O uso cada vez mais frequente da inteligência artificial, fruto do processamento massivo e eletrónico de dados, determinou, ao nível da administração da justiça, um otimismo crescente no que respeita aos benefícios que podem resultar do uso de sistemas autónomos. A inteligência artificial é chamada, a este nível, a cumprir três principais funções: a) recolha e tratamento de informação; b) avaliação de risco; c) decisão de casos juridicamente relevantes.
Determinados softwares mostram-se aptos a tratar grandes quantidades de dados, distinguindo entre aqueles que são e os que não são revelantes. Neste plano, a inteligência artificial pode funcionar como um importante assistente na pesquisa jurídica, como sublinha Cass R. Sunstein. Para além de garantirem o armazenamento de informação, os sistemas dotados de inteligência artificial seriam dotados de mecanismos que permitiriam, a partir da construção de bases de dados e de sistemas de indexação que funcionariam de modo simples ou através da associação de termos que, de forma estatisticamente relevante, surgem próximos nos documentos, um rápido acesso à informação já trabalhada. Dito de outro modo, ofereceriam a possibilidade de acesso a uma lista de casos análogos ao que o jurista tem de decidir ou com base no qual tem de trabalhar e poderiam, inclusivamente, elencá-los em função do grau de semelhança que apresentassem. Ao mesmo tempo, explicitariam os termos da similitude e das diferenças que fossem detetáveis, permitindo, a priori, esboçar argumentos e contra-argumentos no sentido da aplicação da solução pensada para esses mesmos casos decidendi. À celeridade e à comodidade na execução das tarefas associar-se-ia a ideia de que uma melhor informação potenciaria melhores decisões. Não obstante o ganho de eficiência, a que se aliaria a salvaguarda de uma ideia de igualdade perante a lei e de segurança jurídica, tais sistemas não são imunes a problemas, que, tendo um recorte técnico, não deixam de ter um importante impacto jurídico.
Na verdade, o cabal cumprimento destes objetivos implica que o sistema seja integral ou que, não o sendo, o jurista tenha disso consciência, mobilizando-o apenas como um auxiliar de pesquisa e não o absolutizando. De facto, de outro modo, se o jurista se cingir aos resultados da pesquisa efetuada pelo sistema autónomo, substituindo in totu os meios tradicionais de pressuposição do sistema jurídico, corre-se o risco de encerramento numa caixa de ressonância de soluções cristalizadas, sem qualquer abertura a uma dimensão crítico-reflexiva, naquilo que alguns autores como Jochen Schneider designam por monocultura.
Por outro lado, cumprindo um papel essencial ao nível da predição do risco, os sistemas autónomos podem funcionar, também, como preciosos auxiliares do jurista numa fase de aconselhamento. Abandona-se, a este propósito, o ponto de vista do julgador para nos orientarmos de acordo com a perspetiva do advogado, que assume a defesa do seu constituinte. De facto, quer ao nível da negociação de contratos, quer ao nível da previsão do eventual sucesso ou insucesso de uma ação judicial, a utilização de sistemas de inteligência artificial pode revelar-se determinante para a ponderação do risco associado a uma tomada de decisão. A construção de modelos preditivos pelos sistemas autónomos desempenharia um papel fundamental ao nível da justiça, abrindo, inclusivamente, as portas a esquemas de investimento que podem passar por um terceiro financiador da lide.
O que já nos parece inviável é a substituição de um juiz-pessoa por um juiz-algoritmo.
Desde logo, deixaria de ser possível garantir a imparcialidade dos tribunais, consagrada ao nível da CRP e tutelada por via de expedientes processuais. É certo que a atuação algorítmica do software oferece garantias acrescidas de independência, objetividade e imparcialidade, pela falta de condicionantes emocionais e pela falta de ligação a interesses por parte do sistema computacional, mas importa não esquecer que o software não é neutro, sendo condicionado pelos vieses introduzidos pelo programador, o que significa que o problema da imparcialidade e independência sofre uma deslocação da figura central do juiz para a figura do programador que, a montante, permite o funcionamento do algoritmo, o que, em si, comporta uma dificuldade acrescida, já que sobre ele não recai qualquer tipo de controlo.
Por outro lado, pese embora a inteligência artificial não configure um magma uniforme e se desenvolvam já hoje sistemas assentes em algoritmos generativos, capazes de produzir textos como se fossem peças escritas por um humano, o tipo de racionalidade subjacente ao funcionamento dos sistemas autónomos continua assente em axiomas numéricos, não se abandonando a trilogia indução, dedução e abdução. Ora, o direito realiza-se através de uma decisão judicativa, na qual está sempre presente a mediação constitutiva do julgador.
O raciocínio jurídico, marcado pela analogia, envolve a pressuposição e a consideração de uma dimensão valorativa que ultrapassa a mera conceptualização abstrata. São, portanto, dois os aspetos que tornam inviável a substituição de um juiz por um software. Em primeiro lugar, não sendo a analogia jurídica uma analogia matemática, isto é, não pressupondo uma verdadeira identidade, mas a sobrestimação das semelhantes por detrás das diferenças, envolve a consideração de nuances que não estão ao alcance da inteligência artificial; em segundo lugar, na medida em que o exercício pressupõe a mobilização de um referente valorativo imanente ou transcendente, fica fora do alcance da dedução alicerçada na padronização estatística própria dos softwares inteligentes, ainda que se trate de uma padronização estatística com vista a prever conexões entre signos linguísticos, como ocorre nos large language models, de que é exemplo o ChatGPT.
A substituição de um juiz por um juiz-algoritmo condenar-nos-ia ao mais demolidor positivismo, incapaz de realizar a justiça.