Faz das memórias um trunfo na arte de cozinhar. O prato que demorou mais tempo a idealizar pode ser encontrado no cardápio com o nome ‘Lula Chanel’ e com ele são servidos também seis meses de trabalho. Gosta de silêncio na cozinha, mas admite que nem sempre foi assim, que o seu perfil enquanto chefe também se transformou ao longo dos anos. Ao contrário de alguns colegas, os prémios não lhe são indiferentes. Recorda a altura em que conquistou a primeira estrela Michelin para o restaurante Casa de Chá da Boa Nova e o impacto que teve nas reservas: «a faturação aumentou 25 a 28%», constata. Já no final de 2019, o restaurante situado em Leça da Palmeira foi novamente distinguido pelo Guia Michelin. Assim, conquistar a terceira estrela é um dos principais objetivos de Rui Paula, que lamenta ainda a facilidade com que hoje se abrem restaurantes: «As pessoas juntam-se à noite e decidem: vamos abrir um restaurante!». «A comida é uma coisa séria. Acham que é pôr um candeeiro bonito e fazer uns cocktails e está resolvido», alerta. E vai mais longe: na sua opinião, 50% dos restaurantes não têm qualidade.
Recentemente foi notícia que o Noma [considerado por cinco vezes o melhor restaurante do mundo] vai fechar. Isto significa que estamos perante novas adversidades?
São outras realidades… Isso são tudo negócios que não têm nada a ver. Ele vai fechar, mas vai andar pelo mundo todo a montar restaurantes durante X tempo… Portanto, isso tem a ver com negócio, com esperteza… Uma realidade diferente da nossa. Aquele mito de que os restaurantes Michelin não são rentáveis é mentira. As pessoas têm que fazer as coisas como deve ser, um restaurante Michelin é rentável como pode ser outro qualquer… Mas são outras realidades. Na minha ótica o pensamento deles [Noma] é dinheiro. Uma coisa é fecharem, mas estarem a dizer que vai andar aqui e ali… E mais: anunciou que ia fechar…
Em 2024. Para se reinventar como um laboratório de alimentos.
Daqui a um ano! Isto está mais do que planeado. Se vai fechar daqui a um ano é porque não estão assim tão mal. Adversidades há sempre, ninguém estava a contar com a guerra, não é? E depois da tempestade vem sempre a bonança, portanto, adversidades há sempre e muita sorte temos nós que, na nossa geração, nunca passámos por guerra nenhuma. Agora, gastronomicamente falando, cada vez há mais turismo e, em Portugal, não nos podemos queixar. É preciso é trabalhar bem.
Tem três restaurantes muito conhecidos: o DOC, no Douro, o DOP, no Porto, e o Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira. Como é o seu dia-a-dia?
A minha base agora é mais a Casa de Chá, tem duas estrelas Michelin, tenho de ficar um bocadinho mais tempo, mas depois divido-me pelos outros durante a semana, além dos serviços fora. O DOP está a ser todo remodelado e só abre no fim de maio. Por um lado estou mais sossegado. Já está fechado há cerca de dois meses. Mas voltando às adversidades, digo-lhe que estou a gastar uma pipa de massa [na remodelação].
Sempre para tentar manter o negócio a funcionar da melhor forma…
Claro. Já tinha 13 anos, estava a precisar.
No Casa de Chá, o preço dos menus de degustação pode chegar aos 200 euros. Também por este factor, certos conceitos são cada vez mais vendidos como uma ‘experiência’? Naturalmente não são para qualquer bolso…
O termo ‘experiência’ é incorreto. Eu também dizia, mas o que é uma experiência? É uma coisa que não está testada, não é?! No outro dia um cliente disse-me: «Ó chef, desculpe lá, o que é uma experiência?», e começou a puxar por isso… Realmente, a experiência é uma coisa que não está testada, é uma coisa que pode correr bem ou mal. Mas, para responder à pergunta, o que temos que demonstrar aos clientes é o seguinte: o cliente tem que vir aqui e se pedir 21 momentos [menu de degustação] paga 250 euros – fora os vinhos. Não é 200, é 250 euros [risos]. Se tiverem de gastar esse dinheiro, nós temos que dar o nosso melhor. E o que é o nosso melhor? São detalhes. A comida evidentemente tem que ser boa, fresca e surpreendente mas, depois, podemos inovar em pequenas coisas, apaparicá-los, demonstrar que são as pessoas mais importantes do restaurante. Têm que sentir-se muito, muito bem. Ou seja, que os vinhos estejam todos na temperatura certa, que os vinhos sejam adequados para a comida, que haja um serviço exímio… É isto que temos que dar.
Duas estrelas Michelin significa que se trata de uma cozinha excecional, que merece o desvio. Aquelas histórias de que se ouve falar muito sobre os inspetores pousarem garfos no chão para testar a atenção do serviço, etc., são verdade? Reparou nalguma dessas situações?
Não, isso é um exagero. Bom, se calhar já fizeram isso, antigamente… Da minha experiência são pessoas completamente normais, que pagam a sua conta e que umas vezes sabemos quem são e outras não. Há coisas que fazem: por exemplo, vão sempre às casas de banho, porque também faz parte, mas numa sala cheia há tanta gente que vai à casa de banho… Também provam com mais atenção, mas também há clientes que são gourmets e que fazem exatamente igual. Quem anda nestas lides há mais tempo vai conhecendo um ou outro [inspetor], mas de repente vem um que ninguém sabe, portanto, temos de tratar toda a gente bem para que nada falhe, não é estar à espera que seja inspetor ou não. É como lhe digo: é tratar toda a gente por igual, não haver diferenciação de cor, nem de género, nem de carteira. Tratar toda a gente com a mesma bitola de qualidade e isso vai dar certo.
Mas nota-se uma afluência grande depois de receber uma estrela.
Reflete-se mesmo! No nosso caso, quando abri a Casa de Chá – não tinha estrela nenhuma – pus logo um preço alto para me diferenciar e para conseguir fazer o conceito que queria. Mal recebi a primeira estrela a faturação aumentou 25 a 28%. E na segunda [estrela] foi a mesma coisa, mas tive azar porque veio a covid. Tinha isto tudo cheio de reservas. Outra adversidade, essa é que foi terrível, não se faturava nada. E se vier uma terceira estrela é igual, mas menos. A primeira e a segunda são grandes incrementos, principalmente a primeira, aí nota-se uma diferença enorme.
Li que gosta de trabalhar em silêncio. Isto também reflete uma mudança em relação à cozinha do passado, onde era muito habitual ouvir gritos e discussões?
Quando comecei a trabalhar era assim. Quando comecei a trabalhar era só gritos, eu próprio imprimi esse ritmo.
Também se foi transformando ao longo dos anos?
Claro. Comecei a perceber que não é assim. Fui ganhando endurance economicamente também. O que interessa é ter pessoas específicas para fazer certas coisas, outros para fazer outras, isto é tudo muito bem organizado e ninguém precisa de falar. Acho que esses gritos vinham do ‘lodo’ [quando não se consegue dar vazão ao trabalho]. Depois se calhar também bebia mais, porque isto é muito stressante, o tempo também nos ensina que de facto isto é tão exigente, tão duro… Se as coisas estiverem organizadas é uma maravilha, não há necessidade disso.
As pessoas com quem se cruza nos programas de televisão em que participa já vão encontrar ambientes diferentes se seguirem esta profissão…
Sim, mas um programa de televisão é sempre um programa de televisão. No Masterchef, por exemplo, as pessoas são autodidatas, não são profissionais. Ora, se não levarem pressão também não evoluem. Mas atenção: o silêncio na cozinha não quer dizer que não há pressão e, de vez em quando, também há um berro, não é? Se vejo uma pessoa que está aqui a trabalhar há não sei quanto tempo a fazer uma asneira não vou dizer: «Olha, por favor, não faças isso. Vê lá», não vou falar assim. Vou dizer: «Ouve lá, mas que merda é esta? Estás a brincar comigo ou quê?» [risos]. Também temos que ralhar. Isso é normal, mas em todas as profissões. No serviço, sim, temos que ter tudo organizado e cada ver falar menos e acertar mais.
Qual foi o prato que mais tempo demorou a idealizar?
O ‘lula chanel’, demorou seis meses.
Onde é que se vai buscar essa imaginação e criatividade para novos empratamentos e sabores?
Em várias situações, à nossa experiência hoje em dia, à nossa memória de sabor, às paisagens, a outras cozinhas, a ler, pesquisar… Várias maneiras. A gente vai beber a várias fontes, digamos assim, e às vezes é mais fácil, outras é mais difícil.
Quando vai a outros restaurantes – ou mesmo lá fora – aventura-se pelas comidas mais esquisitas como os insetos…?
Não, não… Não preciso. Estive no Brasil e o mais esquisito que comi foi formiga. Há uma que é a tanajura que tem, eles diziam isso, a bunda gorda. Mas eu não acho piada a isso, há tanta coisa boa… Não precisamos de comer insetos. Em qualquer país gosto de ir ao tradicional e ao Michelin.
Costuma fazer esse roteiro sempre que viaja?
Sim, vou sempre ao tradicional assim como vou a restaurantes Michelin.
E fora do âmbito profissional, em casa cozinha de forma mais descontraída ou sempre com a mente de chefe?
Não, só tradicional. Só quando me pedem: «faz lá uma entrada mais…», aí faço. De resto, é tradicional: arroz de polvo, filetes, cabrito assado, cozido à portuguesa, os nossos pratos todos que são muito bons.
E o empratamento? É com o profissionalismo de quem veste a jaleca ou não?
Sempre bem empratado! Vem empratado em travessa, mas bem empratado. Tudo direito, não gosto cá de tudo ao molho. Tudo direitinho e impecável. Imagine que é um cabrito, a pá e as pernas assadas à parte, faço um arroz de costela no tachinho, vai o arroz tudo queimadinho assim por cima, depois a travessa com os assados e outra travessa com a couve, por exemplo, em louça. Nada de inox.
Tudo impecável? Claro, porque é preciso isso. Os olhos também comem.
E fast food de vez em quando?
Sim, também. De vez em quando até me sabe bem uma bela pizza, então não…
E sobre estes novos equipamentos que vieram dominar as cozinhas – como as Bimbys e outros robots -, qual é a opinião do chefe?
A minha opinião é que se forem bem utilizados valem a pena. Uma Bimby para cozinhar para seis pessoas é bom, para quem não tem tempo, se seguem as receitas sai certinho. Dá para fazer cortes, picados, tanta coisa… É um bom investimento. Assim como devem ter vácuo, hoje há vácuo mais barato para ter as coisas bem preservadas no frigorífico.
E bem congeladas…
Exatamente. Quem puder acho que deve apostar nisso. Agora também não precisam de ter uma panóplia de utensílios que depois não utilizam [risos]. Coisas que sejam práticas: a Bimby, o vácuo, um bom forno, uma boa placa. Essas coisas são precisas.
Na altura em que estamos e com a inflação, há algum truque para poupar na hora de ir às compras?
Não. A única coisa que têm que fazer, e isso até para o bem do planeta, é não haver desperdício. Utilizar os produtos todos, por exemplo, se temos couve flor podemos fazer sopa ou um gratinado. Comprar só o que é preciso. Apostar em comprar peixinho e, quando há peixe que é menos nobre a preços melhores, conseguem-se fazer coisas boas na mesma.
Por exemplo?
O carapau é delicioso. Se for fresco é uma delícia e pode fazer-se em escabeche, frito, grelhado… Há várias maneiras. Agora, se não souberem cozinhar têm que ir aprender [risos]. Se não aí já não há nada a fazer. E agora as coisas estão difíceis e nem este abaixamento do IVA vai fazer alguma coisa. Mas comer só vegetais é bom, por exemplo, um caril de legumes é uma delícia, faz-se um arrozinho com um caril só de legumes e fica-se bem alimentado. Tem proteínas.
Por falar em caril de legumes, cada vez existe uma tendência maior para a comida vegetariana. Sim, sim. Aliás, na Casa de Chá temos um menu de 21 pratos vegetariano.
E tem saída?
Tem saída e resolveu vários problemas das intolerâncias, etc. Temos sempre tudo cronometrado e não há o tal problema do rebuliço na cozinha. Já sabemos que é aquilo que a pessoa quer e acabou. Já fiz isso há muitos anos porque para aí há dez anos, em Nova Iorque, fui a dois restaurantes de três estrelas Michelin e tinham um menu normal e um menu vegetariano. Isto há mais de dez anos.
Aqui chegou um bocadinho mais tarde, mas também houve essa necessidade?
Sim, sim.
Mas parece que todas as semanas ouvimos falar de um restaurante novo com conceitos inovadores…
Isso é um problema. Acho que as pessoas devem juntar-se de noite e decidem: «Vamos abrir um restaurante». Acho que é mais isso e acho uma vergonha. Vejo coisas no Porto, e em Lisboa também, pessoas que abrem restaurantes que sinceramente… Não têm serviço, não têm comida, acham que é fazer uns cocktails e está resolvido. Pôr um candeeiro bonito e tal… Isso não é assim que funciona, acho que a comida é uma coisa séria, é demais. Eu, se mandasse, não deixaria abrir restaurantes assim. Tanto que abrem e depois fecham…
Abre-se um restaurante com uma parede ‘instagramável’ e está feito?
É, é. Três amigos abrem e está a andar, parece que não sabem fazer mais nada. Isto devia ser como nas farmácias, não se podem abrir as farmácias que se querem: tem que ter diretor comercial, diretor técnico… Não se podem abrir restaurantes assim.
Mas normalmente não se aguentam.
Pois, está bem, mas enquanto abrem e não, ainda retiram, por exemplo, a outros que estão a trabalhar com qualidade. Até acho que existem restaurantes a mais, sinceramente, não há necessidade.
Mas a variedade também é cada vez maior: o peruano, o mexicano, o japonês…
Sim, mas isso é a globalidade. Isso é verdade e também vamos aos outros países e vemos isso, mas é preciso fazer com qualidade. O grande problema é que não tenha qualidade e a maior parte não tem qualidade. 50% dos restaurantes não têm qualidade, na minha ótica. Posso estar errado, não tenho nenhum estudo, mas eu vejo aqui pelo Porto… É como lhe digo, na noite juntam-se e decidem abrir um restaurante e vão abrir um restaurante. Eu, por exemplo, vou fazer esta remodelação no DOP, além do dinheiro que estou a gastar tenho uma equipa de 20 e tal pessoas a quem estou a pagar ordenado sem fazer nada. Mas eu não posso abrir e não ter a qualidade que vou estar à espera. Eles abrem e telefonam para mim a perguntar se não tenho pessoas para trabalhar. E isso não é assim, é por isso é que depois se reflete em tudo. O que é que vão fazer? Comida a sério? Não. A comida é uma coisa que é muito importante, é diferente das outras coisas. Nós vamos a um pronto a vestir e compramos uma camisola e, depois, chegamos a casa e a camisola afinal não era o que a gente esperava e a gente encosta a camisola. Não a vestimos mais, mas não engolimos a camisola, não a ingerimos…
No caso da restauração estamos a falar de uma questão de saúde.
Claro! E há muita coisa que não tem sequer qualidade, nem sequer preserva a parte higiénica, a parte saudável, a parte bacteriana, etc… Um restaurante não é uma mina, um restaurante é um negócio que dá para viver bem, se for bem gerido. Bem gerido e se tiver clientes, mas não dá para ficar milionário.
Nem com as estrelas Michelin?
Nem mesmo com estrelas Michelin. Dá para viver bem, não me estou a queixar, dá para viver muito bem, mas não dá para ficar milionário. Trabalho há trinta anos e ainda não tenho uma casa que diga que é uma mansão. Aquelas com não sei quantos quartos e empregados para me servirem. Tenho é funcionários.
Acha que há muitas pessoas que também não sabem onde e o que andam a comer?
Acho que sim. Também aí está a tocar num ponto importante e pertinente porque acho que cada vez menos as pessoas sabem comer bem. Não sei se é desta geração, não têm memória de produtos, ninguém lhes deu comida boa, são várias coisas porque é importante a gente ter tido alguém que nos desse comida boa para quando nos derem má a gente dizer: ‘Epa, isto não é assim’.
Há pouco falou numa questão que também tem sido muito noticiada, que é a falta de mão de obra. O chefe também sente esse problema?
Sim, sinto. Felizmente à custa de aumentar ordenados e de valorizar quem trabalha comigo e dá o máximo, não me posso queixar muito, mas mesmo assim já tive alguns problemas. Mas cada vez há menos pessoas profissionais, sim.
Referiu que no DOP tinha cerca de 20 e tal funcionários. E no total?
Em cada restaurante tenho 30 funcionários, mais ou menos.
Então estamos a falar de cerca de 90 pessoas, é muita gente. O lado do empresário é mais complicado de gerir?
É, claro. Somos 90 pessoas, já é uma PME. Temos de pagar ordenados, impostos e vivemos num país em que só pagamos impostos. Portanto, se eu tenho um ordenado mas metade fica para o Estado, depois a empresa tem IRC, depois temos os lucros porque a nossa empresa graças a Deus – e a nós também – é saudável. Então o que é que acontece? Tenho lá 100 mil euros para dividir, desses 100 mil 30% são para o Estado e, portanto, assim não dá… Não vale a pena ir a Coimbra nem ser estudioso, é só fazer contas. Se eu tenho um ordenado mas só levo para casa metade, depois a empresa tem o IRC, o IVA e do lucro que tirar tenho que dar quase 30% ao Estado. Por isso é que eu prefiro invistir o dinheiro nas empresas, do que estar aqui a enriquecer quem eu não tenho que enriquecer. Já não basta o IVA? Já não basta o IRC? Já não basta a Segurança Social? Então? Ainda mais este? Por isso, todo o dinheiro que a empresa tem é para reinvestimento. É o país que nós temos. Ainda agora fui de férias para Miami e os funcionários lá andam todos com um sorriso nos lábios porque o patrão chega ao pé de um e diz :‘Tu agora vais-te embora porque não andas com um sorriso nos lábios’ e não tem que dizer nada a ninguém. A tip [gorjeta] é o que paga o ordenado deles. Eu sou obrigado, depois da conta, a escolher entre 20, 22 e 25% de gorjeta, é o que está agora na América. O ordenado desse funcionário é pago pelas gorjetas. É outra realidade. Nós não, nós andamos aqui a enriquecer outras pessoas, os que não trabalham, por exemplo. Também não estou a dizer que devemos ser a América, nós também temos coisas em que não devemos ser iguais aos outros, sou a favor de um Estado social, mas puxa! Tem que ser com conta peso e medida.
Defende, por exemplo, que essa ideia aplicada nalguns países da gorjeta obrigatória seja também aplicada cá nalguns restaurantes em concreto? Poderia ser uma boa ajuda?
É. Nós temos os nossos tickets, a tip não está incluída, é tudo à custa do empresário aqui. É por isso que também é difícil e é por isso que os restaurantes fecham e alguns até têm qualidade.
Já nem tem que ver com a própria qualidade dos restaurantes?
Não, é com os impostos.
Fala-se muito também que este tipo de restaurantes tem listas negras (de clientes)…
É verdade.
O chefe também as tem?
Tenho sim senhora e explico o porquê. É obrigatório ter porque temos pessoas que se comportam mal e a gente não quer nos nossos restaurantes pessoas que se comportam mal, é estragar o nosso negócio e importunar clientes. Outra maneira de entrarem para a lista negra é marcarem e não aparecerem, por exemplo. Já resolvemos isso com o The Fork porque têm que fazer pré-pagamento. A Casa de Chá trabalha com o The Fork, conseguimos fazer um planeamento bom até de gerência de sala, mesas, temos o portefólio dos clientes que nos visitam. Imagine que vem cá comer e que é alérgica a alguma coisa: daqui a dois anos volta e temos o cadastro, digamos assim. Conseguimos fazer as pré-reservas, conseguimos fazer muita coisa. É uma peça fundamental, gosto de trabalhar com o The Fork.
Relativamente ao cadastro, os clientes que comem menos são ultrapassados por aqueles que fazem contas mais dispendiosas?
[risos] Mas é importante, é importante ter essas coisas todas, saber o nome do cliente, saber se gosta de um vinho especial. O cliente gosta de ser mimado, é mais um detalhe quando vem a um restaurante destes. Devia ser assim para todos os restaurantes, era ótimo.
E aqueles clientes que preferem manter o anonimato e a discrição?
Também sabemos. Atenção que o cliente da mesa 7 não gosta de ser incomodado, está lá escrito. A informação máxima nós temos, o que nos permite dar ao nosso cliente o melhor. Se não gosta de ser incomodado não vamos lá incomodá-lo.
Para proporcionar o melhor momento?
Exatamente, para proporcionar um momento único.
Há 30 anos abriu o seu primeiro restaurante, o Cêpa Torta, tinha 27 anos. 30 anos depois sonhava com este percurso ou foi uma coisa que foi acontecendo de forma orgânica?
Sonhava. A partir do momento em que decidi abrir o restaurante sempre percebi que não ia ficar por ali. Quando decidi avançar nesta profissão, podia fazer qualquer coisa, graças a Deus tenho QI suficiente para desempenhar várias funções e, mais importante do que isso, é que sou um trabalhador empreendedor, tenho noção disso, automaticamente sabia que queria ser bom e para ser bom tenho que crescer.
A terceira estrela Michelin continua a ser um objetivo? Ai claro, claro. Há pessoas que dizem que não, há colegas meus que dizem que não. Mas eu não, eu quero mesmo.
Até porque seria um feito inédito em Portugal, um restaurante com três estrelas
Ainda ninguém tem, mas há de haver um que vai ser o primeiro. Eu adorava e não tenho medo de pressões. Agora, claro que para ganhar uma terceira estrela temos que trabalhar muito bem a segunda, isso é sempre um passo garantido para atingirmos o nosso objetivo. Quem é que não quer estar no topo? O topo é a terceira e se eu já tenho duas por que é que não hei de ter a terceira?
Quais são os seus prazeres, além da cozinha?
Adoro dormir [risos]. Estar relaxado. Olhe, olhe aqui a propósito do que lhe estava a falar [mostra o prato que vai almoçar: um caril de legumes]. Nós, o pessoal todo, comemos três vezes por semana vegetais para não haver desperdício e ao mesmo tempo preservamos o planeta e também comemos saudável.
A questão da sustentabilidade também tem que estar forçosamente cada vez mais presente?
A sustentabilidade pode ser uma palavra meia traiçoeira no sentido em que toda a gente fala e não cumpre, mas se todos nós cumprirmos um bocadinho não custa nada. Quando lhe disse há bocado, a propósito do desperdício, que o caril de legumes é o prato que hoje nós vamos comer… é excelente, porque vamos comer muito bem e não temos peixe nem carne, não há necessidade de comer peixe e carne sempre. Se se souber cozinhar e pôr um bocadinho de amor no que se faz há coisas baratas que são boas e ficamos bem. Eu vou comer um arrozinho basmati com caril de legumes. As nossas fardas, por exemplo dos cozinheiros, são todas do aproveitamento de plásticos.