A maioria absoluta dos votos numas legislativas é o sonho de qualquer líder político. Consegui-lo é praticamente impossível e quando acontece é sinal de uma enorme confiança por parte do eleitorado. São momentos em que os eleitores querem acima de tudo estabilidade e exprimem-no através de uma votação massiva num determinado político e força política para a alcançar.
As circunstâncias em que as três maiorias absolutas da história da democracia aconteceram são simbólicas e marcam o desejo de mudança em diferentes momentos. O fim da primeira e última experiência de um Governo de Bloco Central, necessário para enfrentar a bancarrota em que tínhamos caído pela segunda vez depois do 25 de Abril, deixou os portugueses exaustos e ávidos de uma esperança num futuro melhor. O declínio de um Governo de direita deixado nas mãos de um primeiro-ministro que os portugueses não elegeram, assumindo o lugar de forma polémica em substituição de Durão Barroso que abandonava o país a caminho de Bruxelas para assumir os destinos da Comissão Europeia. O fim de um doloroso e desconhecido período de pandemia, em que os partidos à esquerda do Partido Socialista sacrificaram a estabilidade por interesses políticos e os partidos à direita não foram capazes de demonstrar que estavam à altura de ser uma alternativa credível.
Motivados pelas circunstâncias em que chegaram a primeiros-ministros absolutos, Cavaco Silva e José Sócrates viram na oportunidade que lhes tinha sido dada de governar sem constrangimentos a ocasião para pôr em prática aquilo que julgavam ser o caminho que o país devia seguir. Para os dois, o primeiro ano de Governação deveria marcar o ritmo da legislatura. Talvez tenha sido por terem passado os dois pela mesma experiência que nos primeiros anos de Governo, Cavaco, então Presidente da República, e Sócrates, primeiro-ministro, tenham tido uma relação muito próxima e até de cumplicidade. Em sentido contrário, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, os eternos cúmplices, surgem em 2023 de candeias às avessas, porque Costa ‘desbaratou’ o primeiro ano de maioria absoluta. Esta é a leitura de Marcelo; o primeiro-ministro, apesar de reconhecer que ‘se pôs a jeito’, acha que tem todo o tempo do mundo e que conta com a paciência dos portugueses para ir governando ao seu jeito.
Um ano passado sobre a mais recente maioria absoluta da nossa democracia, vale a pena fazer a comparação da obra lançada nos primeiros 12 meses pelos três homens que a conseguiram. E antes de fazer comparações, é bom sublinhar que nenhum dos três chegou ao poder em épocas fáceis, seja pela fragilidade da economia nacional, seja pelas circunstâncias externas que prometiam forte impacto na vida nacional. As maiorias absolutas corresponderam sempre a um desejo de mudança urgente por parte dos portugueses.
Na sua autobiografia política (segundo volume), Aníbal Cavaco Silva escreve: «Refleti sobre a ação do Governo para o período de quatro anos de legislatura, pareceu-me claro que esta devia ser dividida em duas fases». Explica depois que os primeiros dois anos devem ser dedicados a iniciar as tarefas mais difíceis, para depois, no final da legislatura, estar atravessado o período de maior impopularidade com a implementação das reformas e o eleitorado poder começar a ver resultados. Mesmo a tempo de novas eleições. Cavaco não perdeu tempo e estabeleceu metas ao seu Governo. No primeiro ano de legislatura lançou a reforma fiscal que viria a substituir os vários impostos individuais e coletivos em IRS e IRC. Iniciou o processo de reprivatização das muitas empresas que tinham sido nacionalizadas no 25 de Abril e que não fazia sentido estarem nas mãos do Estado. Colocou na mesa da Concertação Social propostas para flexibilizar o mercado de trabalho. Propôs uma reforma à reforma agrária de forma a criar estabilidade e produtividade nas terras alentejanas. Iniciou o processo de reprivatização da grande maioria dos meios de comunicação social nacionalizados em 1974. Lançou novas regras para a administração hospitalar. E propôs alterações ao sistema salarial da função pública.
Quando, dez anos depois das maiorias de Cavaco, José Sócrates conquistou a primeira maioria absoluta para o Partido Socialista, o então líder do PS também colocou bem alta a fasquia para o primeiro ano do seu Governo. Sócrates trazia juventude e energia e uma agenda repleta de reformas para pôr o país a par dos seus parceiros europeus. Já nos tempos em que era um dos principais ajudantes da António Guterres, Sócrates era o homem do futuro. Chega a primeiro-ministro numa época em que Portugal está a sentir o primeiro embate da adesão ao Euro. Com enormes exigências para cumprir e sem uma economia robusta que consiga acompanhar os seus parceiros. O recém-eleito primeiro-ministro acha que não tem tempo a perder para modernizar o país e faz gala em mostrar que ganhou as eleições para mudar Portugal. O estado da economia dá-lhe algumas dores de cabeça, mas nem por isso sacrifica o seu ímpeto reformista ao jugo financeiro e económico. No primeiro ano de legislatura lança reformas. Sabe que algumas delas são impopulares, mas, tem a certeza, vão produzir o efeito desejado. Impõe novas regras no regime remuneratório e de carreiras da administração pública. Lança a reforma da segurança social que acabaria por aumentar a idade da reforma. Reorganiza o sistema escolar, com o fecho de escolas do primeiro ciclo com menos de dez alunos. Introduz o ensino da língua inglesa desde o primeiro ciclo e as aulas de substituição. Coloca em discussão o sistema de avaliação de professores. Reduz as férias judiciais de dois meses para um mês. E lança o seu plano tecnológico com medidas horizontais que pretendem mudar a estrutura da economia, lançando a Parque Escolar, o Simplex e o computador Magalhães.
Quase vinte anos depois, eis que António Costa volta a conquistar uma maioria absoluta para o Partido Socialista. Depois de dois anos de pandemia, a conjuntura internacional é difícil. O início de uma guerra na Ucrânia que ninguém esperava coloca à Europa grandes dilemas. Terá também sido por medo do futuro incerto que a maioria dos portugueses decidiu dar uma maioria absoluta a um primeiro-ministro que já conheciam, acreditando que era a pessoa adequada para os guiar num período tão incerto. O certo é que António Costa terá sido o mais surpreendido por esta opção do povo. Mostrou-se contente na noite da contagem dos votos, mas, de facto, não estava à espera disto ao fim de sete anos de Governo. Reformas não tinha para apresentar. Aliás o primeiro-ministro é ‘alérgico’ à palavra reforma como confessou à Rádio Renascença há uns anos. A verdade é que entre a surpresa, o cansaço e a guerra, o primeiro ano desta maioria absoluta mostrou que não havia projeto, certo ou errado, a sustentar esta maioria. Ao fim de um ano, o que o Governo tem para apresentar é um pacote Habitação Mais que está longe de vir a resolver algum problema e que chega tarde e a más horas. Com o estado social a dar sinais de rotura o Governo parece estar paralisado e sem soluções. E no interior do executivo somam-se os ‘casos e casinhos’ que levaram António Costa a reconhecer ao fim de um ano que o Governo ‘pôs-se a jeito’. Um ano depois das eleições que lhe deram a maioria absoluta a grande dúvida no seio do Governo é saber o que fazer com mais três anos e meio. Ou será que vão ser menos?
*Texto editado por Sónia Peres Pinto