesmo tempo o supra-camões, falava de um “tormento/ que a todas as memórias seja estranho”).
É daqui que decorre uma certa monotonia, uma certa repetição, uma monomania que facilmente pode ser confundida com a melancolia, apesar de não me parecer que, em Manuel de Freitas, se possa falar de melancolia (falta, talvez, a beleza convulsiva e sobra a lucidez daquele que transporta “gestos que sabem o quanto chegam tarde”), ou mesmo de uma desses sentimentos que, por vezes, se colocam como porta-estandartes das épocas – hoje isso será impossível, como sabe Manuel de Freitas e como sabemos todos. Há uma palavra alemã para isto, carregada de tradição filosófica, e que significa, não apenas o sentimento subjetivo, mas também a forma como os objetos nos aparece (a melancolia, por exemplo, é também uma forma de olharmos as coisas), mas, em Manuel de Freitas, o vazio que os poemas transportam e cartografam não parece nomeável: é o nada que derrota o próprio poema, que o esgota, para ser mais rigoroso, “com palavras póstumas/ onde o rancor se apaga”.
“É sempre o mesmo,/ as revisitações do mesmo/ espalhando pela casa o seu perfume intolerável./ Uma voz de ninguém ao fundo/ das esquinas e das gavetas abruptas/ onde os papéis são apenas/ a tristeza de serem papéis.”
É um outro movimento de Manuel de Freitas, essa “voz de ninguém” que equivale à única vontade, à última vontade, digamos assim, que se deixa ler ao longo de Levar Caminho I: uma vida sem rasto, o que significa, também, uma vida que quer apagar os seus rastos, que pretende, através das palavras, através da inscrição do próprio poema – há aqui um paradoxo, sem dúvida, mas consciente e afirmado, pungentemente conhecido -, embater no esquecimento, rasurar tudo, que é uma outra forma de afirmar o vazio que tenta dar a ver: “tudo o que da cinza já nada ficou”.
Se quiséssemos resumir, diríamos que se trata de uma poesia domingueira (“a lucidez será sempre a tentação e o terror/ de uma ácida tarde de domingo”) e convém colocar em destaque as referências que a ele são feitas: “o terror tépido de mais um domingo/ absolutamente dispensável” ou “um domingo/ meticulosamente cruel e irresolúvel”. É vida enquanto “domingo perpétuo” que nada dá, cujo movimento é apenas o de rasurar tudo, apagar o mais leve traço, deixar, enfim, ao vazio o seu império último.
É igualmente assim que a poesia de Manuel de Freitas encontra o esgotamento, ou se encontra desde sempre esgotada. Ele combina, como diria Blanchot, “a mais elevada exatidão e a mais extrema dissolução”. Para onde se sai depois disto, o que fazer das coisas “acesas em extinto fulgor”? Uma solução, possível, é o endereçamento da linguagem (Silvina Rodrigues Lopes alertou para esta dimensão), a palavra dada em oferenda ao outro. Como um monumento – mas para nada – que logo a seguir se quer apagar e desaparecer no “tempo que não temos/ mas que felizmente sobra.”