Por João Sena
Herménio Fernandes é licenciado em Administração de Empresas, Gestão e Contabilidade, mas é a vida política autárquica que o seduz. Desde 2016 preside à Câmara Municipal de São Miguel, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, e, em 2020, foi reeleito presidente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV), que reúne representantes das nove ilhas habitadas, numa população total de 520 mil habitantes.
O seu trajeto político começou em 2013, como presidente da Juventude para a Democracia (JpD). Entre 2008 e 2012, foi vereador na Câmara Municipal de São Miguel em representação do Movimento para a Democracia (MpD), um dos principais partidos de Cabo Verde de cunho liberal. Em 2013, entrou para direção nacional do partido e, em 2017, tornou-se membro da comissão política nacional do MpD. Considera-se uma pessoa determinada, corajosa e aberta ao diálogo, para quem a honestidade e a transparência são princípios fundamentais na vida política.
Tem 39 anos e foi considerado pela organização Most Important People Afrodescendent (MIPAD) como um dos 100 políticos mais influentes de África com menos de 40 anos.
Para um político ainda jovem, o que representa esta distinção?
É o reconhecimento do trabalho e da dedicação que tenho pelo meu país, e do contributo que tenho dado para a vida política em Cabo Verde. É apenas um estimulo para continuar a fazer mais e melhor pelo país e pelo meu município.
Após este reconhecimento internacional, quais são as suas ambições políticas?
Não faço futurologia, mas de uma coisa tenho a certeza: é que estarei sempre disponível para servir o meu país onde for necessário. Neste momento, a minha preocupação é trabalhar com elevação, honestidade e com impacto na vida das pessoas da autarquia de São Miguel. Quero também dar um forte contributo para a consolidação do poder local através da Associação Nacional dos Municípios. Com o meu trabalho pretendo aumentar a credibilidade da classe política.
Cabo Verde é considerado por vários organismos como um exemplo da democracia em África. Como é que esse bem maior foi conseguido?
O sucesso de Cabo Verde deve-se, de facto, à forma como foi implementada a democracia. Se tivessemos adotado um regime democrático logo após a independência, em 1975, teria havido uma descentralização e a possibilidade de aplicar políticas públicas adequadas às diferentes regiões e o país estaria bem mais desenvolvido. Foi com a constituição democrática que passámos para uma economia de mercado, investimos na Saúde, na Educação e nas acessibilidades. Além disso, devemos ter um forte compromisso com a realização do bem comum e trabalhar para resolver os problemas das pessoas. Nenhum país terá sucesso sem uma classe política bem preparada, comprometida e que trabalhe com vista à realização do bem comum e do bem-estar geral. Só assim o país pode ter a prosperidade desejada.
As primeiras eleições multipartidárias foram realizadas em 1991. Considera que Cabo Verde já atingiu a maturidade democrática?
Sem dúvida. Temos uma democracia estável, com eleições periódicas e alternância no poder entre os dois principais partidos. A nossa democracia aparece bem avaliada em todos os rankings, nos últimos dez anos melhorou todos os indicadores de desenvolvimento e somos o país mais livre de África, há vários indicadores que confirmam isso.
Como define o combate político no país?
Neste momento, há uma oposição forte e uma opinião pública muito ativa através das redes sociais. Com o aparecimento de alguns partidos populistas, o combate político tornou-se mais complexo e exigente. Temos de prestar contas aos eleitores e ao país, mas esse combate deve ser feito com elevação e responsabilidade e não com populismo. Nos últimos tempos surgiram sinais de radicalismo, o que não é bom para a democracia. A oposição é importante para o sucesso do sistema, mas seria benéfico que o combate político fosse em defesa da verdade, com propostas e soluções alternativas a favor das pessoas e da sociedade, e não com argumentos que depois não conseguem provar. A oposição devia ser mais responsável, já que tem tido atitudes que põem em causa a imagem do país. Ainda temos muito a melhorar nesse aspeto.
Como presidente da ANMCV, como avalia a importância do poder local?
O poder local foi um dos maiores ganhos da democracia e tem dado um grande contributo na construção de Cabo Verde. Há uma boa parceria entre as câmaras municipais e o Governo, e os resultados são animadores, estou satisfeito e tranquilo com o trabalho realizado. Tudo indica que até 2030 Cabo Verde será um país desenvolvido, e isso vai acontecer com o contributo do poder local.
Quais são as áreas de atuação mais importantes das câmaras municipais em Cabo Verde?
Têm um papel fundamental na redução das desigualdades e da pobreza, na melhoria da competitividade dos territórios e na atração de novos investimentos, nomedamente da nossa Diáspora na Europa e nos Estados Unidos, que tem contribuído fortemente com capital financeiro para a construção do país. É um poder consolidado e aprofundado, até mais do que em Portugal.
Em que aspetos difere de Portugal?
Os municípios têm um conjunto de competências importantes para o funcionamento das regiões e das economias locais. Em Cabo Verde, há impostos que são pagos aos municípios, e aqui são pagos ao Estado. E dou exemplos: o imposto sobre o património imobiliário está sob alçada dos municípios, os cidadãos pagam às câmaras municipais, enquanto em Portugal pagam às finanças, ou seja, ao poder central. O mesmo acontece com o imposto sobre a transmissão de imóveis.
Quais são em concreto as competências das autarquias?
Os munícipos trabalham para resolver os problemas das pessoas e para que as regiões tenham um desenvolvimento sustentado. São eles que lideram os projetos de proximidade, ou seja, os projetos de saúde pública, de inserção social na área da infância e da terceira idade, mas também no abastecimento de água, da requalificação urbana e ambiental, criação de espaços públicos e zonas verdes, na cultura e no desporto. São também responsáveis por projetos na área do comércio e da pequena indústria. Para o sucesso de Cabo Verde, há três pilares fundamentais: o Governo central, o poder local e o setor privado, na forma de investimento externo. Nenhum país será bem sucedido se não houver uma participação efetiva, forte e dinâmica das câmaras municipais. Está provado que os países com maior descentralização são os que apresentam melhores indicadores de desenvolvimento.
Os munícipes participam na vida das autarquias?
As pessoas apresentam as suas queixas. Como é um poder que está próximo dos cidadãos torna-se mais fácil falar com o presidente da câmara ou com um autarca do que com qualquer outro político. É o poder que ouve, atende e resolve os problemas das populações.
Tratando-se de um arquipélago, há assimetrias no desenvolvimente económico e social entre as ilhas?
Ainda temos desequilíbrios regionais, que precisam de ser corrigidos. As desigualdades que existem devem-se ao planeamento deficiente e à falta de coragem no tempo do regime de partido único, o PAIGC. Deveriamos ter sido mais arrojados e ter maior ambição para o nosso país. Se as câmaras municipais fossem eleitas democraticamente e se houvesse uma verdadeira descentralização teriamos atingido um nível de desenvolvimento muito superior ao que temos atualmente. Para inverter a situação, a Associação Nacional dos Munícipios e o Governo têm vindo a elaborar uma estratégia de desenvolvimento regional, e acredito que temos todas as condições para corrigir esses desequilíbrios.
Quais são os próximos desafios do poder local?
Temos desafios gigantescos para vencer, nomeadamente o desenvolvimento económico, a inclusão social e a eliminação da pobreza extrema e a redução da pobreza absoluta, tudo isso tem de ser feito com o apoio do Governo, das empresas e com o investimento externo e da nossa Diáspora, mas o processo deve ser liderado pelas câmaras municipais. Espero que, no futuro, os autarcas tenham uma postura de liderança e que estejam na linha da frente no processo de desenvolvimento dos seus munícipios. As câmaras devem melhorar os serviços municipais, trabalhar melhor o planeamento para garantir novas áreas de expansão e criar condições para atrair investimento. Devemos facilitar a vida aos cidadãos e também às empresas.
Em 2019, Cabo Verde foi considerado um exemplo na redução da pobreza na região da África Subsahariana. Pode dar-me exemplos práticos que se refletem no dia a dia das pessoas?
As câmaras municipais, em parceria com o Governo, têm tomado várias medidas de forma a proteger as pessoas e a reduzir a pobreza e as desigualdades. Posso dizer que o rendimento da familias aumentou. Outro exemplo é a isenção das propinas, pelo que a Educação é gratuita. Os transportes escolares para o ensino básico são gratuitos. Houve melhoria no acesso à habitação em todo o país, cerca de 90% das pessoas já têm eletricidade e água canalizada e mais de 70% têm instalações sanitárias. Tem sido feita a requalificação de espaços públicos, a reabilitação de jardins e a valorização do ambiente. As famílias que estão no grupo dos mais desfavorecidos têm um rendimento social de inclusão, acesso gratuito às unidades de saúde e uma redução de 50% nas tarifas da água e eletricidade. São indicadores que confirmam que o país está no caminho do desenvolvimento. Além disso, estamos a fazer uma forte aposta na formação profissional para dar maior qualificação aos jovens e a outros quadros para que possam ter empregos dignos e melhor remunerados.
O MpD está no Governo pelo segundo mandato consecutivo. Como tem sido a relação da Associação Nacional dos Munícipios com o poder central?
A relação é boa, mas quero deixar claro que a Associação não é caixa de ressonância do Governo, nem do partido no poder. O papel da Associação é forte e temos tido uma atitude de defesa dos interesses das autarquias. A nossa opinião conta. Na altura da elaboração do Orçamento de Estado, a ANMCV é ouvida e algumas propostas foram aceites pelo Governo.
A Associação dos Municípios tem capacidade para influenciar as decisões do Governo?
Isso já aconteceu. No quadro da reforma do regime financeiro das autarquias locais, o Governo vai aumentar a sua comparticipação de 10% para 15% seguindo uma proposta apresentada pela Associação. Há muito tempo que os autarcas lutam por um aumento das receitas que o Estado transfere para os munícipios, já que essas receitas são fundamentais para o desenvolvimento local. Mas para que o novo regime financeiro entre em vigor é preciso que seja aprovado no Parlamento por dois terços dos deputados. Espero que os partidos de oposição, que têm pedido maior descentralização financeira, aprovem essa alteração. Nenhum partido pode fugir a essa responsabilidade.
Cabo Verde tem registado um progresso económico nos últimos anos. Como define a situação atual?
O país depende bastante do exterior e importa muito daquilo que consome. Qualquer choque externo, como a pandemia e a guerra na Ucrânia, tem forte impacto na economia e na vida das famílias. Apesar da conjuntura externa adversa, os dados de que dispomos indicam que, em 2022, vamos ter o maior crescimento económico na história de Cabo Verde, as previsões apontam para um valor entre 12% e 15 %. É um bom resultado, mas precisamos de um ciclo de quatro a cinco anos para que esse crescimento seja robusto e sustentado. As câmaras municipais têm grande responsabilidade nisto. Ninguém investe em locais que não tenham atratividade e se não tivermos nada para oferecer ninguém nos procura. Nesse prisma, o país tem de continuar a fazer reformas para tornar a economia mais dinâmica e competitiva para conseguir um ciclo de crescimento forte, ao mesmo tempo que devemos proceder à modernização administrativa.
Quais as áreas de atividades que mais contribuiram para esse crescimento?
O turismo é o setor mais pujante e representa cerca de 25% do PIB nacional. Houve outros setores que tiveram igualmente grande importância para o crescimento económico, caso da indústria transformadora, da construção, do comércio, das telecomunicações e das pescas, já a extração do sal não teve muita expressão. A agricultura é o setor que tem mais gente a trabalhar, mas em situação precária. Dados oficiais indicam que tem um contributo de 12% a 15% para o Produto Interno Bruto, mas na verdade esse valor é muito superior. Contudo, as potencialidades agrícolas perdem-se porque o país não está industrializado.
Tem havido cooperação com Portugal a diferentes níveis. Como tem sido aproveitada essa ligação e que impacto tem em Cabo Verde?
Defendo que é necessário uma Educação de qualidade para o desenvolvimento do país. Os países desenvolvidos têm um rácio de quadros superiores na casa dos 50%, nós estamos muito longe desse valor. O que faz os países avançarem é o conhecimento, por isso estamos empenhados em desenvolver o capital humano. Nesse sentido, estabelecemos protocolos de cooperação entre os munícipos de Cabo Verde e vários institutos e universidades de Portugal. Esses protocolos têm um impacto muito positivo na formação de quadros, que depois regressam ao país para trabalhar na administração pública e em empresas.
Quais as áreas onde se nota mais a cooperação entre os dois países?
Importa salientar que existe uma cooperação muito dinâmica entre as câmaras municipais caboverdiana e portuguesas e que tem havido intercâmbio de experiências autárquicas. As associações nacionais dos munícipos dos dois países trabalham em conjunto na área do Planeamento e Ordenamento do Território, Proteção Civil, Formação Profissional, Transição Digital, Pescas, Agricultura, Preservação do Património Histórico, Ambiente e Turismo. Em relação ao investimento público, estão a decorrer programas de cooperação entre os dois Governos que abrangem diferentes setores de atividade. Estamos também a desenvolver ações no domínio do investimento privado,que é bastante forte nomeadamente nos setores da Construção, Agricultura, Transportes, Telecomunicações e Turismo. Este tipo de colaboração vai continuar no futuro.
Cabo Verde é dos países africanos onde as mulheres têm maior representação nos centros de decisão. É um exemplo para manter?
O nosso país valoriza a participação das mulheres na política. Desde a implantação do regime democrático, em 1991, que as mulheres têm uma participação muito ativa na vida política. Já tivemos governos com 50% de mulheres e nas câmaras municipais a lei da paridade exige, no mínimo, 40% de presença feminina para que as listas sejam aprovadas. Neste momento, há mulheres no Governo e no Parlamento e passámos a ter mulheres presidentes de câmara e vereadoras. Defendo a participação ativa das mulheres na política para melhorar a democracia em Cabo Verde. Espero que nas eleições autárquicas de 2024 haja maior presença feminina, pois as mulheres têm sido muito importantes para a construção do nosso país.