O desgaste dos últimos tempos é visível no seu rosto. Mas o humor, a gargalhada aberta e a emoção que transborda no seu olhar quando fala de Deus são desconcertantes. Quem não acredita, não muda de ideias mas respeita. Nasceu na Madeira em berço humilde, em 1954, firmou o espírito missionário na Zambézia e doutorou-se em ciências bíblicas na Alemanha onde se cruzou com os bispos eslavos que propõem um novo rumo para a Igreja. Considera que há homens que sofreram mais do que Cristo, como Luther King e Nelson Mandela, que esteve quase três décadas preso e, uma vez livre, não procurou vingança tal como fizeram os apóstolos seguindo as indicações de Jesus Cristo.
Há cada vez mais portugueses a passarem dificuldades, fruto da inflação, da subida dos créditos à habitação e do desemprego. Não acha que a voz da Igreja tem sido pouco ativa nesta matéria?
Tem razão quando diz que devíamos ter uma estratégia mais proativa. Mas nós temos querido estar ativamente no terreno a responder aos problemas concretos que são muitos. Quando fui nomeado bispo de Setúbal, estava o país muito debilitado e a sair da grande crise que levou à intervenção da troika. As coisas melhoraram um pouquinho, mas entrou um inimigo maior: a pandemia. Eu costumava reunir-me com os meus antecessores, D. Manuel Martins e D. Gilberto de Canavarro.
O primeiro, mais conhecido por bispo Vermelho, sempre foi muito interventivo.
Sim, e bem. Um dia disse-me: «D. José, andamos muito caladinhos!». Mas o que se vai fazendo ao nível das paróquias não dá notícia. A intervenção mais pública depende do espaço que a Comunicação Social dá. Mas houve uma boa cobertura do trabalho da Cáritas que está presente em todo o país. Durante a pandemia, distribuíram vales alimentares no valor de 80 euros cada, cerca de 160 mil euros em apoios pontuais como o pagamento de rendas de habitação. Na pandemia, trabalhámos muito com as autarquias e foram muito interessantes as sinergias com o poder político local e com a Segurança Social. Duplicámos, a nível nacional, os apoios a milhares e milhares de pessoas que encontraram nas instituições da Igreja o essencial para superar a crise e isso ainda continua. Antes com o problema da alimentação, agora com o problema da habitação. Nós temos consciência do papel que a Igreja desempenha em tantas famílias. Quando pedimos ao Estado que assuma mais responsabilidade neste domínio é porque temos consciência de que é necessário e que há o risco de muitas destas instituições colapsarem. Por exemplo, nos apoios à terceira idade, à infância, à deficiência, o que o Estado dá não chega a metade do custo real que significa apoiar estas pessoas. O resto é suportado pelas reformas que as pessoas têm segundo a capitação familiar (e as pessoas que nós servimos têm, na sua maioria, remunerações muito baixas). Isso significa que temos de recorrer a outras fontes de receita para atender às necessidades. A procura de apoio junto das instituições da Igreja é a maior de sempre.
Temos ainda o problema da habitação, com rendas pornográficas. Acredita nesta espécie de nacionalização das casas devolutas proposta pelo Governo?
Não creio que seja isso que vai resolver a questão. Mas dou-lhe um exemplo. O Governo, há uns tempos, pediu-nos apoio relativamente a habitação para estudantes. Depois de um acordo muito claro com o Instituto Politécnico de Leiria (IPL), começámos a ver que casa é que tínhamos disponível para isso e encontrou-se. No entanto, está tudo parado no Ministério das Finanças. Nós não pedíamos nada de especial, a não ser que os estudantes pagassem o mesmo que nos lares do Instituto Politécnico mas o Governo veio dizer que não faz contratos a longo prazo. Quer dizer, íamos fazer a transformação do edifício, investir e, passados três ou quatro anos, vinham dizer-nos que o contrato chegava ao fim e ficávamos com ‘o menino’ na mão e a despesa feita. O Estado não pode pedir às instituições e às comunidades para disponibilizarem património sem um sistema que dê segurança aos investimentos que se fazem. Não seremos parceiros para gente que nos utiliza e mais tarde deita fora.
Na sua atual diocese, Leiria-Fátima, sente-se muito este problema?
Neste momento, são os pedidos de ajuda mais frequentes. Ou para alugar ou para fazer face aos compromissos assumidos. Não há habitação e a que há é muito cara. Muitas vezes, as pessoas encontram-se a viver amontoadas, sem condições, exploradas no preço que lhes pedem, vivendo de forma desumana. Isto devia ser muito mais fiscalizado por quem de direito. É uma das minhas grandes preocupações, sobretudo agora quando começam a chegar muitos imigrantes, o que é um fenómeno recente nesta zona do país. Nós precisamos dos imigrantes (penso que isso é um sentimento transversal e universal, todos os cidadãos conscientes percebem; só não entendem aqueles que se montam em ideologias que nos querem fechar e tratam os imigrantes como fossem um mal para o país). O nosso país não sobreviveria sem imigrantes e temos leis propícias para fazer chegar imigrantes, mas depois não há uma política consequente para os integrar.
Neste contexto, como recebe notícias como as da última semana sobre o aumento em flecha dos lucros da banca? Por exemplo, a CGD, o banco público, que está a bater recordes, quase 300 milhões no 1º trimestre deste ano).
Parte desses lucros da banca foi gerada por um comportamento inaceitável da subida de taxas de juro, que veio diminuir de forma efetiva o rendimento disponível das famílias. Contudo, a subida das taxas de juro não se reflete na melhoria dos depósitos dos clientes. Em consequência, a margem que é retida pelos bancos cresceu de forma exponencial, pela diferença enorme que há entre as taxas que os bancos recebem pelos empréstimos e as que pagam a quem lá coloca as suas poupanças. A grande injustiça está aí: quem ganha com a subida dos juros são os bancos e isso não se refletiu na rentabilidade dos depósitos para fazer com que a economia funcione verdadeiramente. Assim não se pode ter uma economia a funcionar de forma saudável e virada para os interesses dos cidadãos e do bem comum. Há um desajuste que os reguladores deviam corrigir, mas até agora não o quiseram fazer…
Quando nasceu, em 1954, os problemas dos seus pais deviam ser de outra natureza. Aliás, nessa altura as pessoas não se fiavam nos bancos, preferiam guardar o dinheiro debaixo do colchão.
O meu pai não tinha a 4.ª classe, não sabia ler nem escrever, mas sabia muito bem fazer contas. Foi habituado a organizar bem a sua vida. E começou cedo a trabalhar. Vendeu tremoços, trabalhou numa fábrica de massas…
A agricultura foi mais tarde?
Quando ele casou, foi trabalhar para a benfeitoria do pai. Na Madeira havia a Colónia, um regime de exploração da terra em que o senhorio cedia parte da terra ao colono e em troca recebia metade da produção. Isto era assim em quase toda a ilha, mas, no Porto da Cruz, onde nasci, a terra era vendida ao agricultor quase pelo mesmo preço do que o senhorio tinha dado por ela. E o agricultor ainda a tinha de desbravar, construir paredes, fazer os palheiros, os sistemas de rega. E isto foi-se perpetuando. Uma espécie de trabalhadores da gleba. Um dia, o meu pai estava nas divisões da produção e sobrou uma laranja. Quis partir ao meio para dar a parte do senhorio, mas ele disse-lhe: «Deixe lá isso, dê aos seus filhos». E ele, depois do outro muito insistir, descascou-a à sua frente e deu-nos. Ali, só podíamos comer as laranjas que caíam no chão. E rezávamos para que chovesse e fizesse vento para abanar as árvores.
Nessa época, as crianças começavam a trabalhar ainda de cueiros. Imagino que tenha sido assim consigo.
Claro! Dos sete aos dez anos, descalço, fazia dois quilómetros até Porto da Cruz para vender o leite na vila. Vivíamos numa encosta, era quase uma hora a pé (e porque eu andava bem…). Depois, ia para a escola, no regresso a casa comia e ia trabalhar para a fazenda.
O que fazia?
Abria regos na terra para passar a água da rega, plantava batatas, fazia o que houvesse para fazer. Toda a família trabalhava. E quando havia bebés, eram postos no cestinho e iam para a fazenda com todos. Só se brincava ao domingo.
O que faziam?
Não tínhamos brinquedos. Numa ocasião, uma tia ofereceu-me um avião e um autocarro. Mas como ela tinha trabalhado na casa de uns senhores ricos e os brinquedos dos filhos, que já eram adultos, estavam guardados, ela fez o mesmo aos meus para não os estragar. A ideia dela devia ser para eu me extasiar diante deles quando fosse adulto… Portanto, nós fazíamos os nossos brinquedos. Fazíamos carrinhos com laranjas verdes que caíam das árvores, jogávamos à paulada…
Ainda não tinha aprendido a dar a outra face…
(risos) No Natal é que recebíamos presentes: calções e camisas que a minha mãe costurava. E ainda me lembro do dia em que me fez umas calças compridas com bolsos. Eram os nossos presentes de Natal e eram preciosos.
Aos 10 anos, vai para o seminário do Funchal. Foi por vocação ou, como acontecia muitas vezes, a única forma de os seus pais lhe darem estudos?
Não. O meu pai, como já lhe disse, sabia muito bem fazer contas, foi sempre muito organizado e conseguiu dar estudos aos filhos todos. Havia entre nós um sentido de solidariedade muito grande. Ser lenhador foi a primeira coisa que quis ser. Quando estava na escola, via miúdos a subir à serra para cortar lenha e isso inspirou-me. A serra era tão linda. Depois quis ser carpinteiro e a seguir padre. Mas quis ser padre com a mentalidade de uma criança que tinha dez anos: imaginava que ia fazer sermões, fazer coisas assim. Também tinha lá os meus dois irmãos! Mas houve uma coisa que me marcou muito: os livros. A biblioteca estava bem recheada e eu lia muito. Nas férias, não ia a casa. Estava no Funchal e não havia dinheiro para viagens (éramos logo três…). Mas, nessa altura do ano, passava por lá a biblioteca itinerante da Gulbenkian e eu devorava livros durante as férias.
Que tipo de livros?
Tudo. Aventuras, romances… Havia uma secção chamada Além-mar, com revistas missionárias, e eu lia a vida daqueles homens como se fosse um filme do Spielberg, do género Os Salteadores da Arca Perdida (risos). Gostava muito de ler a vida dos missionários. Nessa secção, havia uma vinheta onde se via um missionário a escrever numa mesa tosca e, atrás, via-se uma porta aberta, um chapéu colonial e uma espingarda. Acho que aquela espingarda fez-me mais missionário do que todos os sermões que ouvi. Para um adolescente, aquilo misturava tudo: a beleza das coisas, o desejo de ver países novos… era aventura.
Isso não era lá muito católico! Veio depois para Coimbra. Um espaço completamente diferente. A faculdade fervilhava a seguir ao Maio de 1968: os jovens exigiam o fim da guerra, proclamava-se o amor livre e os padres progressistas também queriam a queda do regime. Esses ecos chegavam ao seminário?
Nessa altura, eu tinha 17 anos. Essa descoberta e a necessidade de lutar por um mundo justo e melhor surge três anos depois, já em Lisboa. Naquela época, ainda estava convencido de que éramos os melhores do mundo e que o Salazar era um santinho. Mas o primeiro abanão surge com um dos meus irmãos que estava a combater na Guiné. Um dia, mandei-lhe um aerograma onde escrevi que estava muito orgulhoso por ele estar a defender a pátria. Respondeu-me em poucas palavras: «Pensava que já tinhas crescido».
Percebeu o recado?
Não. (risos) Um ano depois, talvez, visitou-me em Coimbra e voltou ao assunto: «Olha lá, essa história de eu andar a combater pela pátria, sabes que se eu fosse guineense, neste momento, estava lá a combater contra os portugueses». Foi um coice. Ainda andava com a cabeça cheia de romances de cavalaria e de alta traição… Mas se era o mano que dizia, e eu gostava muito dele, é porque tinha razão. De repente, comecei a ver as coisas de outra forma e perguntava para comigo: «Mas porque é que esta gente se arrogou o direito de mandar em nós? De onde vem esta cegueira?». E olhe que os meus educadores eram quase todos italianos, tinham chegado no pós-guerra, não apoiavam nada o regime, mas eram discretos. Ainda me lembro de um deles, contar a rir que por altura de umas eleições foram ao seminário entregar uns envelopes com o boletim de votos. Nem precisavam de ir à urna. Era na altura em que até os mortos votavam. Claro que eles atiraram os envelopes ao lixo. A partir daí, percebi que era preciso lutar por um país melhor de que isso.
Mas disse há pouco que só quando foi para Lisboa é que tomou consciência de que vivíamos numa ditadura.
Aí, foram tempos de intervenção, tudo estava em movimento. Eu tinha acabado o liceu e o noviciado em Coimbra e vim fazer Teologia na Universidade Católica. Um dos nossos professores era o Frei Bento Domingues, que tinha sido obrigado a sair do país por falar contra a guerra colonial e por dizer numa missa que era preciso derrubar o Governo. Depois voltou do exílio, ainda foi ouvido pela PIDE (de quem nos falava mal, dizendo que era gente de curta inteligência). Nós tínhamos missionários em Moçambique e foi através deles que soubemos do massacre de civis feitos pelas tropas portuguesas em Wiriyamu. Um horror. O Zeca Afonso também ia cantar ao nosso seminário em Alfragide. Ainda me lembro de o ouvir numa das suas canções, A Formiga no Carreiro: «Mudem de rumo, mudem de rumo, já lá vem outro carreiro».
Tinham-me dito que não cantava nada e de fato é verdade!
(Risos) Eu gosto de cantar, o povo é que não gosta de me ouvir! Também ouvia o Fanhais, a cantar o poema da Sophia de Mello Breyner: «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…». Mas o Zeca, do ponto de vista artístico, era o cantor que melhor encarnava o nosso sonho de um mundo melhor.
E ações concretas?
Éramos estudantes, não podíamos fazer grande coisa, mas, à volta do seminário, entre o bairro da Boavista e a CRIL, havia uma zona só de barracas, onde estavam sobretudo trabalhadores que vinham do Norte do país. Então, com outros seminaristas e rapazes e raparigas da zona, fiz uma escola. Aliás, já estava feita: era um antigo barracão de carvão. À noite dávamos aulas aos trabalhadores para eles conseguirem fazer a 4.ª classe. Utilizávamos um método proibido que tinha sido pensado pelo educador e filósofo brasileiro Paulo Freire, que esteve preso durante a ditadura militar brasileira. Era uma proposta para alfabetização de adultos que levava a uma aprendizagem mais rápida, mas era também um método de consciencialização política.
E a Polícia do Estado nunca vos chateou?
Não nos apanharam! Mas eles estavam por todo o lado. Por exemplo, na Católica, tínhamos um colega que era oficial. Simpático, fazia-nos as fotocópias. Após o 25 de Abril, contou-me que estava lá só para vigiar as conversas de professores e alunos.
Portanto, o 25 de Abril foi uma festa.
Claro. Essas férias na Madeira foram uma alegria. Eu estava de partida para uma missão em Moçambique e fui-me despedir da família. A situação das benfeitorias estava igual – era uma exploração, uma escravatura. A vinha nesse ano tinha dado muito pouco, mas o meu pai queria cumprir com a senhoria e eu perguntei-lhe: «Quantos dias o pai trabalhou na vinha, quantos homens trouxe para trabalhar consigo?». Feitas as contas, não dava para pagar nem aos trabalhadores nem a ele. E eu avisei que, se teimasse em pagar metade ao senhorio, a despesa sairia do seu próprio bolso. Depois, começou-se a discutir pagar apenas um terço – e aí um primo disse que nunca tinha roubado e não era agora que ia começar. Porque era isso que a Igreja pregava: não roubar, nem aldrabar o senhorio! Aliás, o nosso senhorio foi dizer ao meu pai que eu era comunista e que se o comunismo chegasse à Madeira iam matar os padres todos.
O discurso de comer as criancinhas ao pequeno-almoço.
(risos) E o meu pai respondeu-lhe que, se ele continuasse a falar daquela maneira do filho, então, antes de os comunistas lá chegarem, já ele estava feito em rodelas. Fiquei tão orgulhoso, o meu pai subiu tanto nesse dia! Depois as coisas mudaram, os senhorios lá aceitaram receber apenas um terço dos produtos. E o Governo Regional fez logo um trabalho notável: fixou um preço para a terra para não haver exploração e dava créditos a quem precisava para a adquirir. Lembro-me bem da emoção das pessoas, depois de terem assinado o contrato de compra, ao porem os pés na sua terra.
Estava com 20. Nunca vacilou na sua fé? Nunca namorou, por exemplo?
Claro que vacilei, quem não tem dúvidas não cresce. Nunca tive um namoro sério e não foi porque não se proporcionou. Encontrei pessoas que sei que teriam sido boas parceiras de vida. Uma vez, uma dessas pessoas disse-me: «Tu tens medo que eu seja uma tentação para ti». Respondi-lhe que ela não era uma tentação para mim, mas que cada um de nós tinha de seguir o seu caminho. Não era fácil falar destas coisas! Mas sempre procurei ser honesto e não dar esperanças a alguém quando nunca seria uma coisa séria. Não se brinca com o namoro. Agora, dúvidas nesse sentido há sempre. Por exemplo, quando em agosto de 1974 fui para Moçambique, desabafei aos meus pais: «Eu vou e volto, ou para fazer os votos ou para mudar de vida».
Vai para Moçambique numa altura complicada: os portugueses já estavam a voltar e o resultado da independência que aconteceria no ano seguinte era uma incógnita.
Nessa altura, já havia por lá desacatos. O outro meu irmão padre telefonou ao provincial a dizer que eu não podia sair, que a congregação não podia fazer isso. Tanto que o provincial até nos fez assinar uma carta em que dizíamos que partíamos de livre vontade. Era eu e um grande amigo que ainda está em Moçambique, o padre Adérito Barbosa. Mas eu senti que aquele era o momento. Lá, tínhamos um tipo de Igreja que para mim ficou sempre como modelo. Hoje, fala-se de uma Igreja sinodal – e foi o que eu vivi na Alta Zambézia, no meio do mato. Era uma igreja onde todos tinham o seu lugar e a sua missão. Havia lá também uma comunidade de irmãs e fazíamos tudo em conjunto (comíamos, rezávamos…). As irmãs eram tão importantes como os padres, só não rezavam missa e não confessavam: elas batizavam e faziam tudo. Nas missões, é sempre assim ou então não funciona. E essa foi a Igreja que eu vi e vivi, que continua presente.
É uma Igreja diferente da tradicional?
A Igreja tradicional tem séculos de história e isso também pode ser um laço, mas ainda se centra muito em torno do padre. Estar em missão significa uma Igreja que não se centra sobre si própria. Quando penso numa igreja tradicional, vejo-a quase como uma ‘estação de serviço’ onde as pessoas se vão abastecer ao fim de semana: há um indivíduo que sabe tudo, ‘bota discurso’ e os outros ouvem. A Igreja missionária não pode ser assim. Porque vai-se organizando a partir daqueles que vão aderindo, com vida e espírito, e eles próprios vão abrindo um novo caminho. Em Moçambique, tínhamos um ritual novo para o batismo que dura a noite toda. Porque as pessoas de lá dizem que é assim na cultura deles. Dizem que na sua cultura fazem ritos e que os percebem. E, de facto, há certas coisas que não dispensamos na nossa vida. O que é um aniversário a não ser um rito? E de algum jeito tem de se mostrar que há um aniversário. Isso tem a sua ritualidade. Também a fé tem a sua ritualidade, uma ritualidade comum.
Disseram-me que, enquanto lá esteve, era tão bom caçador como cantor.
(risos) Nós éramos da sociedade protetora dos animais… Uma vez fui com o padre Adérito e um padre italiano caçar. Levávamos uma caçadeira e uma arma melhor, com balas de expansão, que era para matar animais de grande porte, como o leão. Não apanhámos nada, estávamos quase a chegar a casa e o padre italiano viu um coelho e fez alvo – mas a arma explodiu! Noutra vez, fomos com uns catequistas e ainda bem que não apareceram javalis, que são animais muito perigosos, sobretudo quando estão feridos. Mas encontrámos uma impala linda. Estava deitada a descansar. Os catequistas diziam: «Metam-lhes chumbo, deitem-lhes chumbo, de que é que estão à espera?». Entretanto, o animal levantou-se e foi à sua vida de cabeça erguida.
Mas, como qualquer caçador, era batoteiro e não gostava de perder nem a tostões. Uma vez foi caçar e não apanhou nada. Quando, à noite, regressou matou três coelhos da vossa coelheira e colocou-os em cima da mesa da cozinha.
Não é verdade, não é verdade, isso foi obra comum (risos).
E, pelos vistos, também era ótimo condutor!
A Felícia sabe tudo, não se pode ter confiança nos padres! Isso foi logo quando cheguei. Era inexperiente. Na véspera, o superior tinha-me dado a primeira lição de condução num Land Rover muito velhinho que havia para lá. O jipe não tinha motor de arranque, nem travão de mão. Portanto, tinha de parar numa descida que era para depois pegar e engatá-lo de marcha atrás. Era sábado, os padres tinham saído, e eu fui ao carro fazer um treino. (risos) Quando saí, pensei que tinha deixado aquilo engatado. Fui para casa e de repente chamam por mim. Ainda cheguei a tempo de o ver descer, fazer uma guinada para a direita e aterrar em cima do teto de uma moagem (o que é uma coisa inestética num Land Rover…). Quando os superiores voltaram e viram aquilo, disseram logo que o melhor era mandar-me tirar a carta antes que desse cabo dos carros todos.
Como viveu a independência?
Com muito entusiasmo. Mas depois as coisas degeneraram e o clima foi-se adensando, até estalar a guerra civil. Assistimos à chegada dos primeiros guerrilheiros e ainda estive numa base deles. Eu estava convencido que, vindo a Frelimo da Tanzânia, ia trazer o espírito da Ujamaa, uma ideologia socialista que formou a base das políticas de desenvolvimento social e económico de Julius Nyerere. Mas não. Humanamente, foi um período muito difícil. Houve religiosos que enlouqueceram. Depois, nacionalizaram as casas e os padres e as irmãs tiveram de fazer cabanas e foram viver para lá. Eu nessa altura já lá não estava, mas havia um ataque cerrado aos padres e à Igreja e muitos não aguentaram e enlouqueceram. Todos os dias se falava mal da religião e contra os padres. Nacionalizaram as missões, os carros e até as galinhas e os coelhos. E o povo vinha oferecer-nos galinhas. Vivíamos num nervoso constante. À noite, jogávamos às cartas, que era uma forma de aliviar a pressão. Mas aqueles que viviam sozinhos, muitos entraram numa séria depressão. E política foi: quem não aguenta, vai embora. Houve uma irmã, enfermeira, com uns 70 anos, que um dia estava a fazer a consulta das mulheres e um dos soldados entrou. Ela meteu-o na rua e ele apontou-lhe a arma. Teve de vir para Portugal. Havia gente constantemente a ser levada para os campos de concentração. Um padre nosso, o Marchesini, que estava em Mocuba e era um excelente médico, quando os autocarros passavam apinhados com pessoas, ia vê-los, dizia aos soldados que estavam muito doentes. Levava-os para o hospital e dava-lhes baixa. Salvou muita gente.
Disse que, quando se deram as nacionalizações, já lá não estava. O que aconteceu?
Eu e o padre Adérito tínhamos ido apenas por dois anos. No verão de 1975, tínhamos de voltar às aulas na Católica.
Um período complicado para voltar a Portugal, havia a ponte aérea…
Era impossível sair por Maputo, não havia aviões, e decidimos sair pelo Malawi. Passámos pela missão dos Capuchinhos, em Mucuba, onde também vivia Maquesini. Aí, ele disse-nos que não podíamos levar dinheiro porque dois capuchinhos tinham sido presos na véspera.
Levavam dinheiro?
Sim, mas o argumento não foi esse. Eles iam para uma reunião de missionários na Tanzânia e levavam medalhões dos muenes, os régulos do norte da Zambeze. Consideravam que eles estavam defraudando o património cultural moçambicano. Na verdade, um catequista tinha-os avisado que os padres levavam dólares escondidos no filtro do motor e eles acabaram por descobrir.
O D. José Ornelas também levava?
Eu e o padre Adérito levávamos 200 dólares. Mas eu é que os escondi numa bolsa da TAP que tinha umas alças. Mas Makisini disse logo que nem pensar.
Ouvi dizer que a passagem da fronteira não foi fácil. Teve de cantar.
(risos) Eles acabaram por nos querer prender por ataque à modéstia e aos bons costumes: eu porque levava calças à boca-de-sino e lá era proibido, o padre Adérito porque tinha o cabelo comprido e a irmã que ia connosco porque tinha a saia curta. Comigo foi fácil, porque mudei de calças, e a irmã colocou a capulana à volta da cintura. O pior era o padre Adérito que não queria cortar o cabelo. Mas às tantas, entrou tudo na brincadeira e eu, que levava uma viola (que não sabia tocar), lá passei os dedos pelas cordas e cantei o Bailinho da Madeira.
Recuperando o que disse, sobre uma Igreja missionária que tem lugar para todos, e a sua própria experiência comunitária, como vê o caminho traçado pela Conferência Episcopal alemã, que aprovou o acesso das mulheres ao diaconato, o fim do celibato obrigatório e a instituição da bênção para casais homossexuais e para casados divorciados?
A bênção de Deus é para todos, porque Deus não castiga. Eu não vou excluir ninguém só porque tem uma sexualidade diferente.
O que acho importante neste momento para a Igreja é encontrar caminhos novos para realidades novas, mas nem todos são obrigados a seguir a mesma norma. Na minha cabeça há, sobretudo, a questão cultural.
Quer dizer que temos de esperar pela evolução da mentalidade dos católicos…
Estou a dizer mais. Isto não pode ser apenas decidido por uma Conferência Episcopal, tem de ser aceite por todos. Por exemplo, a questão dos padres casados: não é permitida na Igreja latina, mas nós temos entre nós padres casados que são padres católicos e isso é aceite pela Igreja Católica. No rito latino temos uma norma disciplinar. Ainda há dias o Papa voltou a dizer isso.
A Igreja não pode continuar a ser uma polícia de costumes. No seu interior, há padres que têm filhos e padres homossexuais. Então, porque é que os homossexuais não podem escolher a vida religiosa?
Poder, podem. Conheço padres homossexuais que são excelentes padres. O Papa diz que um homossexual não vai ser excluído por isso. Agora, para ser padre, tem de se levar esta vida com coerência. Eu sou heterossexual e não ando ‘a atirar-me’ aí, à direita e à esquerda. Se ler o Evangelho, percebe que Jesus fala muito pouco de pecado. Até porque veio pelos mais frágeis. Conheço padres homossexuais que são excelentes padres.
A questão do diaconato das mulheres é plausível? Como especialista em ciências bíblicas, deve ter presente o texto em que S. Paulo falou de umas senhoras diaconisas, mulheres muito respeitadas, que nos primeiros séculos do Cristianismo estavam oficialmente encarregadas de certas funções, em auxílio dos ministros do culto, como o batizado de mulheres, por exemplo. Como relaciona esse texto bíblico com os novos tempos?
A Igreja, depois da vinda do Espírito Santo, de Pentecostes e dos discípulos, começou a dar conhecimento do Evangelho, recebeu muita gente que queria aderir ao sonho de mundo da comunidade de Jesus. A comunidade cresceu e não havia mãos para tudo. Então, os discípulos criaram um grupo de gente, chamados diáconos. Entraram judeus e judeus de linha grega, mais avançados. A diferença cultural é muito grande. Paulo, por exemplo, era criticado por ter uma mulher na sua companhia. E ele disse: «Mas então os apóstolos não podem ter também as suas mulheres?». E aquela senhora não era a sua mulher. Fala numa diaconisa, mas fala também de uma apostola, que obviamente não pertencia ao grupo dos 12 (tal como Paulo também não). Na sua perspetiva – e Paulo não é propriamente um feminista, mas também não é como o pintam –, essa apostola tinha autoridade.
D. José Ornelas, nos sonhos daquele jovem madeirense que queria mudar o mundo, a mulher pode ou não aceder ao diaconato?
No mundo com que sonho, não tenho nenhuma dúvida quanto a padres casados poderem ser sacerdotes e que as mulheres diaconisas será uma forma de começar.
Quando foi bispo de Setúbal, nomeou alguma mulher para um departamento importante?
Sim. Nomeei a advogada Maria da Graça Pacheco para chanceler da cúria diocesana. Mas aqui em Fátima já se está a colocar mulheres à frente de departamentos da Igreja. O padre não pode ser dinamizador em toda a parte.
A vida de um missionário é diferente da de um diocesano. Dizem que é uma pessoa modesta, que não gosta de luxo. Foi por isso que quando chegou a Setúbal quis vender o palácio episcopal para habitar num local mais despojado, mas houve quem não gostasse?
Eu não quis vender, até porque a casa tinha sido comprada à Marinha por D. Manuel. Mas achei que o palácio podia servir para uma coisa mais útil, queria rentabilizá-lo. Houve quem gostasse, outros não.
A visão franciscana da pobreza não é para todos.
Olhe que não é isso… Aquilo era muito frio. Eu chamava-lhe a minha Sibéria. Tinha lá um corredor grande que batizei como meu transiberiano. A casa era linda, mas eu alimento-me da sinergia de trabalhar com os outros. O problema é como rentabilizar tudo.
Mas foi nomeado bispo de Leiria-Fátima e também não quer viver na Casa Episcopal, quer mudar-se para o seminário. Está para quando a mudança?
Não sei! Ainda estamos a estudar como fazer. Não é só uma decisão minha. Daqui a seis anos saio e o assunto tem de ser discutido para ver quais são as vantagens e desvantagens. Nessa casa ou noutra, vou viver sempre modestamente porque é a minha maneira de ser.
Que balanço faz do trabalho da comissão de inquérito aos abusos sexuais de crianças na Igreja?
Estou muito grato pelo trabalho que a comissão fez, foi um trabalho árduo. Tem defeitos, sim, mas que foram empolados, talvez pelas expectativas criadas pela comunicação social e também porque se confundiu o papel de uma comissão de estudo com o de uma comissão de investigação de casos. Quando se quis passar o estudo para casos, as coisas falharam, até porque a própria metodologia a que se recorreu não era a adequada. A identificação de pessoas tinha de ser diferente. Não posso fazer um caso jurídico. A maioria dos testemunhos era de anónimos, muitas vezes a identificação dos suspeitos não estava completa e, sem poder recorrer às vítimas para que dessem informações suplementares, não se conseguia chegar às pessoas. Como é que se podia sustentar assim uma acusação? Aliás, a própria Procuradoria-Geral da República veio dizer o mesmo. Por isso é que eu afirmo que o facto de a Igreja ter afastado alguém não significa já uma nota de culpa, mas já é uma penalização que só se deve tomar depois de uma grande ponderação. Quando as figuras públicas vêm dizer que ficaram admiradas porque os bispos não suspenderam logo sacerdotes, isso é uma enormidade que não se compadece com o verdadeiro sistema de Justiça.
Refere-se à reação de Marcelo Rebelo de Sousa, que esperava que os bispos fossem mais rápidos no que toca à suspensão dos padres.
Eu continuo a ter um grande apreço pelo nosso Presidente, mas não tenho sempre de concordar com ele. Na conferência de imprensa sobre o relatório da comissão independente, eu disse logo que precisávamos de mais tempo para identificar os religiosos referenciados. Havia diversas situações: nuns casos tínhamos nomes completos, noutros precisávamos de confrontar as pessoas (porque às vezes havia apenas o primeiro nome e na diocese onde a vítima o colocava havia vários padres com o mesmo nome), por vezes nem se sabia que tipo de crime era imputado… Mas, à medida que a comissão independente foi enviando mais informações, alguns casos puderam ser resolvidos.
Disse recentemente que as indemnizações às vítimas são os tribunais que têm de resolver. A Igreja não tem de assumir as suas responsabilidades, até em relação aos casos que já estão prescritos?
Não disse assim. O que eu digo é que ‘indemnização’ é um termo jurídico que é determinada por um tribunal. Mas não vamos só por esses processos. Se fosse assim, era simples. Se alguém coloca um padre ou uma igreja em tribunal, estes vão pagar o que o tribunal estipular. Eu vou mais longe: quero que pessoas sejam ajudadas desde logo a recuperar dos danos que lhe foram causados e é por isso que estamos já a suportar consultas de tratamento. Ninguém há de ficar sem ajuda aos traumas que sofreu na vida por falta de meios.
Não estou a falar de esmolas.
Mas também não é apenas a questão de um montante que vai resolver isso. O trauma não é simplesmente financeiro, é seguramente psicológico. Temos de começar por algum lado.
Em relação aos dois processos que correm contra si, por suspeita de encobrimento em relação a dois sacerdotes que terão abusado de menores, já foi ouvido pelo Ministério Público ou pela PJ?
Não, não fui ouvido, e gostava de ter sido. Só tenho conhecimento desses factos pelos meios de comunicação social. Aliás, exprimi desde logo que estava interessado em colaborar com as autoridades para que tudo se esclareça rapidamente, até porque não tenho nada que me fira a consciência.
O Papa Francisco disse recentemente que estava muito triste porque o país onde a Nossa Senhora apareceu aprovou uma lei para matar. Partilha esse sentimento?
Também partilho da pena do Papa. No entanto, não pretendo julgar quem vive com esse sofrimento. Agora, culturalmente e civilizacionalmente, pesa-me muito. Aceito a diferença de opinião sobre essa matéria, o que acho importante é que o Estado e o SNS façam tudo o que é possível para que ninguém se sinta socialmente pressionado a pedir o fim do sofrimento em que se encontra. Não faço juízos sobre essas pessoas, gostava era que o Estado pudesse criar as condições de cuidados de acompanhamento e paliativos para que as pessoas não cheguem a essa situação. Também acho importante que, sendo o SNS a fazer isso, esteja salvaguardada a objeção de consciência dos profissionais de saúde. Porque eu não condeno, mas não poderia colaborar nisso.
Se alguém lhe pedisse, era capaz de estar ao lado dela nessa viagem?
Sou capaz de estar onde for preciso, mas não iria colaborar, tentaria que essa viagem fosse feita de outro modo.
Em 2020 tornou-se o presidente da Conferência Episcopal, foi recentemente reeleito. Fizeram-se apostas: uns diziam que os seus pares não o iam eleger, outros que o D. José, depois da convulsão que o relatório da Comissão Independente provocou na Igreja não iria aceitar o cargo. Esteve para desistir, como alguma comunicação social anunciou?
A única dúvida que tive foi se conseguiria conciliar isso com o facto de ser bispo de Leiria-Fátima. A CEP consome muito tempo. Espero que agora isto entre num ritmo mais sereno para que me possa dedicar também à diocese. Confesso que me senti cansado com toda esta situação complexa. Foram horas e horas… Mas também não vim para aqui para descansar, sabia é que ‘tinha de me esticar’ para cumprir o que me era pedido. Era uma questão de coerência.
O homem, pelo menos a maioria, tem medo da morte. Um homem de Deus, que acredita que nada acaba aqui, também a teme?
Todos sabemos que isso vai acontecer, mas, para mim, a vida é só a primeira parte do jogo. Depois começa a segunda parte. E a segunda parte é como quando morreu Jesus e os apóstolos pensavam que tudo estava acabado – mas não, estava apenas começando. Mesmo que seja só um sonho, então é um sonho bonito de se viver.