Nos seus diários, com o sugestivo título “um tempo dentro do tempo”, Tarkovsky disse que nos tínhamos esquecido de como observar as coisas, que em vez de procurarmos deter o tempo através da contemplação, estávamos reduzidos a uma atenção que se limitava a tomar o pulso às coisas fixando-se em padrões. De algum modo, estamos também a perder a capacidade de ler, de intuir essas noções que irrompem de forma inesperada e que, sem aviso, se esforçam por abalar esse muro de ideias feitas, lugares comuns, banalidades. Mas é muito difícil hoje um murmúrio, por mais insistente que seja, ter uma composição que consiga defender as suas nuances e subtilezas face a um ambiente cultural que actua ele mesmo como uma forma de erosão de todo o pensamento sofisticado.
Jorge Carrión entende que o regime económico não dissipou as tentações da censura, simplesmente descentralizou esse regime, que hoje se organiza através da acção mais ou menos concertada de inúmeros agentes, e desde logo das grandes plataformas digitais, como a Amazon. Passou uma década desde que “Livrarias”, publicado originalmente em 2013, veio a tornar-se uma obra de fulgor ensaístico que funciona como um inebriante guia numa peregrinação através desses espaços que persistem hoje com grande dificuldade na malha urbana, e que, como ensaios literários que se constroem fisicamente, contrariam a tendência das nossas cidades para a perda dos seus elementos de contraste, os seus obstáculos e resistências, as saliências e cicatrizes que impõem a quem as visita um esforço de leitura e arqueologia para se ganhar alguma compreensão da sua história. Carrión definia a livraria como “um espaço centauro, nem todo ele privado, nem todo ele público”, e em articulação com a rua, a praça, o café, configurando “as rotas da modernidade como âmbitos de duas acções fundamentais: a conversa e a leitura”.
O seu livro foi pioneiro e soou como um tiro de largada num fascínio que viu as livrarias tornarem-se hoje o centro de uma mitologia e um culto que, no fundo, as destitui do efeito mais intimista do enredo que desenvolvem, para se tornarem cenários de recreio para formas de nostalgia algo espúrias. Uma recente tendência viu aparecerem nas livrarias uma série de romances que se organizam eles mesmos à volta de livrarias. Cada vez mais a imaginação é conduzida a um regime de redundância, como a viagem feita em modo turístico, ou as livrarias que se adaptam de modo a representar a ideia que delas fazem aqueles que as visitam não para comprar livros, mas apenas para estar entre livros, como se a respiração daquele ar carregado bastasse para restituir ao mundo algum sentido.
Em “Contra a Amazon”, que acaba de ser publicado pela Quetzal, Carrión defende outro modelo de livrarias, as “livrarias de trincheira”, espaços de resistência ao regime dos conformismos sociais, zonas que se batem contra a tendência dos algoritmos do mundo digital para tornar tudo plano, liso, circular, para abater todos os obstáculos que caracterizam o exercício de exploração e confronto que dá sentido às viagens, sejam elas feitas no espaço ou, como acontece nos livros, através da memória e do tempo. É um livro que recolhe ensaios escritos na última década enquanto o escritor andava pelo mundo a apresentar o seu “Livrarias”, tendo agora o apoio de tradutores e intérpretes ou livreiros a servir-lhe de guias. Um livro que defende as dificuldades e exigências que nos colocam essas viagens, a importância dos rituais, das diferenças culturais, e que se insurge contra o modelo de expropriação física e simbólica levado a cabo por essas macroestruturas como a Amazon que hoje assumem um papel decisivo na imposição dos títulos que merecem ser lidos, e, consequentemente, das ideias que devem ser perpetuadas e das que devem ficar pelo caminho.
Há uma passagem muito curiosa no seu ensaio sobre Curzio Malaparte em que nos conta que, quando se deu a explosão do Vesúvio, não havia ainda no latim uma palavra para vulcão… “Para os romanos, o Vesúvio era uma montanha verde e foi por isso que, quando começou a deitar fumo, Plínio, o Velho quis aproximar-se para observar o estranho fenómeno: o resto é lava e silêncio. Os que morreram no ano 79 sepultados pela pedra-pomes, os gases, a terra em chamas e a cinza não perceberam a razão da sua morte.” Depois acrescenta que “a realidade não existe se não for precedida pela linguagem”. O que lhe queria perguntar é se não sente que, nos nossos dias, estamos a viver algo de similar, com esta aceleração tecnológica que impõe a sua vertigem à nossa vida, e com titãs como a Amazon a transformarem o horizonte em poucos anos, pondo em causa a nossa forma de relação, levando a esse fenómeno de expropriação física, mas também simbólica que atinge um sector tão decisivo no que respeita a oferecer uma multiplicidade de perspectivas como o dos livros? Não lhe parece que isto é uma espécie de vulcão? Assim essa história oferece-se como uma metáfora para a forma como estamos a ser soterrados por esta lava que agora nos lança num ritmo que leva ao sufoco.
Essa perspectiva é interessante porque nos devolve a esse momento em que a percepção dos homens foi obrigada a ver a transformação da montanha em vulcão. O que te parecia ser uma montanha é, afinal, uma outra coisa. E então desliza por aí também aquela estratégia do Cavalo de Tróia. Parecia que a Amazon era uma plataforma democrática de acesso à cultura, quando mais tarde se veio a revelar que era uma empresa tecnológica, empenhada apenas em exponenciar os seus lucros, crescendo até se impor como uma macroestrutura capaz de decidir sobre o que tem visibilidade e, desse modo, dominar o acesso a certos produtos e, por inerência, certas ideias em lugar de outras, definindo um modelo de influência. Mas a Amazon hoje leva já duas décadas desde que foi criada, e, neste momento, começamos a ver dominar o horizonte um novo gigante, este ChatGPT, que o que faz é irromper no seio da realidade sem que tenhamos a linguagem para o compreendermos. A maior parte das pessoas desinteressam-se se tentarmos sequer explicar como funciona uma rede neuronal, e os paralelos ou as diferenças face aos modelos de inteligência artificial generativa. Ou seja, trata-se de um vulcão, mas estamos iludidos com a sua parecença com uma montanha, e nem nos é possível antecipar que dali possa vir algum perigo. De resto, o que caracteriza a evolução destas ferramentas é o facto de acontecer tão rápido que não nos dá o tempo necessário, do ponto de vista psicológico, para nos precavermos contra os seus efeitos mais nefastos. E eu trabalho com estas ferramentas e reconheço o enorme desafio que é sequer tentar compreender o que está a ocorrer.
Entende que um elemento que pode complicar ainda mais esta conversa é o facto de estarmos a falar do ChatGPT como uma inteligência artificial, o que já nos conduz a um erro de percepção à partida, uma vez que a inteligência é algo que compreendemos como um processo inerentemente humano, ao passo que ali o que se está a afinar é uma outra relação analítica, que tem ao seu dispor infindáveis recursos, bibliotecas imensas para detectar padrões a um nível que lhe permite ter uma capacidade de previsão terrífica. E se nós estamos muito limitados na quantidade de informação que absorvemos e estamos dependentes de uma articulação que produz nexos através de um regime afectivo, ou seja, dobramos os cantos das folhas dos livros porque há neles passagens que desencadeiam em nós uma resposta de ordem emotiva, mesmo que sejam noções intelectuais, parece estar sempre em causa uma sensibilidade e a busca de uma rima com as nossas experiências pessoais, não lhe parece que isto mesmo é uma receita para o desastre, pois a nossa curiosidade diante desse fenómeno, tal como aconteceu com Plínio, leva a que nos acerquemos do vulcão e a ser atraídos precisamente pelos sinais de que vem aí uma erupção?
Não há dúvida de que a inteligência artificial é uma metáfora muito inexacta, que não nomeia a realidade, mas prende a nossa atenção a algo como um fantasma que projectamos no interior da máquina. Mas creio que muitas vezes é necessário chegar-se a um termo que reúna algum consenso, mesmo que este esteja carregado dessa inépcia que aos poucos vai dando conta de si mesma em confronto com a realidade. Essa é uma expressão que apenas serve como referência a algo que, para já, é ainda um mistério. Mas temos esta palavra e é uma forma de apontar numa certa direcção, aludir a uma certa função social daquele fenómeno. A inteligência artificial não é nem uma forma de inteligência nem é artificial. Quem procure compreender os algoritmos perceberá rapidamente que é algo que não segue pelos mesmos caminhos, e que se afasta daquilo que definimos como a inteligência humana. E não é artificial na medida em que está assente num enorme consumo de recursos naturais, sejam minerais, seja a nível de energia, ou até de espaço, pela necessidade de instalar servidores que ocupam áreas cada vez maiores. Dito isto, creio que está na altura de ampliarmos radicalmente o que entendemos por inteligência. Temos de aceitar as inteligências não humanas, e a verdade é que começamos a tornar-nos hoje mais sensíveis à ideia de que os outros animais também são inteligentes, apenas de um outro modo. E isto vai para lá dos animais, começa a ter-se consciência de que toca o mundo vegetal, e que, como nos diz [o botânico italiano] Stefano Mancuso, também as plantas têm a sua forma de inteligência. O que Mancuso defende é que uma definição de inteligência é a capacidade de resolver problemas. Desse ponto de vista, as máquinas já são inteligentes. Se nos agarrarmos a uma visão antropocêntrica, não o veremos assim. Mas se ampliarmos o espectro e entendermos que a inteligência é mais do que uma característica humana, teremos uma capacidade de analisar o problema de forma mais complexa. Nestas coisas o que importa é não se ser nem apocalíptico nem integrado. Não rechaçar estas hipóteses nem abraçá-las de forma acrítica. O que o meu livro busca é esse ponto intermédio. Creio que a tecnologia pode levar-nos mais longe, consegue superar muitas das nossas limitações ao nível da percepção do mundo ao nosso redor, e a própria Amazon tem as suas virtudes – não demonizo a Amazon –, mas, também por isso, exige de nós uma atenção maior, pois tudo o que nos parece demasiado bom, tudo o que fica demasiado fácil, acaba por pagar-se mais à frente e muitas vezes bem mais caro.
Põe a hipótese de o homem estar a criar uma espécie de utopia que às tantas o exclui? Uma utopia cuja finalidade já não é traçada do ponto de vista humano, mas pode até revelar-se um desastre para a humanidade, mas uma libertação para tudo o resto?
Creio que agora o grande confronto se dará entre código-centrismo, ou seja, a programação das máquinas, os algoritmos de um lado, e do outro o bio-centrismo. Um ou outro ocuparão o centro, mas já não será o homem a residir no centro. O que será necessário é procurar atingir algum equilíbrio entre as máquinas e a vida. Porque pensar apenas em termos de humanidade versus tecnologia, para mim isso é um falso debate. Parece-me que o ser humano é tecno-humano desde sempre, desde a invenção do fogo, desde que começou a cozinhar os primeiros alimentos. Assim, o que me parece é que estamos ainda a abordar a questão a partir de um falso dilema. Não é que as máquinas nos desumanizem, mas que sejam insustentáveis no longo prazo e do ponto de vista ecológico. Por isso é que o imperativo nos próximos tempos será encontrar um equilíbrio entre a vida e as máquinas.
Estamos a dias de a Book Depository, um site de venda de livros lançado por ex-trabalhadores da Amazon com o intuito de contrariar o monopólio desta, se ver encerrado, depois de ter sido adquirido pela Amazon em 2011. Ou seja, comprou o concorrente para o destruir uns anos depois.
A história é fascinante porque a Book Depository foi criada em 2004 por dois ex-funcionários de Jeff Bezos, Stuart Felton e Andrew Crawford, como vingança contra este, e agora, depois de a ter comprado, a Amazon elimina-o numa re-articulação do negócio. Portanto, qual será a moral da história a retirar-se disto? Que não podemos permitir que o acesso ao livro, seja em que território for, esteja exclusivamente nas mãos de empresas privadas multinacionais. Para mim, a par do esforço de criar uma rede de bibliotecas para que as pessoas tenham acesso a uma amostra compreensiva do trabalho editorial feito ao longo dos anos, tem de garantir que as livrarias, essas que corporizam um regime autónomo, de autor, podem conviver com esses gigantes que se impõem no sector.
Há uma leitura bastante curiosa desse conto central na obra de Borges, “A Biblioteca de Babel”, o qual é descrito como um conto terrorífico, uma vez que simula a criação de um paraíso, quando, na verdade, fala da existência eterna do inferno. Vinca ainda a forma como Borges acaba por nos mostrar como a cultura “nos devora, nos engole, nos deglute, nos aniquila”. Noutro momento do seu livro, exprime de uma penada aquilo que me parece ser uma estratégia bastante curiosa, aquele que seria um seu projecto diante destes fenómenos: mitificar para desmistificar. Esta abordagem de que já nos dávamos conta em “Livrarias”, volta a estar presente em vários destes ensaios agora reunidos, ou seja, à medida que vai alimentando um encantamento por estes temas e aspectos da vida cultural, ao mesmo tempo vai revelando alguns dos podres, desde logo a tentação da censura, que aparece um pouco por toda a parte. Dá até dois exemplos, lembrando que na Lello, do Porto, não vendem a edição portuguesa do livro “Livrarias” porque os dados que cita sobre ela não correspondem à história que os actuais proprietários contam sobre a sua fundação, mas sobretudo porque a Quetzal se terá recusado a ilustrar a capa do livro com uma imagem da livraria. Lembra também que na Shakespeare and Company não vendem as edições francesas ou inglesa do livro porque este conta a verdadeira história de George Whitman, fundador e proprietário da livraria, usando como fonte outros títulos que também não se encontram à venda ali. Recentemente, houve também uma polémica por cá por os novos donos da Lello terem encomendado um texto a uma jornalista de um dos supostos jornais de referência [Isabel Lucas, colaboradora do “Público”], mas que se limitou a fazer um belo bordado a partir das informações distorcidas que lhe foram dadas por estes.
Essa é uma questão muito interessante pois a escrita de “Livrarias” começa com Borges, com esse prestígio de um autor que está ligado ao lado mítico da existência das bibliotecas, mas que nos célebres contos que têm no centro o livro, contos como “A Biblioteca de Babel”, “O Livro de Areia”, “A Memória de Shakespeare” e “Funes ou a memória”, a verdade é que a sua visão dos livros e da cultura é bastante negativa. Assim, se o lermos com mais atenção acedemos a essa espécie de dualidade, um fascínio que nos conduz ao que acaba por desenhar os contornos de uma maldição. Assim, o que inicialmente nos parece ser descrito como um paraíso pode, afinal, revelar-se a receita para uma intriga infernal e vice-versa. Não se chega ao fundo de coisa nenhuma se nos ficarmos pelo preto e branco. O importante é ter uma capacidade de perceber os matizes entre diferentes graus da cor cinzenta. Quando publico “Livrarias” em 2013, por uns tempos não aconteceu nada. Isto até ter aparecido a tradução em inglês, a que se sucederam edições em muitos outros idiomas. Comecei a receber convites um pouco por todo o mundo para apresentar o meu livro, e o resultado dessas viagens e das reportagens que fui fazendo na década que se seguiu é este “Contra a Amazon”. Uma selecção de crónicas e ensaios que me foi possível escrever graças a essas viagens feitas no esforço de promoção do “Livrarias”. Esse foi um livro que escrevi fazendo as viagens sozinho, contando todos os trocos. Já este livro foi escrito num regime bem mais colaborativo, pois estava acompanhado dos tradutores, de guias e de livreiros que faziam questão de me contar a histórias das suas livrarias. É um livro que, sendo embora uma continuação, conta com o privilégio de um acesso mais facilitado à cultura local. Quando chego a Seul, faço uma série de entrevistas que são possíveis porque tenho do meu lado o intérprete que estabelece a ponte com os livreiros ou autores que ali entrevisto. Talvez isso permita que um livro como este detenha uma perspectiva mais complexa, uma visão mais poliédrica do que acontece em “Livrarias”. Ao reunir estes textos, fui-me dando conta de que, nos dez anos de intervalo entre um livro e outro, nasceu uma mitologia das livrarias. Quando comecei as minhas viagens pelo mundo, quando estive no Porto para conhecer a Lello, em 2001, não estavam mais do que umas três pessoas no interior da livraria. Hoje, esta livraria tornou-se um mito, o qual se baseia num mal-entendido ou até num erro. J.K. Rowling nunca disse que aquela livraria serviu de inspiração para a escadaria de Hogwarts. Mais tarde disse mesmo que nunca visitara a livraria nos anos em que viveu no Porto. O que me parece é que, na altura em que o Porto teve de construir o seu relato turístico, essa efabulação que fica sempre bem nos panfletos, e que também não impede que a verdade se interponha no caminho de alcançar um ideal de charme, e sendo certo que para se propor precisava de, pelo menos, cinco grandes atracções turísticas, a cidade deu-se conta de que não tinha as suficientes para os dedos de uma mão. E é então que se dá conta de que esta livraria tem uma série de elementos que a tornam única, com a sua arquitectura num estilo emblemático do século XIX, com aquele seu lado pitoresco e também a sua longa história, e então esta vê-se incluída nos destaques do panfleto como um dos chamarizes para o circuito turístico de uma cidade que estava prestes a tornar-se um desses destinos a não perder em tantas das listas de sugestões feitas por todo o mundo. A minha tia Maria Carmen, que não tem mais do que a escolaridade básica e que nunca foi a nenhuma livraria em Barcelona, veio ao Porto e foi à Lello. Ficou felicíssima porque sentia que estava como que a pisar solo sagrado, sem saber bem porquê. Dei-me conta de que esta mitologia das livrarias deu-se no período que medeia entre a publicação destes dois livros, tendo nascido esse subgénero dos romances cuja acção se desenrola à volta de uma livraria, e que hoje se multiplicam e chegam às listas de best-sellers, e várias livrarias em todo o mundo tornaram-se atracções turísticas. Isto que não era muito comum há uns 15 anos veio distorcer a perspectiva que o público tem desta realidade. Quando foi sugerido que a capa da edição portuguesa de “Livrarias” tivesse uma imagem da Lello, foi-me pedido pelos proprietários que reescrevesse o que tinha escrito sobre a livraria a partir de dados recolhidos em tempos no seu site. Eu e o editor achámos que essa forma de interferência era inaceitável, e, por essa razão, o livro não é vendido na Lello. Este exemplo serve para mostrar como a partir do momento em que estas livrarias se entregam a estes efeitos mistificadores começam a querer dominar a narrativa e impor uma leitura da sua própria história. Achei igualmente curioso que não seja possível comprar as edições francesa ou inglesa do meu livro na Shakespeare & Co.
Às tantas, há aqui uma outra passagem que me parece bastante curiosa em que diz: “para nós um livro é um livro é um livro, eco do eco do que foi sagrado”. Noutro momento do livro, regista esta ideia: “A massa é muito real: recebe-me, amorfa.” Gostaria de saber como é para si, depois de ter publicado estes livros, andar por todo o mundo a apresentá-los, como vai acontecer aqui mesmo daqui a pouco [Bertrand do Chiado, onde o livro foi apresentado na tarde de quarta-feira], e deparar-se uma e outra vez com pessoas que parecem quase crianças diante destas questões, algumas arrastadas por esse deslumbramento com o prestígio simbólico dos livros e das livrarias, mas que se ficam por essa aparência ilusória, mas depois estão muito pouco esclarecidas sobre como, na verdade, este é um sector que tem estado sujeito a transformações profundas e, muitas vezes, com perdas assinaláveis no que toca à diversidade dos chamados géneros literários.
Na diferença que se abre entre o amor pelos livros e a leitura e o fenómeno da bibliofilia, não tenho qualquer hesitação em reconhecer que estou na primeira categoria. Sou um desses leitores que vive a sua vida em função de algumas leituras que fiz e vou fazendo, mas nunca me interessei por livros raros ou antigos, nunca andei à cata de preciosidades, nem quis transformar este entusiasmo numa forma de coleccionismo. Gosto de sublinhar os livros, dobrá-los, deixar-lhes marcas, e não conservá-los atrás de uma vitrine como objectos dignos de adoração. Para mim são instrumentos, objectos úteis, que me ajudam a mover-me no campo do conhecimento. Ainda que estejamos hoje neste século XXI, uma época secularizada, em que está em processo um efeito de desmaterialização que conduz, por contraste, a uma nostalgia face aos objectos, e a um culto muitas vezes exagerado destes, creio que os livros mantêm uma certa aura pela sua ligação à Bíblia, esse livro único, esse objecto que é a fonte central do conhecimento. Mesmo perante a crescente digitalização, a omnipresença dos ecrãs, e mesmo se acredito que as potencialidades de um destes telemóveis de última geração faz dele um instrumento mais importante que o livro, isto na importância que assume nos nossos dias, na expressão e influência que tem, na forma como o usamos e como define a nossa relação com o mundo, funcionando como uma prótese que tem um alcance extraordinário, mas o livro mantém a sua centralidade do ponto de vista simbólico, da forma como ainda defende um ideal de qualidade, pois o exercício editorial é uma forma de mediação que, idealmente, se esforça por contrariar os aspectos mais efémeros e o lado mais desenfreado do consumo na cultura contemporânea. Mas, para responder à tua pergunta, creio que aquilo que para a minha mãe e a minha avó foi a Igreja, um lugar onde as pessoas iam todos os dias para estarem consigo próprias, e com Deus, um refúgio do mundo, essa Igreja como lugar de culto, para mim isso foram as livrarias. E creio que aquilo que se vai passar aqui dentro de um par de horas se parece muito com o ir à missa. É dispor-se a escutar alguém que nos traz uma verdade mais ou menos irónica, mais ou menos crítica, mas que nos permite romper com o ritmo quotidiano e assumir uma postura de reflexão ou uma atitude contemplativa. Continuamos a sentir falta destes momentos, mesmo que a Igreja já não dê resposta às nossas inquietações. Creio, no entanto, que isto está a perder-se. Estes rituais, essa forma de vida em comum que permitia depois que cada um seguisse intimamente o seu caminho. Julgo que para os meus filhos as coisas já não irão passar-se da mesma forma. Mas gostaria ao menos que os meus filhos respeitassem as livrarias como eu respeito as igrejas, como lugares onde os meus ascendentes encontraram um abrigo, uma forma de paz. Entrei muitas vezes em livrarias para ter um momento de paz. Foram abrigos e foram também lugares de peregrinação. Uma livraria como esta é um lugar carregado de história e memórias, e é importante que, seja qual for a tendência da cultura de um dado momento, se possam preservar certos rituais, possa haver uma persistência da tradição, mesmo que declinando certos aspectos. Este é um lugar dedicado a uma certa arqueologia. Para entender a história do livro é bom poder consultar os estratos ao longo da vida de uma livraria como esta, ver os anéis que ficam como no tronco de uma árvore. Há aqui uma dimensão comercial e turística, mas há também uma dimensão de museu, e essa coexistência de funções, essa margem que permite que as livrarias sejam espaços de confronto de memórias, uma perspectiva sobre um mundo que se está a perder. Mas o que é interessante é que esta perda ocorre apesar de tudo tão lentamente que é possível darmo-nos conta dessa perda.
Traçou essa genealogia dos livros que acaba por remontar à Bíblia, o livro dos livros, e, no entanto, Borges mostrou como a Bíblia também ela assenta num mito, uma vez que, se a Igreja defendeu que estava ali a palavra de Deus, na verdade esta é uma antologia de grandes textos recolhidos pelos judeus em diversas tradições, tendo-se perdido a sua origem para os consagrar como momentos de clarividência que estariam alinhados com a própria criação do mundo. É como se se quisesse elevar o melhor da criação humana, muitas vezes nesse registo de louvor à obra divina, e remetê-lo para essa mesma forma de graça.
É uma questão interessante, porque todos os livros sagrados são romances extraordinários. São grandes textos de ficção construídos por vários autores e gerações. São mitologias a partir do qual se foi resguardando certos ensinamentos e valores que são como o substracto da própria história da humanidade, ou seja, dos conhecimentos que diversas cultural e povos foram legando e transmitindo aos seus filhos, ao futuro. São best-sellers intemporais, livros que não deixaram de ser copiados e comunicados por contágio ao longo dos tempos. Por outro lado, a Bíblia tem a particularidade de ter surgido na época do rolo de papiro e do pergaminho, e que depois vem a ser obrigada a metamorfosear-se na época dos antigos códices, no antepassado remoto dos actuais livros. A questão é que aqui já não era possível caber tudo. Havia um limite a esta forma que se foi tornando cada vez mais portátil. Era preciso seleccionar os melhores, ordená-los, pelo que o próprio livro enquanto objecto, no uso que lhe damos, é indissociável da evolução dos géneros literários. Essa operação lenta de recolher entre os diversos textos da antiguidade aqueles que tinham maior ressonância e que colhiam maior favor foi a mais lenta operação editorial de todos os tempos. É um acontecimento muito relevante para a nossa cultura e, por isso, a origem do livro foi um parto difícil e que ecoa até aos nossos dias. Agora está a dar-se um novo processo de conversão, à medida que o livro está a converter-se num conteúdo digital, numa app. Muitos livros que antes encontrávamos na maioria das casas estão já a desaparecer. Quase ninguém hoje ocupa estantes com os volumes das grandes enciclopédias ou dicionários. A internet tornou o acesso a esses conteúdos bem mais rápido e funcional. Já um livro como este “Contra a Amazon” só tem sentido em papel. A verdade é que cerca de 90% dos textos que compõem este livro estão disponíveis gratuitamente online. Mas para compor esta selecção, para ordená-la, para lhe oferecer uma estrutura tive de reler cerca de 50 artigos, crónicas e ensaios que havia escrito nos últimos anos, e escolhi os melhores. Isto é o que lhe dá sentido, esse processo editorial, porque lê-lo enquanto livro dá a estes textos uma força que, lidos dispersamente, online, eles não têm. Há todo um potencial de relações que se perdem se a leitura for feita dos textos na sua forma de publicação original.
No seu ensaio sobre “A Biblioteca de Babel”, às tantas surge este apontamento: “A filosofia, disse o irónico Borges, pode ser lida como um ramo da literatura fantástica. Nesta perspectiva, a teologia poderia ser um subgénero do terror.” Em que medida lhe parece que esta sua especulação serve para enquadrar a actual polarização dos debates culturais e políticos, quando parece que as convicções e mesmo as crenças religiosas são usadas para instigar um regime de terror, de tal forma que um debate que deveria estar contido no âmbito cultural de debate de ideias depressa impõe sequelas e causa prejuízos muito sérios, revelando esse ânimo destrutivo, essa vontade de eliminar a posição contrária e os seus defensores? Hoje, muitos investigadores começam a dar-se conta de que, mesmo na forma como encaramos certos acontecimentos devastadores, ao tentarmos explicar as motivações políticas e sociais, escapa-nos o elemento de sadismo que levou a que fossem possíveis certas formas de perseguição de grupos e o extermínio de populações. De tal modo que parece muitas vezes que a teologia e os dogmas ou argumentos de fé são apenas um pretexto para se justificarem actos atrozes.
Creio que Borges foi o melhor leitor do século XX porque foi capaz de nos mostrar que tudo aquilo com que nos deparamos na realidade pode ser lido como género literário. Muitas das ficções políticas que nos são servidas na nossa época, sobretudo quando estamos a falar de populistas como Trump ou Bolsonaro, são subgéneros do terror. Quando analisamos as coisas a esse nível, entendemos como as livrarias, em abril de 2023, assumem uma influência decisiva face ao que se conhecia há seis meses, pois boa parte do que aqui entrou desde então, sendo submetido a um crivo editorial, foi submetido a um processo em que foi feita a verificação das suas teses e estas foram contrastadas com outras, tendo sido submetido a esse exame crítico. Em sentido diverso, o que por estes dias circula na internet, e, particularmente, nas redes sociais, ninguém sabe se foi sujeito a esse tipo de critério editorial. Nem podes já ter a certeza que perfis são verdadeiros ou são apenas bots, mecanismos de inteligência artificial que são postos ao serviço da propaganda de certos partidos e ideologias. Neste momento, esta livraria é uma espécie de santuário de um mundo prévio à difusão dos conteúdos deste modelo de inteligência artificial generativa. Em breve será difícil saber distinguir o que resultou da experiência e do esforço intelectual de uma pessoa e aquilo que foi meramente construído de acordo com alguma receita algorítmica. Este é um dos aspectos mais interessantes quando se pensa na função das livrarias nos nossos dias, pois neste século XXI, com cada ano que passa, essa função foi-se alterando à medida que o mundo mudava e a livraria preservava certos elementos de uma tradição anterior. Há três anos, quando o TikTok se impunha durante o período da pandemia, as livrarias estavam na margem oposta, eram o contrário daquela plataforma. Agora que o TikTok assumiu um papel decisivo ao fomentar clubes de leitura com grande expressão, estabeleceu-se uma espécie de pacto entre esses dois universos. Até há uns quatro anos, as livrarias viam-se ameaçadas pela Amazon, e não podiam encarar aquela plataforma senão como um antagonista. Mas a partir do momento em que a Amazon entrou em crise e viu o seu modelo soçobrar, despedindo 25 mil trabalhadores, agora as livrarias vêem nessa crise alguma margem de esperança. Ou seja, as livrarias persistem e, com esse esforço, continuam a assumir novas vertentes pelo simples facto de resistirem a esse processo de constante inovação e à consequente destruição que este provoca. As tecnologias vão evoluindo e os seus produtos nascem já condenados a uma rápida obsolescência, enquanto que as livrarias se adaptam e vêem o seu sentido reforçado pelo simples facto de resistirem a essa vertigem em que o presente parece lançado numa corrida sobre uma ponte que desaba debaixo dos seus pés em direcção a uma outra margem que ninguém sabe o que é.
Em que ponto é que estão as coisas do ponto de vista do domínio que tem a Amazon do comércio online e dos livros em particular depois desses abalos, alguns deles provocados pelo esforço de sindicalização e luta por melhores condições por parte dos trabalhadores nos seus armazéns?
Parece-me que a Amazon teve um pico de poder durante a primeira fase da pandemia, no momento em que esta estava no auge, em 2021, mas a partir de então, acompanhando a crise da Meta [proprietária do Facebook] e outros gigantes tecnológicos está a arrastar consigo a Amazon e obrigando a que estas se reorganizem. Vivemos neste momento um período de convivência ou de tréguas no que tem sido um clima de guerra. Creio que nos próximos anos, ao invés de um regime de transição digital acelerada, como vinha acontecendo até aqui, irá haver maior convivência entre estes dois planos, o mundo físico, do livro em papel, e o mundo digital.
Estamos a dias de aqui ser celebrado o dia da Revolução que nos livrou de uma ditadura de mais de 40 anos, e gostava de saber que ideia é que tem ou lhe venderam de Portugal. Isto porque, às tantas, houve aí uma ideia de que aqui estávamos numa espécie de paraíso socialista.
Penso que a primeira vez que estive em Portugal foi no ano 2001, e a ideia que trazia e que norteou sempre a minha relação com a vossa cultura e história foi a da figura do Infante Dom Henrique, este príncipe que convence o pai a abrir em Sagres a escola de navegantes onde se formou Vasco da Gama. É com este impulso e esta visão que começa a revolução moderna, convencendo os navegantes portugueses de que não há monstros nos mares, e que é possível navegar ao longo da costa de África. Tudo o que se segue remonta a este impulso. Não haveria Cristóvão Colombo sem esta visão que teve o Infante. A imagem que tenho do vosso país está ainda ligada a esse salto do imaginário sobre as possibilidades do futuro e que deu ao início à globalização. Assim, quando Lisboa e o Porto se abrem e transformam em destinos preferenciais das vagas turísticas, para mim isto é como o fechar de um círculo, como se o destino histórico do país fosse receber passados séculos esse eco imenso que resulta da globalização aqui iniciada.
Essa é uma perspectiva interessante ainda que exageradamente optimista.
Estive há pouco na biblioteca de Alberto Manguel aqui em Lisboa, no futuro espaço Atlântida, e quanto a mim trata-se de um grande projecto, pois faz todo o sentido que esteja localizado nesta cidade um espaço com este nome, ligado à mitologia das viagens e do conhecimento, concentrando-se aqui um foco da história do livro. Porque as crónicas de viagens e a relação que temos hoje com os livros nasce com este impulso em direcção à ligação entre os diferentes territórios e povos e que é liderada por Portugal no século XV.
Não sei se está a par de que neste momento existe uma grande polémica com essa biblioteca e a presença entre nós de Alberto Manguel.
Sim, mas para mim não tem sentido, pois é evidentemente uma excelente ideia por parte de Lisboa e de Portugal albergar esta grande biblioteca, que vai atrair um turismo culto, o turismo do livro. O meu livro, “Livrarias”, é usado em todo o mundo como um guia de viagens. Quando os leitores querem saber que livrarias podem encontrar em cada país procuram referências no meu livro, e disseram-me já aqui, o pessoal que trabalha nesta Bertrand, que há muita gente que chega a esta livraria vinda de todo o mundo porque eu falo dela no meu livro. Estou certo que muita gente, muitos turistas cultos, virão cá com o fito de visitar esta biblioteca e o espaço Atlântida.
O problema da forma como alguns de nós olhamos para esta empreitada é que, se não duvidamos de que isso venha a acontecer, estamos já saturados das vagas de turismo, que começam a ser encaradas como uma praga, desde logo porque nos expropriam das nossas cidades e impõem um nível de vida que não temos condições de pagar.
Sim, mas aquilo de que estamos a falar é do turismo de qualidade, do turismo culto, que vem para se relacionar com os lugares para os quais remete a obra de Pessoa, de Saramago, para conhecerem os museus, descobrirem a cidade. Não é aquele turismo massivo que passa numa debandada e arrasa tudo, e que vem para aqui como se este fosse um recinto de festa, ou que enche a Lello e impede que funcione como uma verdadeira livraria. Creio que são estes projectos dirigidos a um turismo sofisticado que ajudam a caracterizar um país e não a fazer dele um ambiente de feira permanente, dando força apenas a manifestações que acolhem as massas, como o futebol, os festivais gastronómicos, etc.
A questão é que o espaço Atlântida foi vendido por cá de uma forma fraudulenta, numa associação entre a autarquia e alguns órgãos de comunicação que vieram anunciar o projecto num registo triunfal, falando na doação que Manguel tinha feito à cidade de uma biblioteca maravilhosa. Na verdade, para albergar a biblioteca será necessário fazer obras bastante dispendiosas num palacete, e oferecer ainda condições a Manguel para que possa residir numa dessas zonas nobres, tendo acesso permanente a ela, e auferindo um salário vitalício enquanto quiser manter-se na direcção daquele espaço. E tudo isto foi aprovado de forma apressada e sem haver qualquer estimativa dos valores que estão em causa ou sequer um inventário da tal biblioteca que faria de Lisboa a esplendorosa capital dessa história da leitura. Ou seja, tratou-se de um cheque em branco. E, ao mesmo tempo que tudo se processava sem dar margem para qualquer escrutínio, e isto num país onde os equipamentos culturais vivem há décadas à míngua dos apoios necessários para a sua sobrevivência, Manguel chegou como um príncipe da cultura que logo ocupou um lugar à cabeceira da grande mesa para as patuscadas com patrocínio público. Outro aspecto curioso, pegando na entrevista que fez a Manguel e que surge neste seu livro, é o momento em que ele lhe descreve a sua passagem pela Biblioteca Nacional da Argentina, tendo assumido o cargo de seu director em finais de 2015, dizendo que se converteu “na pessoa responsável por eliminar os obstáculos criados ao trabalho das oitocentas e tais pessoas que trabalham cá além de mim”. E depois, ainda tem este apontamento que, à luz do que sabemos hoje, é de uma desfaçatez espantosa: “Conhece um bailado de uma grande coreógrafa alemã, Pina Baush, chamado Café Müller? Lembra-se de que se trata de uma mulher a dançar e de outra personagem que lhe vai desviando as cadeiras do caminho para ela não tropeçar? Pois eu sou essa pessoa.” Ora, tendo em conta a forma como acabaria por se demitir pouco mais de dois anos depois, alegando graves problemas de saúde, e isto no meio de uma chuva de denúncias e críticas pela forma como, na verdade, acatou as políticas de austeridade (os oitocentos e tal funcionários eram já bem menos do que os 1048 que trabalhavam na biblioteca quando o governo que o nomeou assumiu funções) e ainda acabou com uma série de eventos públicos e reduziu os festivais relacionados com o livro e a leitura enquanto, por outro lado, delapidava uma fortuna com despesas de deslocação nas suas viagens à volta do mundo.
Não conheço os detalhes políticos nem dessa polémica relacionada com a Biblioteca Nacional da Argentina nem desta envolvendo o espaço Atlântida, o que sei é que Manguel é possivelmente o melhor leitor vivo, e deve ser encarado como um privilégio que ele venha viver para Lisboa e desenvolver uma actividade de que todos poderão beneficiar. De resto, quanto às doações, quando estas são feitas por multimilionários, é natural que sejam feitas sem colocar qualquer tipo de condições. Mas quando são feitas por pessoas como eu, tu ou o Manguel, é natural que tenhamos de assegurar condições para termos do que viver. Em Barcelona temos um caso parecido, que é o de Josep Palau i Fabre, que é um dos maiores especialistas na obra de Picasso. Viveu largos anos em Paris, e tinha várias obras do Picasso. Quando decidiu que estava na hora de regressar à Catalunha andou à procura de um lugar onde pudesse criar a fundação Palau i Fabre, um museu que reuniria todo o seu espólio de obras de Picasso e ainda de outros nomes como Miró e tal. O que pedia era que a autarquia que quisesse receber a sua fundação lhe desse condições para que ele pudesse viver dentro dela. Esta acabou por ficar situada no centro de Caldes d'Estrac, e o último piso do edifício que recebeu a fundação era o piso onde ele viveu os últimos anos da sua vida. Quando morreu, toda a sua colecção ficou para o município. Parece-me que este tipo de intercâmbios são habituais no mundo da arte, e das bibliotecas, pelo que imagino que o acordo que Manguel assinou com Lisboa seja razoável e justo.
Não vou insistir muito mais nisto, mas chamo-lhe a atenção para um artigo que pode ser do seu interesse, uma vez que me disse que Manguel é possivelmente o leitor mais competente que conhece. Na entrevista que deu a um dos nossos jornais do regime, Manguel procurou elevar a sua biblioteca a uma mitologia, reivindicando o exemplo da biblioteca de Aby Warburg. Ora, um dos nossos mais destacados críticos, António Guerreiro, expôs uma série de distorções absurdas e erros flagrantes nessa sua tentativa de se colar a Warburg. Guerreiro mostrou como esse era o modus operandi de Manguel, ir costurando sempre uns ardilosos relatos que estão cheios de aldrabices, e que, ao contrário do que lhe disse na entrevista que lhe deu (“Creio que a conversa com o leitor tem de ser uma conversa inteligente, uma conversa na qual sempre partimos do princípio de que o leitor é mais inteligente do que nós”), trata o seu leitor como um ignorante. Manguel nunca respondeu. Como também não respondeu quando João Pedro George demonstrou que a crónica "exclusiva" que assinou nas páginas do “Expresso” não passava de uma repescagem de artigos já antes publicados lá fora, ainda que submetidos a pontuais adaptações para passarem por material inédito e ambientados na cidade e na corte que agora o acolhia.
António Guerreiro certamente diria que o que escrevo em “Livrarias” sobre Aby Warburg ou na banda-desenha que fiz com o título “Warburg & Beach” é tudo um disparate… E porquê? Porque não somos especialistas, somos generalistas. Não temos esse conhecimento especializado que ele terá. Quando o teu objectivo é ter uma visão abrangente de certos fenómenos culturais, não tenho dúvida de que, se esse teu esforço depois for entregue aos especialistas, eles mostrar-se-iam capazes de desfazer o teu trabalho, não sobrando quase nada que possa ser usado para fixar de forma definitiva a forma como as coisas se passaram. Mas assumo esta fragilidade do meu projecto, e nunca quis fazer outra coisa senão expor aquilo que foi a minha experiência, as minhas descobertas, os lugares onde me levou a paixão que tenho pelas livrarias e pelos livros. Mas, realmente, não sou um especialista na história do livro, das bibliotecas ou seja o que for. Sou apenas um escritor.
Sim, entendo. Acho é que, se compararmos a sua abordagem a estes temas, contrastando-a com a de Manguel, sobretudo em anos mais recentes, a diferença é que os seus livros não se entregam a um deslumbramento e a uma visão idílica deste mundo dos livros, mas procura colocar problemas, introduzir nuances, caminhar naquela linha da ambiguidade, entre a crónica e o romance, entre as vivências mais saborosas e a imaginação verosímil. Mas há sempre espaço para a crítica, para a dúvida, para uma visão que não arredonda nem procura consolar. Por outro lado, Manguel é essa figura auto-indulgente e deslumbrada, um apóstolo da bibliofilia, desse fascínio pelos livros em que às tantas nem importa ser rigoroso, bastando entreter os leitores encaminhando para um regime de fábula copiando à vista a realidade e apagando os nós mais truculentos e difíceis de desatar.
O meu livro “Livrarias” não existiria sem o “História da Leitura” do Manguel. Foi uma leitura fundamental para mim. Que diferença vejo entre as nossas obras? Creio que nos cruzamos nalguns aspectos, mas eu interesso-me por outros temas, como a influência da televisão, como os algoritmos, e sou, acima de tudo, um viajante que faz as suas viagens também para ler. Assim, estes dois livros que tenho por cá publicados são livros das minhas viagens pelo mundo. Para mim é muito importante a experiência directa, ou seja, a forma como tu, ao ires a um lugar, entendes coisas que não entendeste apenas lendo sobre ele. Mas para Manguel, como para Borges, tudo é passível de ser apreendido através da leitura.
Um tema que surge também na sua conversa com Manguel é o tão mal que são pagos os ensaios, crónicas e reportagens nos jornais e revistas com pretensões culturalizantes. Tendo em conta que o seu percurso começa aos 20 anos, andando pelo mundo com pouco dinheiro, ao passo que, hoje, muitos dos seus textos são publicados em títulos prestigiados e tem as portas abertas e todo o tipo de apoio onde quer que vá, se escrevesse um manual de sobrevivência para alguém que desejasse seguir-lhe as pisadas, que conselhos daria a esse jovem escritor?
Hoje aquilo que se paga no jornalismo cultural é muito inferior ao que se pagava há 25 anos. Não basta dizer que se paga muito mal por estes dias, mas também que então pagava-se realmente muito bem, talvez até bem demais. O mundo digital trouxe uma grande transformação a partir do momento em que há uma superabundância de conteúdos, muitos deles gratuitos, mas, ainda assim, diria que qualquer pessoa pode aspirar a viver da sua leitura e dos textos que escreva contando que esteja a dar passos num território virgem. Quando publiquei “Livrarias” não havia nenhum livro no mundo que contasse a história destas e tentasse desenhar uma espécie de atlas dando ao leitor uma perspectiva de algumas das mais emblemáticas em todo o mundo. Há um miúdo espanhol que escreve em inglês uma newsletter sobre o ChatGPT, e em dois meses viu o número de subscritores ultrapassar os 10 mil. Estas subscrições são pagas e ele está a viver folgadamente dessa newsletter. Serve este exemplo para explicar que cabe ao jornalista cultural dos nossos dias acima de tudo esse esforço de antecipar a maré, e se se dá conta de que há uma tendência que está prestes a ganhar expressão e na qual tu tens um saber qualificado, é quase certo que te irão pagar por esse conhecimento. Aquilo que não vale a pena é vires escrever agora outro “Livrarias”. Eu já o fiz há uma década. É necessário ter esse instinto do que está ainda por explorar. Por outro lado, tens de garantir que o teor dos teus textos ou imagens não poderia ser feito através de um programa de inteligência artificial. Tem de haver neles um carácter substantivo, a força de um estilo pessoal e de algum modo inimitável, o teu olhar deve transmitir algo de singular, porque é isso que o leitor busca.
Passado todo este tempo, e tendo feito tantas apresentações de “Livrarias”, em que aspectos é que a sua experiência o forçaria, caso reescrevesse o livro, a alterá-lo, sobretudo tendo em conta as enormes transformações que se têm observado neste sector nos últimos anos?
A verdade é que não faço tenções de escrever mais nenhum livro sobre este tema. Uma parte importante do meu trabalho é essa busca de novos temas, outros caminhos, e o último livro que publiquei em Espanha foi escrito a meias com o ChatGPT. É um livro que se chama “Os Campos Electromagnéticos”, uma espécie de remake de “Os Campos Magnéticos” de André Breton.
Mas o livro resulta de um diálogo entre si e o ChatGPT.
Não. Tem um ensaio meu e um texto escrito por ele, que eu editei depois. Foi feito a meias.
E o texto dele tem algum interesse?
Sim. Comecei há dois anos a trabalhar com este protocolo de inteligência artificial, comecei numa altura em que ainda ninguém sabia da sua existência.
Mas um dos aspectos mais tortuosos de tentar manter uma conversa com o ChatGPT é que ele é um moralista e um chato do pior. Parece que voltámos às aulas de Religião e Moral, não admite qualquer tipo de ambiguidade, nuance ou subtileza em questões mais complexas…
Sim, mas eu trabalhei com uma versão anterior, o ChatGPT 2, um modelo que não tinha ainda todos esses entraves, que não era moralista. Demos-lhe tudo o que eu escrevi e foi afinado para escrever como eu. Era capaz de um registo bem mais livre, capaz de um pensamento estranho e louco, bastante inovador, mas por vezes saia-se com visões sexistas e racistas, e com o ChatGPT 3 eles corrigiram-lhe a postura para impedir esse tipo de juízos. Mas ao serem exorcizados os demónios, também os anjos foram à sua vida, por assim dizer. Perdeu muita da sua liberdade. Agora, todos os textos que escrevem acabam com um final feliz. Mas quanto à tua pergunta sobre o que faria se quisesse escrever, hoje, o “Livrarias”, trataria a dimensão virtual da leitura. Os canais do TikTok, os BookTubers, toda essa dimensão parece-me bastante fértil, e com um alcance que merece ser analisado. Hoje, os mais jovens, entram numa livraria de uma forma muito diferente daquela que eu e tu fazemos.
Qual lhe parece que seria a intuição de Borges perante estas novas realidades da leitura e do discurso sobre livros?
A descrição que Borges faz de “A Biblioteca de Babel” é uma visão do que viria a ser e é, hoje, a internet. Realmente ele entendeu o que é a saturação absoluta da leitura. Neste momento é quase impossível que um objecto cultural por si só assuma um peso decisivo no debate público. Tudo exige esse regime de mediatização para chegar às massas, mas há, por outro lado, tantos objectos ou produtos culturais, que tudo se dissolve, a oferta é de tal ordem que não ficamos tempo suficiente com nenhum filme ou livro ou o que quer que seja para que este nos transforme. Foi isto o que Borges profetizou: a saturação textual do mundo.