No final da semana passada surgia uma petição pública 'online' exigindo a retirada de três esculturas colocadas na Praça do Município de Lisboa e em Belém, considerando que estas constituem uma “ofensa grave ao espaço que é de todos”, destratando a imagem da cidade, e acusando de leviandade o executivo camarário presidido por Carlos Moedas, que, ao impor essas obras, revelava “ignorância e insensibilidade, provincianismo e incompetência”. A iniciativa promovida pela Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, que defende ainda a criação de um regulamento para obras de arte no espaço público, não conseguiu provocar um debate aceso, nem obteve grande repercussão nos canais mediáticos. Apesar de alguns nomes sonantes como os de Daniel Blaufuks, Horácio Frutuoso, Ângela Ferreira, Manuel Tainha e Pedro Portugal terem subscrito o abaixo-assinado, até ao momento este não conta com uma adesão muito significativa, nem gerou qualquer alarido nas redes sociais, tendo-se ficado, por 530 signatários.
O tom da petição, mais do que incisivo, é arrasador para a autarquia. “Eventualmente por mera coincidência, os três bustos, da autoria de dois autores diferentes, têm em comum a mesma literalidade, incompetência plástica e escultórica e a capacidade comum de afetarem negativamente o espaço público de enorme qualidade urbana, arquitetónica e paisagística onde se encontram instaladas.”
As tais obras de arte apareceram de forma algo inusitada no espaço público, tendo a escultura intitulada "Pareidolie", do artista plástico francês de ascendência portuguesa Alexandre Hopare Monteiro, sido doada a Lisboa, e instalada em janeiro na Praça do Município. Em fevereiro, era a vez de Rogério Abreu ver inaugurado o conjunto escultórico "Heróis da pandemia" no Passeio Carlos do Carmo, em Belém, numa suposta homenagem ao trabalho dos médicos que estiveram na linha da frente na pandemia Covid-19. O texto da petição adianta que “no caso das esculturas de homenagem aos médicos colocadas em Belém, a situação é sobretudo caricata, na medida em que a bondade do propósito é denegrida pela mediocridade das esculturas.”
Na cerimónia de inauguração da obra de Hopare Monteiro e do contrato de doação, Carlos Moedas usou do habitual registo balofo que se tornou tão usual e ostensivo que já não espanta mas apenas cansa, vincando como esta obra significava "a dignidade dos portugueses". Trata-se de uma frase protocolar e necessariamente esvaziada de qualquer sentido, mas não deixa, assim mesmo, de contrastar com uma reconhecida tendência dos portugueses para acentuar os desmandos da sua classe política, e é de resto esse toque de dissidência que leva a que se acentuem os fracassos, funcionando isto num retrato burlesco do qual nos entretemos, como se no discurso que fazemos sobre nós próprios se observasse essa norma não-escrita que obriga a um registo de auto-derrisão. Tornou-se, assim, bastante comum uma tendência para os portugueses se rebaixarem, uma espécie de doutrinação negativa, um curso de história satírica que incide sobre o próprio país, as suas gentes e costumes, o que, de certo modo, faz parte também de um regime de hospitalidade, convidando o estrangeiro a assumir uma atitude benevolente, quase redentora.
Para esse balanço caustico até ajuda que o espaço público se veja coberto desse ambiente de pitoresca desordem que cumpre quase sempre apenas uma homenagem a certos estereótipos grotescos, mas a petição que tem como primeira signatária a influente galerista Cristina Guerra defende que "a colocação de obras de arte no espaço público deve ser objecto de uma aturada reflexão: a partir do momento em que são colocadas ficam alcandoradas à dimensão de monumentos, com toda a responsabilidade que a essa condição advém, nomeadamente a sua vocação de perenidade e de referência futura".
Se há uma atitude de geral descaso, senão mesmo de escarninho desdém pelo espaço público entre nós, e até um deleitoso prazer em zombar de tudo o que é erigido à laia de monumento, há, por outro lado, também uma tentação de parecer cultivado ao impor juízos tremendamente severos, denunciando a pobreza estética de todas as manifestações deste teor. E, nestes casos, a petição parece segura de ter encontrado essa "falta de qualidade das obras que as remete para o puro nível da poluição visual, não possuindo qualquer qualidade estética que mereça a sua permanência". Mas a petição faz questão de lembrar como “a arte no espaço público não carece da nossa vontade de a fruir, ao contrário do que acontece num museu ou numa galeria. Aí, a escolha da visita é do espectador. No espaço público, somos confrontados com o que não escolhemos ver, o que implica uma acrescida responsabilidade de quem encomenda e decide".
Entre as reacções que a petição suscitou, destaca-se a de Rui Vilar, catedrático no Instituto Superior Técnico, um assumido leigo na matéria que não deixa, no entanto, de estranhar a postura assumida pela galerista e secundada por, entre outros artistas, Ana Vidigal, Rui Toscano, José António Quintanilha e Pedro Calhau. “Não sei se as esculturas têm algum interesse ou não”, admite Rui Vilar, “e qualquer apreciação deste teor é, antes de mais, matéria de gosto – mas acho curiosa a veemência da reação suscitada, inesperada porque em matéria de arte pública Lisboa é mais atrasada que qualquer parvónia do oeste americano profundo. Quem avalia a ‘competência plástica’? Com base em que critérios? Porque implicam com estas e não com o busto de Sá Carneiro no Areeiro, que em matéria de incompetência plástica faz tremer o céu e a terra? Ou com a escultura em forma de mão na qual, no Saldanha, um horrível edifício se apoia como se estivesse a pensar, com o queixo apoiado no punho? Ou com o horror que é a construção em betão que Cabrita Reis desenhou para o jardim da Gulbenkian, feíssima, demasiado grande para passar despercebida, demasiado pequena para ser monumental ou mesmo para ser notada, um micro-mamarracho sem pés nem cabeça, felizmente crescentemente disfarçado pela vegetação luxuriante daquele canto do jardim? Será que a indignação é provocada pelo facto de não haver proventos para os artistas nacionais representados pelas galerias envolvidas? Se fosse seria muitíssimo feio.”
No entender dos signatários da petição, não resta a menor dúvida de que as esculturas que Carlos Moedas entendeu que calhavam bem ser dispostas no espaço público para que o olhar de todos pudesse tropeçar nelas são emblemáticas desse “processo leviano da escolha dos projetos”, manifestando da parte do autarca “a arrogância de pretender deixar tal legado à cidade”. A petição acrescenta ainda que estas escolhas “sujeitam os autores das obras a um escrutínio público extremamente negativo, que a sua dimensão não merece". Por fim, além da retirada das obras, a petição defende que seja instituída uma "obrigatoriedade de sujeição de todos os projetos de arte no espaço urbano a avaliação prévia por parte de uma comissão". E esta comissão deve incluir "não apenas os técnicos indispensáveis para avaliar a exequibilidade material e financeira de cada projecto submetido, mas também especialistas de reconhecida qualidade para a aferição do valor estético de cada proposta".
Mais curioso neste episódio e nesta defesa da imagem da cidade numa iniciativa promovida por uma das suas mais ilustres galerias de arte, é a forma como esta se confronta com as habituais manifestações de desagrado face ao protagonismo que assumem tantos artistas recolhendo encomendas milionárias para instalarem no espaço público obras que, na maioria dos casos, são encaradas com indiferença ou tornam-se motivo de troça. No fundo, seria antes decisivo que houvesse uma tentativa de promover algum tipo de debate estético antes de querer impor “especialistas de reconhecida qualidade”, não se sabendo quem possam ser essas figuras. Por outro lado, é importante também levar em conta um talento popular para a truculenta autodesmistificação, e como estes artistas consagrados são tantas vezes o alvo de um gozo corrosivo que, de um modo muito semelhante, se vinga e contraria também aquela insistência patológica dos titulares de cargos públicos para legitimarem as suas políticas através desse fausto de intervenções espalhafatosas e bastante inócuas no espaço público. Não faltam exemplos das causas mais nobres e de inúmeras efemérides que são usadas para se encomendar de forma um tanto arbitrária peças que de forma mais ou menos convencional celebram isto ou aquilo. Esta tentação de deixar um legado, tem ajudado a produzir um estéril culto dos monumentos que não é senão a máscara de uma essencial imobilidade.
No fundo, todas essas rotundas decoradas por mamarrachos indescritíveis, todas esses jardins ou praças cheias de bustos, estátuas ou esculturas não é outra coisa senão a dimensão física de uma retórica imobilizada. São os símbolos de um regime um tanto caduco, os modos de um suave despotismo na forma de ir enchendo a cidade desse entulho pretensioso, convidando muitas vezes os próprios artistas a tomarem a iniciativa, sem aguardar a encomenda, oferecendo as suas obras, e aproveitando-se desse vale-tudo para valorizarem os seus nomes e imporem estes ícones desgraçados. Isto confere a tantas dessas praças aquela aura de museu de aberrações, uma embaraçosa desordem que propõe à admiração de quem passa peças que ficam ali como quimeras pastando no nosso eterno tédio.
O mais difícil é sempre traçar uma linha de demarcação quando parece impossível estabelecer critérios minimamente objetivos, tendo o próprio dinamismo das diferentes seitas artísticas promovido um regime de suspeita e um processo acusatório insanável. É precisamente a ausência de qualquer escrúpulo na forma como o mundo da arte contemporânea se verga ao regime da especulação e se organiza segundo o tráfico de influência que torna risível a sugestão feita pela Galeria Cristina Guerra, na petição por si promovida, de que, futuramente, se institua uma comissão de especialistas. Mais uma? Não há dúvida que a própria constituição de tal comissão daria azo a um regime de guerra entre todos os agentes nesse campo até se chegar a um acordo que satisfizesse os núcleos de interesses que dominam este jogo. Ao menos o mau gosto dos autarcas tem algo de democrático.