Foi sempre conjugando a música com a Psicologia. Como tem sido este percurso?
Sou psicólogo há quase 20 anos. Nos últimos anos, acho que a parte musical começou a ser fortemente influenciada pelo trabalho humanitário. Quem compõe é sempre influenciado pelas vivências que tem. E isso acontece comigo desde 2016: os cenários de crise e catástrofe influenciam-me, de uma forma, e de outra, na intervenção em saúde mental, nesses cenários, sublinhamos, potenciamos a cultura local. Vejo que as comunidades usam a música como forma de cura muito potente e tentamos exponenciar isso: é para isso que serve a música. Não para ver quem é que vende mais discos ou saber qual é o nicho de mercado.
Há momentos-chave dos quais não se esqueça e que queira realçar?
As coisas que mais me marcaram são os incríveis atos de altruísmo nas pessoas que estão completamente desesperadas e a passar pela pior fase das suas vidas. Isto não é só incrivelmente marcante para quem lá está e o testemunha, como devemos transmitir esta mensagem: ainda temos uma visão negativa ou egoísta dos seres humanos. Mas quando as coisas estão mesmo a correr mal, a regra é o altruísmo: não é a exceção. Há pessoas que conseguem pôr as necessidades dos outros como alta prioridade mesmo estando a sofrer extremamente. E volto a sublinhar este facto: apesar de estarem a passar pela pior altura das suas vidas. Acho que isso é impactante, inspirador e importante e posso retratar isto de várias maneiras recorrendo à Ciência da Psicologia. Uma delas passa pelas profecias auto-realizadas: tem-se uma expectativa, a ação vai ao encontro dela e acabamos por influenciar os acontecimentos de tal forma que as expectativas que tínhamos confirmam-se. Se continuarmos a passar a mensagem de que os seres humanos só se importam com eles mesmos, contribuímos para que haja mais atos egoístas.
"Achas que o altruísmo implica servir os outros, fazer sempre a coisa certa ou algo que é só para os santinhos? Deixa-me dizer-te que andas a perder – e muito!", explica na introdução do seu livro. Existe o estereótipo de que quem faz o bem não comete erros, quase como se tivesse uma auréola.
Também há a ideia de que é irrealista, inocente, que não viveu o suficiente, que ainda tem ilusões e um dia vai perceber que não vale a pena ajudarmo-nos mutuamente. E se a pessoa souber tudo e ainda decidir ajudar os outros, pensamos que é moralmente superior, que se prejudica para fazer o bem… Quando, na realidade, não é uma coisa nem outra: os comportamentos de ajuda são muito frequentes e ganhamos sempre algo quando os fazemos. Pode não ser na dimensão material, mas numa social, de status, moral, espiritual… Sentimo-nos bem mesmo que não haja testemunhas. Vemos alguém que está a sofrer, os nossos circuitos de empatia são ligados e ao ajudarmos reduzimos as emoções negativas. Ou seja, ganhamos também.
"E quanto ao género? Homens e mulheres têm perfis altruístas muito semelhantes. É possível que os homens pratiquem mais atos de altruísmo arriscados (provavelmente, como já vimos, para impressionarem as mulheres) e que as mulheres tenham uma probabilidade ligeiramente maior de doar um rim", explicita. Porquê?
É o que nos diz a literatura até agora. Se é daqueles resultados super consistentes, muito maturados? Não, mas as coisas apontam para aí.
E no terreno também é isso que perceciona?
Sim. No meu caso, vejo uma preocupação parecida, aumento de entreajuda igual, mas a forma como isso se manifesta ou os alvos a quem é dirigida essa ajuda é que podem variar por diversos motivos. Até culturalmente. Por exemplo, pode ser mais comum uma mulher ajudar uma mulher. Há outra coisa que, na minha experiência profissional, também cria uma certa diferença: os casos onde há violência sexual. De forma geral, aumenta em qualquer crise ou catástrofe. E, quando há conflito armado, a maior proporção continua a ser doméstica ao contrário daquilo que as pessoas pensam. Como já sei que a grande maioria das vítimas é do género feminino e a gigantesca maioria dos agressores é do género masculino, sei que tenho de ter mulheres na minha equipa.
O "ciclo de vida do voluntário" é algo interessante que deixa claro no final da I Parte.
Sim, começando pela fase de lua de mel, durante os primeiros a 6 a 12 meses, em que o compromisso de ambas as partes é bom, ainda estamos a conhecer a organização e a mesma a nós, mas há uma certa confiança de que tudo vai resultar.
Depois, vem a pós-lua de mel.
Exato, em que há uma sensação de que algo pode mudar, seja no sentido positivo (maior compromisso, entrosamento, etc.), seja no negativo que acaba por fazer-nos decidir sair. É possível que a nossa euforia inicial passe e até fiquemos um pouco abatidos.
De seguida, a relação estável.
Quando já lá estamos há três ou quatro anos, então já nos conhecemos bem. Nesta fase parece ser importante que os nossos motivos estejam mais relacionados com aumentar o bem-estar dos outros do que com o desenvolvimento pessoal ou a interação social, como esclareço no livro.
E, no fim, a relação de compromisso profundo.
Com cinco anos ou mais de casa, há um laço muito estreito… Entre nós e a organização. É assim que digo, certo? [risos] Se alguma coisa correr mal, é provável que se perdoem e, mais uma vez, quem se meteu nisto para principalmente ajudar os outros parece ter mais probabilidades de se manter.
Faz lembrar o processo pelo qual os cuidadores informais passam.
Interessante… Em que medida? Agora sou eu a fazer as perguntas!
Porque, inicialmente, tudo corre bem, depois achamos que algo pode mudar, aquela euforia inicial do altruísmo pode desvanecer-se e começa a haver uma relação estável e, em fases mais avançadas, a tal relação de compromisso profundo.
É curioso. Quando me dizem que o trabalho humanitário é de muito altruísmo, faço sempre o contraste com os cuidadores informais. Na TED Talk que fiz, digo: "Vou numa missão. Há uma janela temporal. Os cuidadores, muitas das vezes… A própria vida deles é que é a missão".
Mas aqui há uma diferença: num caso estamos a falar de família… Será que faríamos o mesmo por desconhecidos?
Certo. Temos mais comportamentos altruístas com os mais próximos e vamos tendo menos com os que nos são mais distantes. Só que, lá está: não faz sentido dizer que um é mais altruísta do que outro. Nunca mais saímos desta discussão! As pessoas caem nesta armadilha montes de vezes e inibem-se de ajudar quando não é 100% pelo outro. Quis ultrapassar isso no título e na introdução do livro.
"Demasiada empatia emocional não permite o altruísmo – se ficarmos demasiado abalados pela situação do outro, não conseguimos sequer agir e tentar ajudar", escreveu. Já experienciou esta situação?
Trabalho no SNS e, muito do nosso trabalho com cuidadores, baseia-se nisto: passam de uma situação em que têm muita empatia e sentem um bocadinho as emoções de quem estão a cuidar, para o excesso, dá-se o burnout e depois têm dificuldade em empatizar. No meu caso, nunca me aconteceu em missões humanitárias, mas acho que estava a entrar em burnout num trabalho que tive. Não sei se era fadiga de compaixão porque há outros motivos: carga de trabalho elevada, pouco reconhecimento, etc. Eu tive… Não sei bem porquê. Estava a fazer a mesma coisa há muito tempo e vinha de missões onde o sofrimento era claro e no meu trabalho antigo, que não era psicoterapia, era aconselhamento e teste de HIV, algumas pessoas estavam vulneráveis e outras não. Passava de uns contextos para outros. Falo de algumas estratégias para evitar o burnout e… Parece-me que até me porto bem, cumpro-as!
"A empatia emocional não é para deitar ao lixo. Não estou a defender que paremos de empatizar emocionalmente com os outros, pois isso nem sequer é possível. A verdade é que, se conhecermos os limites da empatia emocional, podemos aumentar as probabilidades de realmente fazermos algo pelos outros. Isto permite também potenciares o altruísmo sem aumentares as hipóteses de burnout, de te desgastares".
Isso!
"Quando ajudas tens poder" é um dos subtítulos do livro. "Quando dás alguma coisa podes facilmente encontrar-te numa posição de poder, na qual, se não tiveres cuidado, as tuas ações podem fomentar vulnerabilidade e dependência em vez de autonomia e empoderamento". Como é que se apercebeu disto?
Quando ajudamos alguém, e acho que é útil partir deste princípio, estamos numa situação de mais poder. Em várias culturas, é quase universal, há o princípio da reciprocidade: achamos que devemos retribuir e quem ajuda tem o poder de fazer sentir no ajudado que tem de retribuir. E estou a falar de uma dimensão mais individual, mas há uma mais comunitária e outra macrosistémica. Tento apurar estas três dimensões porque nos focamos muito na primeira. Abordando-a: ao ajudarmos, sentimos que sabemos quais são os problemas e as soluções. Isto pode criar uma espiral negativa porque não ouvimos sequer as pessoas que vamos ajudar para percebermos quais são os reais problemas. Mesmo em crise e catástrofe, quando tudo parece óbvio, podem escapar-nos coisas vitais. Quando escolhemos ajudar a aldeia A e não a B, podemos criar tensão na B. Mesmo sem querermos. Podemos reforçar a sensação de dependência e de falta de competência das pessoas vulneráveis, em termos individuais, e se não tentarmos equilibrar isto… Podemos polarizar ainda mais. Eu é que decido, está aqui a ajuda, toma: isto não pode funcionar assim. E há a repercussão nos nossos: quando regressamos, reforçamos o a priori. Como se "eles" fossem mais homogéneos e vulneráveis. Há historiadores que mostram uma curiosa estatística: se abríssemos 3 vezes mais as fronteiras nos países desenvolvidos, isso implicaria um aumento na economia dos países subdesenvolvidos 3 vezes superior àquilo que damos em donativos. Damos 128 mil milhões por ano, mais ou menos, e se mudássemos aquilo que fazemos… O fluxo de riqueza seria muito superior. Este nosso sistema de ajuda externa também pode estar a reforçar a ideia de que os países pobres precisam de caridade quando, se calhar, só precisam de justiça.
E consegue dar um exemplo concreto?
Sim. Na minha primeira missão, em Moria, na Grécia, a minha equipa de saúde mental foi essencial. Mas estava a manter um status quo, um campo que traumatiza as pessoas. Uma relação hierárquica entre ajudado e ajudador. Por isso, tento mostrar que podemos intervir mudando o sistema. Este equilíbrio desequilibrado pode ser alterado. Temos a ação direta benevolente e a ação de cidadania, ativismo que pode, efetivamente, mudar o sistema.
Outro dos subtítulos do seu livro é: "É mesmo preciso falar de ativismo e política?". Nessa parte, o repórter e professor universitário Paulo Moura explica: "Isso para mim é claríssimo: para mim um jornalista não pode ser ativista. Tem de ser ativista naquilo que é o seu trabalho, ativista como jornalista, cumprindo a sua função. Não é um jornalismo de causas, mas um jornalismo como causa". Porque se lembrou de falar no jornalismo e qual é a sua experiência com o mesmo?
É muito curiosa porque eu não prestava grande atenção. Mas, lá está: percebi que é um pilar fundamental para a mudança. É um ingrediente fundamental para salvar vidas. O jornalismo permite-nos comunicar e dizer: "Ok, passa-se x" e potencia ou pode potenciar a ação. E acho que é isso que o Paulo diz: o jornalismo não é ativista per si, mas se resultar em ativismo… Ele fica muito feliz. Há pessoas que sobrevivem por causa do jornalismo. Eu falo no Ezra Klein, porque ele ele é o editor-chefe da Vox Media, e diz que o jornalismo é como um espelho que reflete o mundo: mas o mundo não cabe todo no espelho e temos de decidir aquilo que vamos refletir. E acho que há uma visão da sociedade um bocado de "os media só passam o que dá audiência", mas, para além disso, também descobri que nem sempre é uma questão individual. Há muitos jornalistas super preocupados, mas a linha editorial nem sempre permite que transmitam certas coisas. Há limites sistémicos, outros menos agradáveis como o afunilamento dos canais no terreno, mas – e este é que é o ponto – podemos mudar a agenda mediática. Eu dou algumas dicas, mas acredito que é uma questão do "nós", da nossa força coletiva.
Uma das coisas que defende é que não existem lutas erradas.
Quando digo isso estou a tentar dar ferramentas para a mudança e não a dizer aquilo que é certo ou errado. Há ativismo que, se calhar, procura resultados que não achamos sequer morais. Aquilo que quero dizer é que não há objetivos demasiado pequenos, demasiado grandes, demasiado próximos ou demasiado distantes: conseguimos, temos poder e uma caixa de ferramentas que nos permite chegar aos resultados.
A determinado ponto do livro, escreve: "Bom, não sei responder à pergunta 'o ativismo/a ação cívica/a ação coletiva é para todos?'… Sei que é um direito, que muitos diriam que é um dever, mas que nem todos estarão motivados. E também sei que há muitos perfis". E começa pelo ajudante ou mãos na massa.
Sim, como explico, é aquele que gosta de uma ação muito direta como construir casas, organizar doações de roupa, distribuir bens doados, etc.
E afirma que nota que estas pessoas "podem ficar rapidamente frustradas com o ativismo porque o trabalho não é tão direto. Sobretudo se nunca tiveram uma experiência em que 'metem as mãos na massa' e começam a tentar contribuir com ações de ativismo, isto pode defraudar as suas expectativas", sendo que "é por isso que há que ajustar sempre as expectativas". E de seguida vem o defensor.
Exato, que procura melhores políticas e melhores decisões de quem tem poder.
E depois o organizador.
Que assume muitas funções que se relacionam com juntar e mobilizar pessoas, organizar eventos de doação, planear ações de rua.
E o organizadinho.
É a pessoa que gosta de dar estrutura, previsibilidade, que quer ter um sistema, regras, para que as pessoas se entendam e ninguém se perca. Para que haja maior eficiência nos processos.
Por fim, o rebelde.
Que se foca na disrupção, em resistir à pressão do que é procurando o que devia ser. Muito motivado para combater, para mostrar que não se conforma com o poder, como escrevo.
E, no meio de todos estes perfis, temos pessoas que seguem a via mais tradicional e fazem campanhas diretas e outras que seguem o ativismo digital.
Precisamente. Há quem ache que, por exemplo, assinamos uma petição e desligamo-nos do assunto. No entanto, penso que devemos tentar as duas coisas. Mas as redes podem ter um efeito polarizador brutal. Principalmente, desde que o Facebook tem o 'like' e o Twitter o 'retweet'. Há um desafio enorme: temos discussões importantes, que podem ter consequências na vida real das pessoas, em meios muito polarizadores. E parece-me que temos de prestar atenção a isto. Temos de fazer mais pontes entre "nós" e "eles": de outro modo, teremos mais "nós" a falar com "nós" e "eles" a falar com "eles". Precisamos de mais encontros cara a cara – sem os "nossos" a ver, sem audiência – e de partir para os mesmos com o objetivo de encontrar terreno comum e escutar a outra pessoa. E não de confirmar aquilo que já achamos ou de ganhar a discussão. E isto nem sempre é mais fácil: exige muito esforço. Não podemos aniquilar completamente a diferença – isso não é realista -, mas podemos diminuir a distância entre o "nós" e o "eles".