Forjado no fogo

É preciso deixar de culpar os outros, discutir construtivamente e criar mecanismos de debate para encontrar alternativas melhores e mais adaptadas aos nossos problemas.

Nova Iorque, abril 2023

«Se queres ir rápido, vai sozinho; se queres ir longe, vai com companhia».

Provérbio Africano

 

«O mundo oferece conforto, mas tu não foste feito para uma vida confortável, foste feito para uma vida grandiosa».

Papa Bento XVI

 

«Uma casa dividida entre si não sobrevive».

Jesus Cristo

 

Queridas Filhas,

Diamantes nascem a altas pressões e temperaturas dentro da terra, as melhores espadas são forjadas a muito altas temperaturas e as melhores organizações humanas são criadas e alimentadas por um debate intenso, honesto e focado numa solução melhor do que as propostas das partes. A história dos pais fundadores dos USA contem exemplos disto: leis e instituições nascidas de intensos debates polarizadores, que, contudo, foram resolvidos com sentido de estado levando à distribuição de poderes e ‘checks and balances’ que ainda temos sempre resistindo a períodos de crise política.

Infelizmente atualmente, vemos a emergência de protestos violentos liderados por grupos convencidos da verdade a 100% das suas posições e sem interesse em compreender ou mesmo ouvir os que deles discordam. Na realidade preferem cancelar opositores. Ativistas climáticos da última geração na Europa, protestos contra aumento de idade de pensões na França, Black Lives Matter nos USA, e mesmo, chocantemente para mim, a imprensa tradicionalmente central a não ter dúvidas das suas opiniões como o The Economist que há menos de 20 anos sempre refletia os argumentos dos dois lados.

O desprezo com que um lado olha para o outro é visceral. Ao nível de julgamento moral. De tal forma se banalizou que durante a campanha de 2016 Hillary Clinton caracterizou os apoiantes de Trump como «deploráveis», comentário que lhe custou a eleição quase certa. Vejo aqui a sede da sociedade moderna por uma religião que foi desprezada e mesmo classificada como «superstições» durante o século XX. Sem acordo sobre valores e morais, cada grupo vai construindo os seus, e ao fim de algum tempo vê os em confronto com outros grupos. Estes são apontados como heréticos e deploráveis. A Sociedade entra em conflito e nessa instabilidade procura bodes expiatórios para atenuar o conflito interno: na Europa os USA, Trump e Capitalismo têm sido os bodes expiatórios mais usados. Mas infelizmente esta experiência catártica de encontrar um inimigo comum constitui um paliativo de curto prazo que não resolve o conflito de longo prazo. Mais tarde ou mais cedo os conflitos voltam. Os USA reduzirão o foco na Europa em favor da Ásia, Trump desaparecerá da política e as experiências de repudio de capitalismo falharão redondamente (Venezuela, Coreia de Norte, Cuba…). Outro bode expiatório será necessário…

Há uma alternativa: deixar de culpar os outros, discutir construtivamente e criar mecanismos de debate para encontrar alternativas melhores e mais adaptadas aos nossos problemas. Aqui temos feito uma escolha infeliz. Diferimos a técnicos para que do alto das suas qualificações nos guiem. Mas infelizmente os resultados aqui não têm sido bons: na covid ainda não há consenso de onde vem o Vírus, temos cientistas que defendem a política extrema da China enquanto outros defendem a mais liberal da Suécia. Noutras áreas isso também se vê: inflação a galopar quando os bancos centrais e governos nos prometeram que era transitória; metade a dois terços dos estudos científicos publicados em revistas académicas com resultados que não podem ser replicados indiciando manipulação de dados ou mesmo fraude para avanço de carreira académica…

Claramente, parar de pensar para obedecer cegamente a peritos não resulta. Então o que resulta? Alexis de Tocqueville aponta outro caminho. No seu Democracy in América ele descreve que o que mais o impressionou na sua visita dos Estados americanos foi o sentido de comunidade e a multiplicidade de organizações comunitárias que os americanos fundam e participam. Desde organizações de vizinhos para melhorar e valorizar a vizinhança, a organizações sociais (Rotary, Lyons…), organizações de caridade, organizações temporárias de alívio a desastres e crises a organizações de supervisão de escolas e sistemas de saúde.

Por exemplo, nas organizações de escolas os pais discutem com professores e administradores a melhor forma de educar os filhos, que matérias cobrir e que investimentos fazer ou não para manter a educação acessível a todos e eficaz. Naturalmente nestas reuniões vários grupos terão opiniões diferentes ou mesmo antagónicas. Mas através de debate, negociação e foco na missão final (educação dos filhos neste caso) chegam a soluções superiores as propostas inicialmente, e mais importante, motivam-se todos os participantes a implementar a decisão. Nesse processo desenvolvem as suas capacidades de ação cívica.

Em Portugal dizemos que ‘em casa de cego, quem tem um olho é Rei’. A minha esperança é que vocês mantenham os vossos olhos, ajudem as pessoas à vossa volta a abrir os seus, e criem condições para uma maior participação e crescimento cívico ancorado por valores e moral que serviram a civilização ocidental durante séculos. Estes têm raiz cristã: defesa dos fracos e oprimidos chocaram os romanos e gregos para quem a fraqueza tinha de ser eliminada e dominada. Vemos renascimento da perspetiva romana em sociedades autocráticas. Mas se o ocidente se unir e incluir todas as perspetivas na procura da melhor solução que sirva o bem comum penso que o século XXI será ainda ocidental.