“É fazer a casa pelo telhado”: conheça a cultura Lean

“”Há um guru, o Kiyoshi Suzaki, que diz que passa por garantir que não há diferenças entre os dias da semana e os fins de semana: não significa trabalhar sete dias, mas sim assegurar que conseguimos ter uma fluidez tal que tudo funciona com suavidade”, explica Ricardo Ferreira de Mascarenhas, consultor de gestão e diretor da RM…

"A preocupação com a eficácia e a eficiência não nasceu no pós-guerra. Temos marcas como a Ford, nos anos 20, que são expoentes máximos do pensamento de crescimento. O que efetivamente há na Toyota é um conjunto de pontos que a torna diferente", começa por explicar, em declarações ao Nascer do SOL, Ricardo Ferreira de Mascarenhas, consultor de gestão e diretor da RMCONSULTING. "Temos um país destruído, intervencionado com uma gestão a ser feita pelos EUA, não tem matérias-primas, havia uma cultura bastante rígida (os japoneses têm aspectos vincados de respeito e organização) e queriam sobreviver e fazer automóveis", diz o também autor de 'Gestão Lean nos serviços', obra publicada em 2013.

"Aproveitaram recursos e pessoas para criar uma cultura que tem aspectos interessantes. Tal como em Portugal, as pessoas achavam que se algo corresse mal alguém colocaria a cabeça no cepo. Peço desculpa pelas palavras, mas esta é a verdade. Portanto, o modelo ficou conhecido pelo nome do diretor de operações, Ohno, e somente ao fim de 25 anos é que, como houve sucesso, passou a ser o Toyota Production System", avança. "E com as crises do petróleo surgiu a curiosidade norte-americana para saber o motivo pelo qual as montadoras nipónicas se aguentavam e as nativas não. Foi aí que nasceu a cultura Lean que, hoje, é um chavão e chapéu para tudo o que é melhoria contínua", explica, adiantando que "na Toyota os pilares são o respeito pelas pessoas e pelo trabalho em equipa, a melhoria contínua e uma visão a médio-longo prazo, enquanto no Lean há um pendor mais economicista".

"O lucro, o valor, o desperdício, cortar custos… Em 2008-2010, quando houve recolha de viaturas com defeitos, a Toyota foi a empresa que mais rapidamente mudou o paradigma e se adaptou. Mas estamos a falar de uma casa que tem uma cultura que está quase nos 80 anos. Este enquadramento é importante para sabermos como é que tudo apareceu", observa, acrescentando que "a metodologia Lean é uma cultura organizacional, uma forma de equilibrar", sendo que "hoje em dia se fala muito na relação trabalho-pessoa e é o modo mais fácil". "Há um guru, o Kiyoshi Suzaki, que diz que passa por garantir que não há diferenças entre os dias da semana e os fins de semana: não significa trabalhar sete dias, mas sim assegurar que conseguimos ter uma fluidez tal que tudo funciona com suavidade. Portanto, ser quarta-feira ou sábado é igual porque há todo um equilíbrio".

"Com respeito imenso pelas pessoas e pelo trabalho de cada um, há aumento da rentabilidade das operações através também da boa gestão do tempo. Temos três Ps: propósito, pessoas e processo. Temos de ter um propósito bem definido e perceber o porquê: para isso, temos de ter processos para atingirmos os nossos objetivos. E necessitamos de pessoas capacitadas não só para os gerir como para torná-los cada vez mais eficientes. E de uma visão da gestão que dá suporte às pessoas. E esta gestão será tão ou mais ágil quanto mais robusta for a cultura da organização", esclarece o fundador das conferências LEAN TODAY, que é mestre em Engenharia Mecânica com pós-graduação em Gestão. 

"É fazer a casa pelo telhado, digamos assim", explicita, sendo que numa das crónicas publicadas na Aveiro Mag escreveu que "o Lean é o primeiro passo na construção das empresas do futuro, focadas nos processos e centradas nas pessoas sem desperdícios". "Finalmente é uma realidade que começa a ser sistemática em Portugal e, por isso, essa é uma frase que foi feliz porque resume o potencial que existe nas organizações para crescer e responder aos desafios de hoje em dia como a falta de mão-de-obra", reconhece o consultor que conta igualmente com um mini-MBA em Lean Services Management, uma pós-graduação como Lean Practitioner pela Universitat Politécnica de Catalunya (Barcelona Tech) e é atualmente doutorando em gestão de operações na Universidade de Aveiro.

"Todos nós conseguimos identificar, no nosso quotidiano, aquilo que fazemos com valor: se formos eliminando desperdícios, concentramo-nos naquilo que tem mais valor e somos cada vez mais eficazes e eficientes. É isso que nos diferencia porque somos um país com uma mentalidade pequena: não somos pequenos em dimensão nem capacidade, mas pensamos pequeno", constata. "Fazemos coisas muito melhores do que os outros, mas achamos que eles são melhores. Se tivermos um modelo de pensamento e gestão que nos permite ganhar tempo, capacidade de resposta e libertar competências para o mercado teremos vantagem competitiva".

"'Poderíamos estar melhor' é uma frase que é sempre verdadeira: poderíamos estar sempre melhor porque ainda há um grande caminho a percorrer. No entanto, se olharmos para os últimos 15-20 anos houve, efetivamente, um progresso muito grande. Basta ver que antes nem sequer falávamos destes temas. E hoje falamos", afirma, dizendo que há conhecimento e vontade de aprender, mas muitos medos instalados. "Aquela ideia de que a pessoa que está a ver um processo é o mariola que não faz nada, por exemplo. Mas, se calhar, é a pessoa que melhor o conhece! E temos o culto da reunião, o email… Enfim. Perdemos imenso tempo em reuniões sem agenda, não há gestão, não há hora de início nem de fim e aquilo que fazemos é achar que a tecnologia resolve tudo quando, muitas das vezes, dar uma formação ou conhecer um bocadinho melhor alguém é muito melhor".

Então falta formação nas chefias? "Há sempre necessidade de formação. As chefias têm falta de formação e não conseguem saber tudo, mas podemos estar a falar de chefes de equipa, administradores, etc. Enquanto há quem veja a formação como um investimento, há quem pense que é um esforço, que tem de ser feita sempre no horário de trabalho e por aí além. E nada disto foi ajudado pelos modelos públicos: aquela ideia de que no trabalho não se aprende, que o colega mais velho não pode ensinar e que as formações do IEFP – são pensadas numa perspetiva de custo e não de valor agregado – é que proporcionam formação de qualidade…", reflete. "Há um longo caminho a percorrer para que os portugueses percebam que o conhecimento tem de ser adquirido durante a vida inteira. Aprendemos com a senhora que faz a limpeza do escritório, o porteiro, o administrador… Todas as pessoas!", exclama, lamentando que nenhum desse conhecimento seja validado.

"E há outro problema: temos a academia com pessoas muito válidas, mas fazem papers e artigos que são distantes da realidade. Ficam preocupadas em chegar a x revista, mas o impacto desse trabalho na vida real é diminuto. Enquanto sociedade, investimos muito na formação académica sem permitir que haja um retorno efetivo desse conhecimento para as empresas e organizações: temos de repensar o modelo que temos. Até porque essas pessoas vão lá para fora a custo zero", assevera. "Atualmente, tem-se um doutoramento aos 30 anos e é-se demasiado caro para as empresas: muito bem, mas estes jovens sabem o que fazem ou nem sequer têm experiência profissional? Acabam por ficar frustrados. O objetivo da cultura Lean é falhar e falhar cada vez melhor. Só que nada disto é culturalmente aceitável".

"Um jogador de basquetebol acerta todos os cestos que tenta? Não, tal como nós não fazemos tudo bem na nossa vida profissional". E, nesta vertente, o que importará mais? "Trata-se muito mais de uma questão de bem-estar porque este é mensurável e a felicidade não. E o primeiro é objetivo e a segunda é subjetiva. A palavra salário vem da remuneração dos exércitos romanos, pois o sal era um aspecto importante. Hoje, o dinheiro impera. Tem é de haver um equilíbrio e uma forma de reconhecimento justa para o compromisso que cada um assume com as organizações. A seguir, o modo como isso é reconhecido pode ser através de um cheque-infância, cheque-educação, férias… Há dezenas de opções que podem ser mais vantajosas para as pessoas e as organizações do que o dinheiro. Depois, o local de trabalho: não falamos de ter algo muito moderno, mas há valências que são valorizadas como uma creche. Uma empresa que a tem dá sinal de que investe na maternidade e na paternidade", admite, confessando, de seguida, que, na sua ótica, saber delegar continua a ser o principal problema para a maioria das pessoas.

"Delegar é difícil porque exige capacidade de transmitir com clareza aquilo que é preciso fazer e responsabilidade de quem vai executar as ações. É um processo fundamental para o crescimento de uma equipa, de uma empresa. Quem delega tem de estar cada vez mais capacitado para o fazer de uma forma eloquente e quem recebe as indicações tem de fazer perguntas e ter uma atitude de exigência. Tem de se ser 'chato' de forma positiva!", frisa.