Após o escândalo, relativo ao sociólogo e professor Boaventura Sousa Santos – denominado como The Star Professor (O Professor Estrela) -, que foi acusado de assédio sexual, Catarina Laranjeiro, Lieselotte Viaene e Mya Nadya optaram pelo silêncio. Há quem duvide daquilo que aconteceu, quem defenda o sociólogo e quem não acredite que cometeu tais atos, mas nada disto surpreende uma fonte da Universidade de Coimbra, que prefere não revelar a identidade, mas esclarece, em declarações ao Nascer do SOL, que «Boaventura Sousa Santos está, talvez, a provar do veneno do marxismo cultural que andou a espalhar ao longo da sua carreira». «O feitiço virou-se contra o feiticeiro», mas outra fonte contactada pelo Nascer do SOL lamenta que «os danos reputacionais individuais e institucionais possam ser pesados» naquilo que diz respeito ao caso que surgiu devido ao capítulo em que é acusado o sociólogo que vem da geração do Maio de 1968, da revolução sexual, da Playboy, de Hugh Hefner em que «tudo era permitido».
Outra académica da Universidade de Coimbra, contactada pelo Nascer do SOL, encaixa o fenómeno «num feminismo radical mais puritano do que o puritanismo religioso, totalmente anti-patriarcal». E ironiza que «em vez do slogan marxista ‘trabalhadores de todo o mundo uni-vos’ temos mulheres de todo o mundo unidas contra Boaventura Sousa Santos», frisa, concluindo que «o artigo é feito de insinuações e inuendos… as senhoras não apresentam factos provados ou prováveis…o que não quer dizer que não possam surgir».
No entanto, as denúncias realizadas pelas investigadoras vão ao encontro daquilo que, alegadamente, se vive no seio da academia há muito. Apesar disso, em resposta ao Nascer do SOL, deixaram claro que decidiram não prestar declarações formais nem informais relacionadas com o caso. O Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) confirmou, desde cedo, que está a investigar as denúncias das três investigadoras, que passaram por aquela instituição, publicadas no livro ‘Sexual Misconduct in Academia’ (’Má Conduta Sexual na Academia’, em português), lançado em março, no Reino Unido, pela prestigiada editora académica Routledge.
«O CES tem publicado na sua página online um comunicado que dá conta da sua posição e atuação institucional perante as alegações publicadas no capítulo. O comunicado reflete as preocupações que neste momento concentram a atenção dos órgãos diretivos do CES: averiguar a ocorrência de eventuais falhas institucionais e/ou condutas inadequadas, através da comissão independente que está a ser constituída, e trabalhar rapidamente na clarificação e melhoria dos instrumentos existentes para a prevenção e combate a todas as formas de assédio. Não estamos neste momento a comentar aspetos que virão a ser, certamente, objeto de averiguação por parte da Comissão», disse ao Nascer do SOL.
As investigadoras, duas estrangeiras e uma portuguesa, não mencionam nomes nos seus relatos, mas a identificação parece ser clara e o CES decidiu mesmo abrir um inquérito no contexto da publicação de ‘As paredes falaram quando mais ninguém o fez’ na obra mencionada. Um dos casos diz respeito a uma investigadora brasileira à qual Boaventura Sousa Santos terá tocado no joelho e convidado a «aprofundar a relação», tendo-a colocado de parte quando esta recusou os seus supostos avanços. O professor, em 2014, tinha mais de 70 anos e, a aluna, menos de 30.
O toque não terá acontecido na universidade, mas sim em casa de Boaventura Sousa Santos, sendo que este teria acabado de aceitar orientar um trabalho da investigadora. Alegadamente, ter-lhe-ia respondido ao email com a solicitação sugerindo que se encontrassem na sua residência e a reunião, aparentemente de trabalho, começou com uma receção com bebidas alcoólicas, que a aluna recusou. «Acho que confundiu as coisas», terá dito a mulher, que ouviu falar do investigador por meio do livro ‘Ecologia de Saberes’. «Li aquilo e fiquei admirada e isso fez-me tomar a decisão de fazer o intercâmbio estudantil na altura da graduação para Portugal», contou ao jornal online Observador, explicando que a publicação a fez «querer fazer um doutoramento» no CES.
Logo no dia seguinte, tendo-se reunindo com Boaventura Sousa Santos e com o seu ex-companheiro (também estudante de doutoramento), a investigadora levou com um balde de água gelada. «Criticou de forma muito agressiva o trabalho que vínhamos fazendo», contou a mulher ao jornal Público e tal levou mesmo a que o seu então namorado chorasse. Procurou ajuda junto da universidade, mas o coordenador do curso ter-lhe-á negado a mesma. «Infelizmente, o Boaventura é brilhante, mas tem destas coisas», terá dito.
Terá regressado ao Brasil e terminado lá o doutoramento mas, em 2019, recebeu um email de Boaventura Sousa Santos, que ia estar em Bahia e queria estar com ela. O professor pediu desculpa e perguntou se a antiga aluna estava relacionada com os grafitis que tinham surgido em Coimbra com a mensagem ‘Todas Sabemos’, mas ao Observador a mulher garantiu que não teve nada a ver com os mesmos.
Outro dos visados nas denúncias das três mulheres será o antropólogo Bruno Sena Martins – designado na obra como The Apprentice (O Aprendiz, em português) -, investigador do quadro do CES. Myie Nadya Tom acusa-o de uma conduta de agressão sexual, não especificando do que se trata. A investigadora ter-se-á queixado a uma terceira figura, Watchwoman (em português, Sentinela), e esta não terá respondido. Por outro lado, o termo ‘agressão sexual’ também é utilizado por outra das autoras, esclarecendo que não o experienciou, mas que saberá de um caso que comentou com outra colega e que essa terá identificado outro. Não se sabe a quem estas acusações dizem respeito. Mas Tom já tinha acusado publicamente nas redes sociais, em janeiro de 2019, Sena Martins, que apresentou queixa por difamação contra ela. Porém, o investigador diz que se envolveu sexualmente com a suposta vítima, tendo respeitado o princípio do consentimento, em resposta ao Diário de Notícias.
«Nunca fui professor, orientador ou membro da mesma equipa de investigação da Miye, nunca tive nenhuma relação profissional com a Miye no CES e nem me lembro de alguma vez me ter cruzado com ela nas instalações do CES. Na altura, os meus interesses de investigação não tinham nada a ver com os dela, eu trabalhava a deficiência e ela estudava outros temas. Nestas circunstâncias, falar de uma relação de poder académico é infundado», realçou. Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do CES, declarou, também ao Diário de Notícias, que a acusação é «uma distorção e uma falsificação da realidade» e lamentou estar a ser vítima da cultura de «cancelamento», acrescentando que o artigo das investigadoras é «ataque ad hominem em que o mundo académico começa a ser fértil».
Entretanto, veiculou, esta quarta-feira, um comunicado, no qual diz ser vítima de «uma difamação anónima, vergonhosa e vil por parte de três autoras». «À partida quero afirmar que todos os casos de conduta incorreta referidos no texto por parte de quem seja, se confirmados, devem ser prontamente julgados tanto no CES como nas instâncias judiciais e como ao tempo era diretor do CES assumo institucionalmente responsabilidades por eventual negligência que possa ter havido», lê-se no texto. O sociólogo elucidou que nunca se reuniu com duas das três investigadoras, mas sim que apenas se encontrou com Lieselotte Viaene por duas vezes, «uma como seu supervisor do estágio Marie Curie quando chegou ao CES e outra como diretor estratégico do CES, a pedido do diretor executivo, para tentar resolver os problemas do comportamento incorreto e indisciplinado do ponto de vista institucional desta investigadora», que acabaria por ser expulsa da instituição académica. «É um ato miserável de vingança institucional e pessoal», sublinhou.
«Que tipo de ciência é esta que permite enxovalhar e lançar lama uma instituição de prestígio e especificamente o investigador que foi durante tantos anos seu diretor?», questionou. Boaventura Sousa Santos adiantou ainda que independentemente dos procedimentos judiciais que o CES vier a adotar, vai apresentar uma queixa-crime contra as autoras por difamação.
«É mesmo assim: por falta de apoio, por falta de voz, cara ou tornar a violação e o assédio num crime público mitigado como recomendado é que as vítimas não têm senão uma voz sem rosto ou um grafitti numa parede, umas palavras num livro, com medo de serem processadas pelos tubarões das instituições que acusam», desabafa a ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros. «A convenção de Instambul entrou em vigor há dez anos. No entanto, as leis continuam a não evoluir no sentido do que diz a convenção, que preconiza que tanto o assédio como a violação não devem depender de queixa. Tal não foi concretizado até agora, sendo Portugal e San Marino os dois únicos Estados que não alteraram as suas normas anacrónicas. É absolutamente chocante!», exclama a também cronista e pintora.
Um problema recorrente
Os problemas com abusos sexuais em ambiente escolar não é novo. Em agosto de 2021, no artigo ‘Tenho medo dele e uma sensação de enjoo sempre que o vejo na faculdade’, o i narrou as histórias de alguns estudantes que terão vivido situações semelhantes às agora descritas. Sara foi assediada por um professor e a indumentária de Rodrigo foi associada a atos sexuais. Madalena desistiu do mestrado porque não suportou os avanços indesejados do orientador, enquanto Catarina foi ameaçada por um docente. Beatriz foi vítima de comentários racistas e Rita não consegue ver um funcionário que tentou beijá-la.
«O meu orientador da tese de mestrado estava sempre a ser pouco profissional comigo. Queria ver-me em casa dele, que nos encontrássemos em restaurantes e bares. Ligava-me à noite, enviava-me mensagens privadas no Facebook… Senti-me tão desconfortável que acabei por nunca terminar a tese nem defendê-la», desabafou Madalena. «Tinha medo de ser prejudicada uma vez que resisti a todos os avanços por parte do meu professor. O meu mestrado tinha muitos rapazes e os professores eram quase todos homens também».
No mês anterior, em julho de 2021, uma estudante de Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) foi impedida de realizar um exame devido à indumentária que apresentava. O episódio ocorreu quando o professor Paulo Pulido Adragão recusou entregar o enunciado da prova à jovem por esta estar «muito destapada» e pediu-lhe que vestisse um casaco, tendo a aluna conseguido realizar o exame, momentos depois, graças à intervenção de um colega.
Em abril de 2022, no espaço de apenas 11 dias, depois de ter aberto um canal para receber denúncias de assédio e discriminação, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) recebeu 50 queixas, relativas a 10% dos professores. Segundo o Diário de Notícias, jornal que deu a conhecer esta informação, sete dos 31 professores alvo de queixa correspondem a mais de metade dos relatos. Assim, de acordo com o canal aberto pela instituição de Ensino Superior, foram rececionadas 29 queixas de assédio moral e 22 de assédio sexual, entre outras de variados carizes. Foram verificadas denúncias de práticas discriminatórias de sexismo, xenofobia/racismo e homofobia. Simplificando, podemos concluir que foram recebidas 70 denúncias e, destas, 50 dizem respeito a 31 docentes. Sete destes têm mais de metade das queixas e há um com nove e dois com cinco.