Na semana passada, a Direção-Geral da Saúde (DGS) emitiu uma orientação que pretende uniformizar os cuidados hospitalares durante o trabalho de parto e clarificar o papel tanto dos enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica como dos médicos especialistas de obstetrícia e ginecologia. A partir de agora, esses enfermeiros especialistas irão assegurar os partos considerados normais (de baixo risco), enquanto os médicos obstetras só serão chamados a intervir em situações mais complexas, em que é necessário o uso de instrumentos. Por exemplo, em caso de cesariana, se forem gémeos ou se o bebé estiver em posição contrária à habitual.
Esta alteração consta de uma orientação da DGS, publicada na quarta-feira, que «oficializa uma prática levada a cabo por alguns hospitais» e pretende «tentar solucionar os problemas decorrentes da falta de obstetras, anestesistas e pediatras que agravam a pressão nas urgências obstétricas do Serviço Nacional de Saúde (SNS)».
A norma, assinada por Rui Portugal, subdiretor-geral da Saúde, resulta de uma proposta da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, liderada por Diogo Ayres de Campos, que «estuda soluções para a falta de médicos nesta especialidade».
Segundo o documento, «deve ser privilegiada a rentabilização dos recursos humanos e o desenvolvimento das competências de toda a equipa de saúde», sendo que «os principais objetivos a atingir são a promoção de cuidados de saúde de qualidade, com foco principal na segurança materno-fetal, bem como numa experiência positiva no parto para a grávida e para a família».
Recorde-se que, em 2022, vários serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia e bloco de partos de vários pontos do país tiveram de encerrar por determinados períodos ou funcionaram com limitações, devido à dificuldade dos hospitais em completar as escalas de serviço de médicos especialistas.
‘Ninguém é substituível’
Mas nem todos se encontram satisfeitos com esta «oficialização» e a Ordem dos Médicos vai mesmo pedir a revogação imediata da orientação da DGS. Segundo o bastonário Carlos Cortes, a Ordem «não teve conhecimento da versão final do documento». A DGS «nunca enviou o documento», acusou o responsável, o que, no seu entender, «configura um desrespeito institucional e revela uma atuação não cooperante numa matéria de grande relevância». Já a DGS garante que «todos os representantes e especialistas nomeados produziram e acompanharam o documento desde o início até ao fim dos trabalhos» e que a orientação «só foi publicada depois de validada por todos os elementos».
«O funcionamento de um bloco de partos para que existam bons resultados maternos e neonatais pressupõe a intervenção de um conjunto de elementos da equipa – enfermeiros generalistas, enfermeiros especialistas, obstetras, neonatologistas e anestesistas», defende a obstetra Filomena Nunes, do Departamento da Mulher do Hospital de Cascais. «Nenhum elemento é mais importante que os outros», sublinha, e os respetivos papéis na vigilância da grávida e do feto «não são substituíveis».
Para a especialista, o grande problema da orientação é que «não existe nenhuma forma de saber quais são as grávidas que vão ter complicações», ou seja, quando o baixo risco passa a alto risco. «Infelizmente a maioria das situações complicadas num bloco de partos surgem em situações de baixo risco», explica ao Nascer do SOL.
Na altura do internamento, quer a equipa médica, quer a de enfermagem, tem informação sobre a situação da grávida. «Se for previsível que possa existir alguma situação em relação ao recém nascido ou anestésica, esses profissionais também são avisados». Posteriormente e durante a vigilância materno fetal no bloco de partos, habitualmente, uma enfermeira especialista fica responsável por avaliar a grávida e observar com regularidade e em contínuo o CTG – exame complementar de diagnóstico não invasivo que tem como objetivo avaliar o bem-estar fetal. «Mas a equipa médica, normalmente acompanhada desta enfermeira, vai avaliar todas as grávidas em trabalho de parto sejam ou não de baixo risco, para em equipa multidisciplinar e na presença da grávida e do acompanhante, avaliar a situação», descreve. Filomena Nunes concorda com a uniformização e com a responsabilização dos profissionais. No entanto, considera que «não vai ser bom para o resultado final que, até determinada altura, e nas ditas situações de baixo risco, se restrinja o acesso a estas grávidas à equipa multidisciplinar e se determine que os únicos responsáveis por aquela grávida e feto são os enfermeiros especialistas».
Do ponto de vista médico legal, continua, «a responsabilidade é do profissional que vigiou a grávida». Por isso, à semelhança dos médicos, também os enfermeiros especialistas vão obrigatoriamente precisar de ter «um seguro de responsabilidade civil». «A decisão de considerar que o caso específico exige a intervenção de outros elementos da equipa não deve depender apenas de um elemento ou grupo profissional», avisa.
Segundo Filomena Nunes, a ideia de que a vigilância exclusiva por enfermeiras especialistas torna os partos menos interventivos e humanizados não é correta. No Hospital de Cascais, em 2022, 57 % dos partos foram normais (eutócicos) e a taxa de episiotomias foi menos de 5%, revela. «A decisão de realização de necessidade de episiotomia é da exclusiva responsabilidade de quem está a executar o parto, seja enfermeiro ou médico, seja parto normal ou instrumentado, após explicação à grávida de qual a razão para a realização excecional desta intervenção», prossegue. A obstetra frisa ainda que a falta de recursos humanos «não pode ser um entrave para a avaliação multidisciplinar». «Claro que a intervenção dos obstetras e neonatologistas será sempre menor nas situações de baixo risco. Os anestesistas em qualquer situação devem estar disponíveis para realizar a analgesia, quando solicitada pela grávida, mesmo nas situações de baixo risco, devendo nessa situação a grávida ser avaliada previamente pelo obstetra», reforça.
Enfermeiros satisfeitos
Joana Simões, enfermeira especialista desde 2016, que trabalha atualmente na maternidade Alfredo da Costa, não compreende toda a polémica que se tem gerado em torno deste documento. Diz que, na prática, esta situação «já é a realidade vivida nos nossos blocos de partos um pouco por todo o país, quando falamos do SNS». E remete para a sua experiência: «Na minha realidade, na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, onde a grande maioria da nossa população são grávidas patológicas, o trabalho em equipa tem mesmo de ser uma realidade constante. No entanto, quando falamos de grávidas de baixo risco, os únicos momentos em que dependemos da equipa médica é no processo informático de internamento e na alta, única e exclusivamente por questões informáticas».
Ainda assim, o documento tem, na opinião desta enfermeira, falhas técnico-científicas. Nomeadamente «orientações para a prática clínica que se encontram desatualizadas», onde as «referências bibliográficas apresentadas não refletem as indicações que nele constam», e que vão «contra as indicações mais recentes quer da OMS, quer dos diferentes documentos orientadores para a prática clínica».
Enfermeira parteira, Inês Martins Almeida tirou a sua especialização no Reino Unido, onde são os enfermeiros que acompanham partos de baixo risco há alguns anos. «Na verdade, em todos os partos, os médicos só lá vão se for preciso algum tipo de intervenção. O que as evidências dizem é que todos os partos de baixo risco devem mesmo ser acompanhados por enfermeiros especialistas, porque isto mantém o baixo risco. Os médicos estão mais formatados para o patológico e a nossa função enquanto enfermeiros é mesmo reconhecer qualquer desvio da norma, mas acompanhar o que está dentro da normalidade», explica.
Inês considera que a norma possui pontos positivos, negativos e outros questionáveis. Dos pontos positivos, destaca a prestação de cuidados por parte dos enfermeiros especialistas; a valorização do plano de parto; sem soro por rotina; a menção de medidas não farmacológicas de controlo da dor; incentivar a mobilização e adoção da posição escolhida pela grávida durante a fase ativa do segundo estádio; promoção pele com pele após o parto durante pelo menos uma hora; atrasar eventuais intervenções que poderão ser feitas depois deste período; o corte tardio do cordão e não remover o vernix – que atua como uma camada isoladora, ajudando o recém-nascido a lidar com a descida repentina de temperatura.
Entre os pontos negativos menciona cateterizar a veia por rotina sem indicação em situações de baixo risco; exames vaginais não devem ser realizados por rotina (não são exames obrigatórios e devem ser realizados mediante consentimento informado); a não progressão do trabalho de parto (TP) num intervalo estabelecido (8h) «que pressupõe que todas as mulheres devem dilatar dentro de um intervalo específico e isto não é taxativo nem linear (um TP estagnado depende de vários fatores e deve ser avaliado de forma holística)»; a restrição nos alimentos que a mulher pode ingerir «não está suportada pela evidência (durante o TP a mulher necessita de energia, que obtém através dos alimentos, e de estar hidratada)»; desinfeção vulvar, «sem evidência científica»; massagem perineal não é suportada por evidência durante o período expulsivo; realização de episiotomia para prevenir lacerações «é contra a evidência e as indicações da OMS (que não recomenda a realização de episiotomia)». Por fim, deixa uma interrogação: «A restrição da alimentação após o parto num parto de baixo risco a que propósito?».
Dos pontos questionáveis assinala: «O CTG contínuo não está indicado em partos de baixo risco, mas existe staff para auscultar frequentemente e garantir o bem estar fetal?», questiona. «Os estudos não são conclusivos quanto ao suporte do períneo durante o período expulsivo para prevenir lacerações», acrescenta.
«Penso que o foco nunca deverá deixar de ser os cuidados de saúde de qualidade, principalmente e acima de tudo, a segurança materno-fetal e a humanização do parto», defende Joana Simões, acreditando que isso «não se vai conseguir com ‘guerras’ de egos ou de competências entre médicos e enfermeiros». «Numa equipa multidisciplinar todos conhecem o seu papel e as suas competências. Ninguém tem por objetivo substituir o trabalho de ninguém, nem de querer ser mais ou melhor. Trabalhamos todos para um mesmo objetivo e esse deve ser sempre o foco», remata a enfermeira especializada.