Uma reportagem sobre um submarino da Segunda Guerra Mundial_afundado ao largo da costa portuguesa foi o detonador que levou Manfred Grebe, um alemão que chegou a Portugal em 1978 para trabalhar no Círculo de Leitores, a escrever uma história que andava há muito na sua cabeça. Pecados Passados (ed. Bertrand), o primeiro de cinco livros que têm a bonita comissária Kerstin Seeliger como protagonista, começa na Praia da Aguda e Ericeira, em abril de 1944, e avança até Hamburgo, 2016, quando o avô de Kerstin morre num acidente de automóvel suspeito. A investigação deste caso leva a comissária a viajar até Portugal, em busca de pistas que a ajudem a resolver o quebra-cabeças. E, como o autor do livro, apaixona-se pelo país e acaba por estabelecer-se aqui.
Qual é a origem deste livro? Como lhe ocorreu a ideia de contar esta história? Em 2016, a minha neta na Suíça teve que fazer um trabalho para a escola, uma espécie de árvore genealógica até aos avós, e um pequeno texto para cada uma das pessoas, com base num questionário. A última pergunta do questionário era o que a pessoa ainda gostava de fazer na sua vida. Eu respondi: ‘Escrever um livro’. Tinha uma vaga ideia de um romance policial que eventualmente fizesse uma conexão entre a Alemanha, o meu país natal, e Portugal, o meu país de adoção. Desde então fiquei com essa ideia na cabeça. Nesse mesmo ano rompi o tendão de aquiles e fiquei mais ou menos três meses imobilizado. E foi quando vi na televisão portuguesa uma reportagem sobre um submarino alemão afundado na Segunda Guerra Mundial.
Há um ao largo da Nazaré. Esta ideia eletrizou-me um pouco. Fui investigar na internet e encontrei um submarino que no dia 23 de Abril de 1944 tinha deixado as docas de Llorient, na Bretanha, e desaparecido. Nunca mais foi ouvido nada, não se sabia se tinha sido afundado… Desapareceu. E aqui pensei: ‘Imaginemos um submarino com uma encomenda muito especial, uma missão secreta’. Depois fui pesquisar as relações entre a Alemanha e Portugal durante a Segunda Guerra Mundial e descobri que Portugal era o fornecedor de volfrâmio, ou tungsténio, que era preciso para endurecer os canhões e todas as munições, e que os Aliados cortaram esta possibilidade em 43. E por que não um fornecimento clandestino? E assim começou a desenvolver-se a história, só tinha de encontrar as personagens e as acções que ligavam 1944 com a atualidade.
Uma das coisas que eu sempre me interroguei é como lidam os alemães com as suas responsabilidades na guerra. Para si, em particular, não é um assunto incómodo? São acontecimentos reais. Bergen-Belsen [campo de concentração na Baixa Saxónia] existiu. Os ingleses chegaram lá e…
Como aliás está descrito no seu livro. O médico principal existiu mesmo, a outra pessoa foi inventada por mim. O que vou fazer? Não posso desfazer a História, com tudo o que aconteceu. Tenho um relacionamento – como dizer? – realista com as coisas. Apenas espero que nunca mais se repita. Embora a humanidade não seja famosa a evitar desastres.
Tendo nascido em 1947, houve familiares seus envolvidos ou afetados diretamente pela Guerra? O meu pai foi soldado durante a guerra e estava do lado do Leste. Teve a sorte de meio ano antes ficar ferido e por isso acabou por ficar na França. Se não, não se sabe o que teria acontecido. O pai da minha mãe foi para um campo de concentração.
Era um dissidente? Não estava de acordo com o regime e não calava a boca.
O seu pai falava sobre esse período? Não, de maneira nenhuma. Embora o pai da minha esposa, que esteve também na Rússia, muitas vezes contava o que tinha vivido.
Participou na invasão da União Soviética? Sim, esteve numa zona do que é hoje a Lituânia. Contava alguns episódios, mas sem entrar em grandes pormenores.
E para si, como foi crescer na Alemanha do pós-guerra? Aqui temos a sensação de que o país estaria devastado. O que posso dizer? Eu nasci em 47. Dos primeiros dois ou três anos, não tenho grande memória. Depois, a Alemanha entrou nesta fase do assim chamado ‘milagre económico’. Nunca me faltou nada. Deste tempo, o que mais me ficou na memória é que eu sou de Kassel, que ficava a uns 20, 25 quilómetros da Cortina de Ferro. Em 1961 foi a construção do Muro em Berlim e depois toda esta faixa de fronteira entre a assim chamada Alemanha Democrática [de Leste] e a República Federal da Alemanha era uma zona de morte, com minas, torres de vigilância… Eu podia viajar para Tóquio ou Nova Iorque, mas não podia aproximar-me daquela faixa.
E recorda-se, por exemplo, da primeira vez que foi a Berlim? Ainda havia marcas da guerra? Havia marcas da guerra na cidade onde nasci, que foi muito bombardeada, porque tinha uma fábrica, a Henschel und Sohn, que fabricava tanques e coisas dessas. A cidade ficou praticamente destruída e a casa onde eu nasci também.
Também foi atingida? Sim. Eu não estava lá, porque só nasci em 47 e isto foi em 44/45. Mas lembro-me de uma coisa no 13 de agosto de 61, um dia de verão com muito calor. Acordo às cinco da manhã e ouço na rádio uma reportagem a dizer que em Berlim tinham começado a construir um muro. Isto tenho ainda na memória.
Estava na Alemanha quando o muro caiu? Nesse dia tivemos uma reunião do nosso grupo editorial em Munique. Depois fomos jantar ao restaurante Käfer e de repente alguém disse: ‘O muro está a cair’. Neste restaurante não havia televisões, mas o cozinheiro tinha uma pequena televisão. Dali a pouco, todo o restaurante estava na cozinha a ver o que estava a acontecer. E no dia seguinte, quando fui de carro para Kassel, encontrei as autoestradas cheias de ‘Trabis’.
O famoso Trabant [automóvel que era produzido na Alemanha de Leste]. Tinham passado para o outro lado. Sim, agora podiam passar e aproveitaram logo. Para comprar bananas.
Bananas? Sim. Parece que há anos que não havia bananas na República Democrática. Como não tinham divisas, não podiam importar. [risos]
O que é que o Manfred estudou? Economia.
Não tinha ainda a ver com livros nem com humanidades. Gostei sempre de livros, sempre li muito. Agora, a razão por que comecei a trabalhar com isso? Podia contar várias histórias. De início comecei por estudar desporto e matemática com a ideia de ser professor. No segundo semestre comecei a pensar seriamente na carreira de professor, tudo muito planificado… e, sem surpresa, disse: ‘Isto não é comigo’.
E foi para Economia. Economia e gestão.
O seu primeiro emprego foi logo na área dos livros? Trabalhei em várias coisas durante os estudos.
O que fazia? Distribuía jornais logo pela manhã. Havia um grossista que cada manhã reunia todos os jornais e revistas e os distribuía na sua zona a todos os pontos de venda. Eu começava às três da madrugada, das três às oito fazia isso e depois ia estudar.
Devia ir bem cansado para as aulas. Toda a minha vida dormi só quatro ou cinco horas. Ainda hoje, deito-me à meia-noite e o mais tardar entre as cinco e as cinco e meia acordo.
E quando terminou os estudos? Fui logo para a Bertelsmann [grande grupo de comunicação social alemão, que durante vários anos deteve o Círculo de Leitores e a rede de livrarias Bertrand].
O que fazia concretamente? Fazia o controlo e gestão dos clubes que existiam em todo o mundo.
Clubes de leitura? Clubes como o Círculo de Leitores. Existiam em toda a Europa e América Latina. Ao fim de um ano fui para a Argentina e ficámos lá, em princípio com a ideia de abrir um clube no Chile. Só que nesse ano a Argentina e o Chile começaram com disputas por causa de um território na Terra do Fogo, no Sul, onde havia petróleo. E fecharam as fronteiras. E então o conceito de produzir [livros] em Buenos Aires e transportar para o Chile morreu. Nessa altura também havia um problema aqui em Portugal, depois do 25 de Abril, meses de greve, etc., etc., e perguntaram-me se eu estaria interessado em vir a Portugal. Eu e a minha esposa, ainda estudantes, em 71 tínhamos feito uma viagem por França, Espanha, Portugal, e foi amor à primeira vista, pelas pessoas que encontrámos, pelo que vivemos aqui nessa semana entre o Norte e o Sul. E não precisámos nem de um minuto para pensar. E assim cheguei a Portugal.
Nem hesitaram, portanto. Isso em que ano? Em 78. Ficámos cinco anos em Portugal, e em 83 fomos para o México.
Não foi difícil aprender a língua? Logo na minha chegada a Portugal em 1978 tirei um curso intensivo de português, oito horas individuais por dia, durante três semanas. Sendo o único estrangeiro na empresa (Círculo de Leitores), recusei-me a falar outra língua. Há algumas anedotas divertidas das asneiras que cometi nessa altura… Mas não foi difícil, graças à minha motivação, e porque só ouvia e falava português.
Foi para o México fazer o mesmo que tinha estado a fazer na Argentina e aqui? Sim, um clube de livros. O conceito era o mesmo que na Alemanha.
Não conheço o México, mas a ideia que tenho é que é uma cultura completamente diferente da alemã. São latinos.
E como é que se deu com isso? São latinos mas também gostam de ler. O segredo é criar a ocasião de comprar livros e de leitura. E com o sistema que tínhamos, com estes agentes que visitam os sócios e entregam catálogos, levantam os pedidos e tudo isso, com este contacto direto, estava a funcionar. Só que no México a situação nestes anos não foi nada pacífica. Em 85 há um grande terramoto na Cidade do México, com muitos milhares de mortos, e a seguir uma inflação que subiu a mil por cento. As importações de livros praticamente morreram.
Estava lá quando foi o terramoto? Sim.
Como foi? Terrível. Foi a 16 de setembro de 85, às sete da manhã.
Então já estava acordado… Estava sozinho no escritório. Estou a trabalhar e de repente começo a ouvir as janelas de um armário a vibrar. ‘Mas a mulher da limpeza já passou por aqui…’ Olho para lá, e nada. Vou à janela e vejo os candeeiros na rua a balançar e logo a seguir o chão a mover-se. E pensei: ‘O que é que vou fazer? Vou para debaixo da mesa?’ E meti-me na porta…
Na ombreira da porta. A observar. O edifício movimentou-se de tal maneira que algumas portas, embora estivessem fechadas, se abriram. Demorou três minutos.
Três minutos?! Uma eternidade. Depois telefonei logo para casa. Os filhos já estavam a caminho da escola e disse à minha mulher para ir buscá-los. Meia hora depois já não havia telecomunicações, porque o edifício das telecomunicações ardeu.
E depois veio a inflação. Uma inflação altíssima e mais uma coisa: mantiveram artificialmente o câmbio. Isto dava azo a deturpações incríveis.
Mas também devia haver ao mesmo tempo quem ganhasse dinheiro com isso. Logicamente. Com esta inflação o meu ordenado no México subiu muito, e como o câmbio durante um ano, um ano e meio, quase não mudou, houve gente na Alemanha que começou a queixar-se: ‘Este gajo está a ganhar muito!’. [risos]
Nesse período ia também conhecendo autores? Sim, no México tínhamos contacto com o Octavio Paz, editámos um livro dele, e com vários outros.
Era um grande poeta. E como pessoa? Era uma pessoa um pouco seca. Também conheci o Jorge Amado, que visitámos no Brasil. Diria que estavam nos antípodas.
Houve outros autores que o marcassem? Trabalhei muito tempo em Espanha. Conheço e tive contactos com quase todos.
Quero dizer alguns nomes? O nosso amigo dos Cem Anos de Solidão, o García Márquez, o Alberto Vázquez-Figueroa, com quem tive uma relação um pouco mais pessoal. E o José Saramago aqui em Portugal. Quando lançámos as comemorações do 10.º aniversário do Círculo, encomendámos um livro. Eu tinha a ideia de fazer um livro sobre Portugal, mas não um guia turístico. Mais ou menos um guia de um português que viaja pelo país. O diretor editorial estava com dúvidas e finalmente chegou um dia e disse: ‘Bem, eu conheço uma pessoa que eventualmente pode fazer isso…. mas é comunista’. ‘E então?’. Tivemos um almoço com Saramago num restaurante na praia, expliquei a ideia, e finalmente ele aceitou.
Então o Viagem a Portugal partiu de uma ideia sua? Pois. Foi em 80 que fiz isso e o livro foi publicado em 81, quando o Círculo fez dez anos.
Quando é que decidiu ficar definitivamente em Portugal? Logo em 78 comprámos uma pequena quinta aqui na zona de Colares, que mantivemos sempre. E chegou um momento em que os filhos, que nos acompanharam sempre nas nossas viagens, disseram: ‘Estamos fartos. Queremos depois das férias encontrar os mesmos amigos que tínhamos antes e não vamos viajar mais’. Foram para um convento de beneditinos na Suíça os dois, e ficaram lá a estudar num colégio interno. Desde aí, praticamente só nos víamos nas férias e por isso nunca mais pudemos viajar: nas férias queríamos estar em casa, e a casa era aqui em Portugal. E voilà. Mantivemos a casa, esteve alugada durante algum tempo enquanto estávamos no estrangeiro, mas voltámos sempre e quando cheguei à reforma, ficámos totalmente aqui. Só que a casa, para duas pessoas, era demasiado. Então vendemos a quinta e em 2014 mudámo-nos para um apartamento.
Mantém ligação à Alemanha ou cortou os laços? Já não tenho família na Alemanha. Os meus pais morreram, eu era filho único, e os da minha esposa também. Tenho amigos ainda do colégio em Kassel, e não só. Uma ou duas vezes por ano, quando posso, visito-os. Mas é tudo. E não me faz falta.
Mas não renegou as suas raízes alemãs… Não. Simplesmente sinto-me melhor aqui.
E do que gosta mais e menos em Portugal? É uma pergunta difícil de responder, porque cada país, cada região, tem os seus encantos… Mas o facto de estar a viver aqui é um sinal de que, para mim, Portugal não tem muitos pontos negativos.
Sendo alemão, não lhe faz confusão a desorganização, a falta de pontualidade? Com as pessoas com quem trabalhei aqui no Círculo, a pontualidade nunca foi um problema. E a organização também não. Pelo contrário, os meus primeiros cinco anos aqui foram, eventualmente, os anos mais felizes da minha carreira profissional. Porque havia um certo entendimento e fizemos coisas realmente muito boas. Não posso queixar-me de desorganização.