Texto de João Oliveira Duarte
O livro é sóbrio, quase pobre, sem aparato crítico, sem o desfilar infindável de notas de rodapé e as introduções que, tantas vezes, têm tanto de luminoso como de enfadonho – há uma introdução, mas não chega a ter três páginas e não há uma única nota de rodapé em todo o livro. Antologia Inquieta, que, como afirma o próprio título, é uma antologia (sobre Sá de Miranda) com selecção e introdução de Pedro Mexia, é um objecto que contraria a política do grande nome que tem capturado, não apenas certos nomes clássicos da poesia portuguesa – mas há tantos que, pura e simplesmente, não têm direito de cidade na edição portuguesa –, como, igualmente, aqueles nossos contemporâneos já consagrados.
A política do grande nome não diz respeito às edições críticas que, efectivamente, são necessárias para todos quantos pretendam estudar ou compreender um qualquer poeta – mas o serviço público, e pensemos na edição que a Imprensa Nacional fez de Sá de Miranda, não se pode ficar por aí, nem por edições de luxo. Esta política tem um gosto demasiado pronunciado pela obra completa, não devido a um qualquer sentido de completude, nem porque a obra completa permite uma panorâmica sobre a produção de um dado poeta, mas porque induz um sentido de Obra (com maiúscula), que já não é o foco agregador de tudo quanto alguém escreveu, mas a imponência de um nome que, em certo sentido, se esgota em si mesmo. Assim, todas estas Obras Completas que hoje circulam no mercado editorial não são, na realidade, para ler, nem talvez sirvam para aquele propósito de enriquecimento pessoal de que Hannah Arendt falava num conhecido texto onde analisava a figura do filisteu cultural. Para este, todos os produtos culturais serviam uma finalidade subjectiva, esquecendo que a arte tem outros propósitos que não passam por uma acumulação primitiva de subjectivismo; para a política do grande nome, os produtos culturais atingiram um limite onde a inutilidade se tornou equivalente ao valor de exposição – quase num sentido literal do termo. Como um objecto de luxo demasiado caro para ser utilizado, grande parte das Obras Completas em circulação servem apenas para expor.
É talvez por isto, por resgatar Sá de Miranda a esta política editorial, que esta antologia – apesar de pouco representativa do universo deste poeta do século XV, apesar da inquietude não ser, talvez, um termo apropriado para aquilo que se lê nestes poemas – merece ser colocada em destaque. E resgata, antes de mais, porque esta tendência contemporânea para encerrar os nomes da tradição poética em tomos volumosos coaduna-se pouco com uma certa rusticidade – inclusive no uso dos termos –, com o carácter elíptico que esta poesia tem, com um desespero dito e escrito, ritmicamente aprofundado ao longo desta breve antologia.
Um outro aspecto interessante – e que convinha alargar a outros nomes clássicos, tal como não seria má ideia um conjunto de antologias igualmente sóbrias dos clássicos, a começar por Camões – é a ausência de notas explicativas ou mesmo essa breve introdução de Pedro Mexia. É certo que o intuito de Pedro Mexia parece ser o de transformar Sá de Miranda num nosso contemporâneo (sobre os poemas diz que “são modernos, e talvez mais modernos agora do que então”). Mas podemos sempre interrogar-nos sobre o que é que acontece quando somos confrontados com esse “nevoeiro existencial”, como lhe chama Mexia, sem a mediação do conhecimento histórico, sem o aparato crítico que o tende a tornar num objecto fechado no passado. Uma outra solução, que não passa por uma qualquer forma de intemporalidade (“os temas de todas as épocas” de que fala Mexia), é ver, neste desespero e nesta errância de Sá de Miranda, não tanto um tema dos nossos dias, mas mais essas estrelas de que fala o filósofo italiano Giorgio Agamben, que se distanciam a uma velocidade tal que a luz nunca será visível para nós. Um desespero, uma pobreza, de tal forma singulares que nunca será possível qualquer forma de aproximação da nossa parte, obrigando-nos a uma aprendizagem incerta e tacteante, à luz de uma distância que, neste caso, já não é apenas histórica. Este face a face perante um dos nomes maiores da nossa poesia, sem outra mediação que não sejam os poemas, encerra perigos – como aquele de o tornar nosso contemporâneo –, pode levar a disparates, mas permite igualmente levantar a poeira histórica que, tantas vezes, tende a encerrar este tipo de nomes.
Antologia Inquieta reúne cinquenta poemas, alguns deles bastante conhecidos e glosados (“o sol é grande, caem co’a calma das aves”, por exemplo). Poeta que introduziu em Portugal as novidades que colheu em Itália – mesmo mantendo sempre um gosto pela «medida velha», as cantigas e os vilancetes, por exemplo, que nunca abandonou –, Sá de Miranda foi um poeta onde um certo desespero existencial conviveu de perto com uma crítica social, dimensão que Pedro Mexia coloca de parte e que a transforma, como já foi afirmado, numa antologia pouco representativa. E é este desespero, mais do que uma qualquer inquietude, que dá tom a esta antologia – um tom, no entanto, monocórdico, como se cada poema fosse uma forma outra de dar conta dele, cada um deles aprofundando esse desespero que faz com que Sá de Miranda caia para fora da história (não a eternidade do grande nome, mas a pobreza sem nome da errância).
“Tornou-se-me tudo em vento,
Após tormento e tormento,
Que eu passei cuidando em al;
Enfim veio cedo o mal
E tarde o conhecimento.
Eu assi desenganado,
Vejo vir males maiores.
O tempo a que sou chegado!
Que posso doer às dores
E dar cuidado ao cuidado”
Importante, neste poema, além desse conhecimento que chega sempre demasiado tarde e dessa dor excessiva – que pode lembrar o “tormento/ que a todas as memórias seja estranho” de que falava Camões –, é o vento de que fala Sá de Miranda e que comparece em alguns dos poemas da antologia. É uma metáfora, não apenas de um tempo no qual ao desastre se junta o desastre, mas da própria desfiguração de todas as coisas, de uma face sem rosto que nos recusa, que não chega a ser à medida de nós. É um vento inclemente, sinal da ausência de vida, que não deixa nada no seu lugar. É também a marca de uma errância, de não ter um lugar, de percorrer sempre uma terra que nos é estranha, estrangeira – não enquanto hóspedes, convidados, mas enquanto alguém que é constantemente expulso, cujo conhecimento advém da errância sem lugar. Um exemplo particularmente pungente dessa errância é “Cantiga feita nos grandes campos de Roma”:
“Por estes campos sem fim,
Onde a vista assi se estende,
Que verei, triste de mi,
Pois ver-vos se me defende?
Todos estes campos cheos
São de saudade e pesar,
Que vem pera me matar
Debaixo de céus alheos.
Em terra estranha e em ar,
Mal sem meo e mal sem fim,
Dor que ninguém não entende,
Até quam longe se estende
O vosso poder em mi.”
A infinitude do espaço, a estranheza a tudo, é um eco, a forma como a dor e o desespero mortal criam as próprias coisas – como estas últimas nos olham a partir de um sofrimento sem nome.
Tudo isto, esta errância, este desespero que se deixa ler em todos os seus momentos, em que cada poema funciona como testemunho singular e único – são, neste sentido, fechados sobre si mesmos, tal como fechado sobre si mesmo é todo o sofrimento – é contrabalançado por uma intensa musicalidade, uma língua que a nós nos surge como estranha porque há muito que esta música se perdeu para a língua portuguesa. Um ritmo, uma musicalidade, capturada pela sobriedade e pela concisão de Sá de Miranda, como se este sofrimento que nos diz fosse, ao mesmo tempo, algo que corta constantemente a linguagem (fala-se soluçando, cheio de vazios e de brechas, sentindo-se o silêncio a abrir espaços, a esgotar a capacidade de falar), mas contivesse também ele uma melodia à sua medida.
Neste sentido, o que talvez se encontre nesta pequena antologia é uma diferença marcante relativamente a nós – mas todas estas palavras, “nós” ou “época”, são infinitamente problemáticas –, que já não temos ao nosso dispor aquela melodia inscrita na memória da língua que Sá de Miranda ajudou, em conjunto com outros, a criar. O nosso desespero, o sofrimento sem nome, não tem música nem melodia – nem mesmo, talvez, uma língua que o possa testemunhar.