Enganei-me redondamente. Escrevi há quatro semanas, numa crónica chamada O gato e o rato, que Marcelo Rebelo de Sousa ia provocar António Costa mas este iria fazer-se desentendido, e nunca afrontaria o Presidente da República.
Porquê?
Porque, sendo a popularidade de Marcelo muito superior à sua, Costa só teria a perder num confronto direto.
Mas o primeiro-ministro decidiu partir mesmo para uma guerra aberta com o Presidente.
Ao dizer que não aceitava a demissão de João Galamba, depois de Marcelo lhe comunicar que em sua opinião o ministro não tinha condições para continuar no cargo, António Costa não estava a proteger Galamba – estava a afrontar Marcelo Rebelo de Sousa.
Poderia dizer-se que Costa não queria fazer uma remodelação de afogadilho, e aguentava Galamba para, num futuro próximo, fazer profundas alterações no Governo, quer na estrutura quer nos nomes.
Mas, se fosse essa a ideia, o primeiro-ministro tê-la-ia exposto ao Presidente da República, e este não teria feito o comentário que fez, ao dizer que «discordava» da permanência de Galamba no Governo.
Teria feito um comunicado diferente, mais ambíguo, falando de um «amplo entendimento» entre o Presidente e o primeiro-ministro, deixando a questão Galamba em aberto.
E o próprio António Costa teria feito uma declaração diferente, não defendendo João Galamba com unhas e dentes, como fez, mas sendo mais comedido.
Dizendo Costa o que disse, e fazendo Marcelo o comentário que fez, ficou claro que entre os dois houvera um choque frontal e que, a partir daí, íamos entrar num período de guerra aberta, mesmo que aqui e ali camuflada.
Mas o que levou António Costa a tomar aquela atitude nesta altura?
Recorde-se que, depois dos incêndios de Pedrógão e de Marcelo ter arrasado a ministra Constança Urbano de Sousa, o primeiro-ministro apressou-se a demiti-la para satisfazer o Presidente.
Por que razão não fez agora o mesmo?
Até porque tinha motivos de sobra para demitir João Galamba.
No seu Ministério passaram-se cenas inconcebíveis, e é público que ele mentiu.
Sabe-se hoje que foi ele quem pediu a reunião com a CEO da TAP, ao contrário do que disse; sabe-se que havia notas da reunião, ao contrário do que disse; e a própria reunião em si fora um ato indecoroso: fazer uma reunião com a responsável da TAP para ensaiar as perguntas e as respostas a dar aos deputados foi uma vergonha.
Só isso, se mais não houvesse, seria suficiente para o ministro ter de pedir a demissão e esta ser aceite.
Mas António Costa não quis aceitá-la.
Porquê?
O que lhe iria na cabeça?
Se a intenção foi provocar a demissão do Governo ou a dissolução da Assembleia, o cálculo foi muito mal feito.
Por uma razão simplicíssima: o Presidente da República não podia levar o país para eleições, pois não tinha a certeza absoluta de que o PS as perderia.
E, se as voltasse a ganhar, o Presidente ficaria numa posição insustentável.
Se, depois de demitir o Governo ou dissolver o Parlamento, o Partido Socialista voltasse a ser o partido mais votado, o PR ficaria à beira da renúncia.
Mas, mesmo que o PS perdesse e o PSD ganhasse, este teria muita dificuldade em formar Governo – pois precisaria com certeza do Chega para ter a maioria, e Marcelo já mostrou que não quer o Chega no Governo.
Portanto, Marcelo Rebelo de Sousa não podia usar a bomba atómica.
E, mais do que isso, tinha toda a vantagem em deixar este Governo ficar a esturricar em lume brando.
Com tantos ministros chamuscados, com Galamba ferido de morte, o atual Executivo irá sempre em queda daqui para a frente – e Marcelo intervirá quando achar que é a ocasião propícia.
Note-se isto: Marcelo nunca deixaria que fosse António Costa a escolher o momento de fazer novas eleições – quererá sempre ser ele a definir esse momento.
Mas isso cria um problema muito complicado não só ao Governo, não só a António Costa, mas ao próprio Partido Socialista: é que, com o Governo a ser queimado lentamente, o PS arrisca-se a chegar de rastos às eleições legislativas, quando se realizarem, e a dar um imenso trambolhão.
Veja-se o que está a acontecer pela Europa fora, designadamente em França, onde o PS praticamente desapareceu.
De um dia para o outro isso pode acontecer ao PS português.
Assim, devem estar a viver-se no Partido Socialista horas de grande tensão, de que as declarações do presidente do partido, Carlos César, já tinham sido um primeiro sinal.
E essa era mais uma razão para Marcelo não intervir.
Se demitisse o Governo, o PS unir-se-ia todo à volta de António Costa contra ele. Deixando-o a queimar-se, a insatisfação no PS irá aumentando e Costa ficará cada vez mais isolado.
Agora, Marcelo tem tudo a seu favor e Costa tem tudo contra si: o Presidente da República, todos os partidos, de esquerda e de direita, e uma parte importante do próprio Partido Socialista.
É muita gente!