Depois da pandemia veio uma uma guerra que também trouxe consigo um grande aumento do custo de vida para a maioria dos portugueses. Era tudo aquilo de que não precisávamos..
Isto foi uma tempestade perfeita. Em 2011, tivemos a crise financeira que trouxe a impossibilidade do Estado português começar a atualizar como devia as comparticipações. Depois, tivemos um Governo que estava assente numa base parlamentar, que não era propriamente aquela que se revia no setor social. Mais recentemente, a pandemia. E, agora, quando julgávamos que tínhamos regressado outra vez a uma situação mais normal, fomos apanhados pela guerra, que também trouxe como consequência a inflação que, para nós, está a ser muito penalizadora.
Tem sentido um aumento do número de pedidos de ajuda?
Sim, mas sobretudo a grande dificuldade que temos hoje é manter as instituições a funcionar com as pessoas que temos lá para dentro, porque têm despesas para pagar, e as taxas de juro subiram de uma maneira brutal. Também subiram os combustíveis, o gás, a energia e, finalmente, os bens alimentares, o que é muitíssimo significativo. Se pensar, por exemplo, numa misericórdia do interior norte do país, como na região de Bragança, o aumento dos custos foi exponencial e com aquilo que o Estado paga é verdade que a situação das instituições, hoje, é muito, muito, muito difícil.
E depois não é possível chegar a todos os pedidos…
Há uma outra coisa extraordinária, muita gente augurou que se calhar com a pandemia as pessoas não iriam querer ir para os lares. Estavam completamente enganados. Nunca, mas nunca houve uma requisição tão grande das famílias e dos utentes para irem para os nossos lares, porque a nossa imagem de proteção até saiu reforçada nesse sentido. E não só não temos lugares para tantas pessoas como cada uma delas sai mais cara. Há uns anos, ter um lar cheio era talvez sinónimo de equilíbrio, agora é quase sinónimo de desequilíbrio, porque as famílias não podem pagar e a comparticipação do Estado – embora esteja a fazer um esforço que reconheço – é engolida pelo aumento de qualquer coisa e esse esforço acaba por ser absorvido. A situação está cada vez mais complicada.
Como justifica esse aumento exponencial da procura?
Em primeiro lugar, há uma razão demográfica. Temos dito e avisado que Portugal é um dos países da União Europeia com maior nível de envelhecimento e, aparentemente, pelos números, somos os que envelhecemos mais depressa. Costumava dizer que estávamos perante um tsunami, agora começo a dizer que o tsunami chegou à praia. Por outro lado, a vida mudou muito. O que quero dizer com isto? Podemos não nos aperceber, mas com o dia-a-dia das famílias fica mais penoso cuidar dos idosos e, como os nossos resultados na pandemia, no seu conjunto, foram muito bons no quadro nacional e europeu, as pessoas querem ir para os lares. E as famílias ficam tranquilas com essa decisão. Estamos numa situação muito, muito, muito complicada e vemos a angústia das pessoas. Percebemos que as pessoas estão preocupadíssimas e quem trabalha como é que pode deixar o seu idoso sossegado em casa? E, se tiver um bocadinho de demência, é completamente impossível, porque quando se chega a casa já ela pode estar a arder.
A maioria das famílias não consegue dar esse auxílio.
E as pessoas muito legitimamente têm direito à sua vida. Vê, muitas vezes, muitas vidas anuladas por isso. Estamos com um problema seriíssimo e dificílimo. Até estamos a estudar na União das Misericórdias o que os outros países estão a fazer, que soluções encontraram e encontrámos soluções, mas todas custam um dinheirão. Espero que rapidamente o Estado promova estas questões como primeira prioridade. Temos de nos libertar da TAP e dessas coisas todas para, em vez de serem uma fonte de despesa, passem a ser uma fonte de receita para o Estado. Não são as instituições que têm essa obrigação, nós colaboramos com o Estado. E mesmo não sendo essa a nossa obrigação vejo pessoas muito desesperadas e que até nos questionam: ‘Então vocês não são a Misericórdia?’. É como se fosse um bocadinho um ataque. Podemos responder: ‘Somos, meu caro, mas não temos capacidade, nem recursos’. Não conseguimos e não é por falta de vontade, não é por má vontade, não é por desinteresse, até pelo contrário, só que o Estado português é que define as prioridades. As políticas públicas são pensadas, são decretadas, são regulamentadas e são implementadas pelo Estado quando quer. Tudo isso é responsabilidade do Estado, mas depois o Estado diz assim: ‘Bom, como estão ali aqueles que são do setor social e, no seu conjunto, estão dispostos ou por missão ou por outra coisa qualquer, então vamos-lhes pedir que façam’. Até diria melhor e mais barato. E como fazemos melhor e mais barato então somos vistos como os parceiros ideais. Às vezes, perante a opinião pública, até há a ideia de que a responsabilidade é nossa, porque somos o fim da linha e por sermos o fim da linha também somos os primeiros com quem as comunidades debatem. Mas uma coisa é a nossa vocação para ajudar as pessoas, outra é o limite da capacidade dessa vocação.
O ideal seria mudar as próprias políticas públicas e repensar o atual modelo?
Há pessoas que, perante a urgência, perante a dificuldade – e, como sempre, os portugueses são muito emotivos – querem fazer isto a correr de um dia para o outro. Mas aqueles que sabem mais e que estudam percebem que tem de haver uma mudança: uma mudança no financiamento e uma mudança no comportamento. Tem até de haver uma mudança na própria perceção do cuidado. Há uns dias vi um programa na televisão que por acaso não tinha nada a ver com as Misericórdias, era mais sobre o Estado, e mostrou uma realidade que conheço muito bem. O que o Estado disse agora já o tinha dito há 20 anos e está escrito, até chamei aquilo de ciclo da estupidificação, ou seja, como as instituições não têm dinheiro, levantam os idosos quando estes não conseguem, tomam o pequeno-almoço e põem-nos à frente da televisão, depois ao meio-dia vão almoçar, depois vão outra vez ver televisão, depois lancham, jantam e mais tarde vão para a cama. É claro que há misericórdias que fazem coisas muito bonitas, fazem ginástica, fazem animação, fazem estimulação, mas não são obrigadas a isso. E muitas nem sequer têm recursos para fazer isso. Quando vejo aquele programa na televisão não posso deixar de me entristecer, mas também não posso deixar de sorrir, porque está a ser apresentado como novo, mas isso tem 20 ou 25 anos.
E para encontrar uma vaga num lar, especialmente no setor social, é preciso esperar anos…
Neste momento é um milagre encontrar uma vaga. É claro que todos os dias morrem pessoas, mas a lista de espera para cada uma que morre são cinco ou seis.
A vaga é rapidamente absorvida…
Voltámos às longas listas de espera e tem de ser feita alguma coisa sobre isso. Se me perguntar se acho que a resposta é lar? Digo que também é lar, mas é sobretudo apoio domiciliário. No entanto, não é este apoio domiciliário que o Estado pensou e desenhou. Primeiro, porque são só cinco dias por semana, como se as pessoas não comessem, não se sujassem, não se limpassem ou não tivessem vida ao sábado e ao domingo. E, depois, é levar apenas comida e fazer um bocadinho de higiene. Temos de repensar todos num novo modelo. Acho que a ministra nomeou uma equipa ou uma pessoa para fazer um plano para o envelhecimento e considero fundamental que sejamos ouvidos. E, se não formos ouvidos a bem, seremos a mal. Não é para ganhar dinheiro, mas sim para ajudar as pessoas.
Sente que o Governo dá prioridade, por exemplo, à TAP e a outras empresas em detrimento do setor social?
Acho que o Estado não queria fazer nada por oposição a ninguém, nem a nada. É o Estado, não é o Governo. O Estado tem de encontrar uma forma qualquer do olhar para as políticas sociais de uma maneira equilibrada. Não estou a dizer que o Estado não olha para as políticas sociais, mas também é verdade que para o Estado as coisas mudaram, porque tinha uma inflação de 0,9% ou 1,1%, em que com pequenos acertos e com alguma imaginação podíamos fazer as coisas. No ano passado, tivemos sete e qualquer por cento, este ano já vamos em 5,7% e a nossa inflação específica é sempre dois ou dois pontos e meio acima da inflação do INE e há estudos sobre isso.
E depois a solução passa por recorrer aos tais lares ilegais aos quais o Estado continua a fechar os olhos porque não tem outra alternativa?
Evidentemente. Mesmo durante a covid, a maior parte dos óbitos foram de pessoas que foram parar aos hospitais oriundos dessas unidades. E o Estado até chegou a tentar de alguma maneira ajudar os lares ilegais. Sabemos isso, não vimos inconveniente nenhum nisso, porque não podíamos ajudar. A situação é esta e é nesta situação que temos de viver. Dizemos que há dois tipos de lares ilegais: uns que são legalizáveis e outros que são inaceitáveis. No primeiro caso, há situações em que o Estado pode ser mais flexível. Já no caso dos inaceitáveis não há nada a fazer a não ser acabar com eles. O único problema é que fecham aqui e abrem depois na porta ao lado. É um trabalho difícil e, mais uma vez, ninguém mete ninguém com boa vontade num lar ilegal. Mas é certo que os custos são muito mais baixos. E é também por causa disso que ficam rapidamente inaceitáveis.
E a rede de cuidados continuados é outra dor de cabeça…
Até brinco, porque a rede de cuidados continuados nos nossos lados, em muitos casos, até já estão na rede, porque os cuidados que se prestam são cuidados da rede de cuidados continuados. Esta rede devia ter 15 mil camas em 2016, de acordo com um estudo que foi feito há sete anos. Estamos em 2023 e sete anos depois estamos com 9.200 ou 9.500, não sei o número exato. Não chegámos às 10 mil e nem chegámos aos 60% que tinham sido definidos em 2016. Na próxima semana, até vai haver um evento promovido pelo Estado sobre isso. Depois de ver estes números percebe-se que a rede de cuidados continuados, embora seja muito importante, não está a cumprir a sua função, porque faltam camas. E depois há a outra questão que é a questão do financiamento das camas que há.
Os últimos dados apontam para mais de 2.100 pessoas que aguardam vaga…
Sim e já entregámos uma proposta concreta ao Governo que, sem baixar a qualidade, consiga aumentar a capacidade das unidades que existem. Mas aumentar a capacidade significa gastar mais dinheiro e o Estado não quer gastar mais dinheiro.
E em relação à reprogramação das verbas alocadas ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Como está o levantamento do parque habitacional?
Essa verba é apenas para a construção. Já tivemos uma reunião com a ministra da Habitação para falar sobre isso e estamos a trabalhar positivamente nessa matéria.
Voltando atrás. Disse recentemente que é necessário um ‘olhar atento’, considerando que os ‘números frios não revelam as dificuldades sérias das famílias’, afetadas pela crise económica. A realidade pode ser ainda pior?
Na maioria dos casos, estamos pior por causa da tal inflação de que já falei, noutros casos é mais cáustico, porque as famílias estão, em alguns casos, muito viradas para o consumo. Tem de haver um movimento global da sociedade portuguesa e para esse movimento acontecer não podemos sacrificar mais as famílias, como é óbvio. Temos de criar um plano harmonioso ,que as pessoas compreendam, porque, se isso acontecer, então talvez consigamos melhorar. Os números portugueses e os números internacionais, às vezes, são muito enganadores. Ainda esta semana, numa reunião aqui, se falava sobre isso. Portugal é capaz de estar em alguns números na cauda da Europa e noutros não, mas depois na realidade não está bem. Os outros países também têm os mesmos problemas, mas fintam-nos, e nós, às vezes, temos uma forma de encarar diferente. É por isso que temos todos de pensar com calma – sei que os tempos não estão muito virados para a calma, nem para a ponderação – sobre estas mudanças. Há muitos anos, quando estava na pobreza, ficava muito impressionado com os números dos sem-abrigo em Inglaterra, os homeless. Porquê? Porque protagonizavam que um filho que vivia em casa dos pais depois dos 23 ou 24 anos como um sem-abrigo. Então como é que se chega aos números? Como é que isto se faz? Esta coisa dos números tem de ser vista com calma e com atenção.
Mas, por outro lado, temos o Governo a acenar que somos um dos países que mais cresceu, em termos económicos, quando isso não se reflete na vida das pessoas…
Também temos os economistas a dizer que isso é verdade, só que isso não chegou às pessoas. Então temos de fazer isso chegar às pessoas.
Acha que as medidas de apoio avançadas pelo Governo têm sido suficientes?
Todos os apoios são bons. Também tivemos, no final do ano passado, uns apoios extraordinários que foram essenciais para equilibrar as nossas contas na pandemia. Mas, apesar de todos os apoios serem bons, são sempre mezinhas e, com isto, o que quero dizer é que temos de estruturar mais a área social. Dar-lhe um conceito, uma estrutura, acolhendo esses esforços do Governo que são positivos, como é obvio, mas é preciso estruturar um bocadinho mais a área social. Sei que na área social não é possível estruturar definitivamente, como acontece na economia, como numa fábrica, como numa grande empresa ou na banca. Nestes casos é sempre mais fácil de estruturar, na área social estamos a falar com pessoas e isso é mais complicado, mas, pelo menos, temos de dar um mínimo de estrutura e está-nos a faltar olharmos outra vez para isso em conjunto.
A ideia das ‘contas certas’ que tem sido promovida pelos últimos ministros das Finanças acaba por limitar os apoios que têm sido dados e não permite ir mais além?
Acho que não. Agora está na moda dizer mal de Fernando Medina, mas nós só podemos dizer bem, porque foi na sequência de uma conversa que tivemos que se conseguiu encontrar uma capacidade de nos ajudar no final do ano e isso foi muito bom para o setor.
Foi a atribuição extraordinária de 75 milhões?
No ano passado, no total, andou nos 150 milhões de euros. Foi muito dinheiro, mas também foi fundamental para desenvolvermos a nossa atividade. 75 milhões foram para equilibrar as contas de 2022 e os restantes 75 milhões foram para o apoio normal para 2023. Já houve aqui um esforço e como não sou um macro-economista não posso falar de contas certas. A verdade é que isso aconteceu e houve sensibilidade por parte de Fernando Medina nesta matéria. Provavelmente, não fez isso sem o apoio de António Costa. Mas aqui a questão é saber quanto é que um idoso num lar custa em média por mês em Portugal. O Estado comprometeu-se ou não a pagar no mínimo 50%? Comprometeu-se e onde é que estamos estamos? Estamos em 24%/25%, isso é que é importante. Quantos anos vamos demorar a chegar aos 50%? Então todos os anos não podemos deixar agravar a situação. Não podemos passar de 34% para 33%, temos de passar de 34% para 36% ou até mesmo para 40%. E quando falo em estruturar é disto que estou a falar. E depois de nos dizerem que ‘queremos outro modelo’, nós respondemos: ‘Ah querem? Ótimo, mas atenção que em vez de um idoso custar 1.300 euros por mês se calhar já vai custar dois mil euros’. É possível? O Estado tem dinheiro para isso? Não pode lançar a medida e num ano pagar dois mil e no ano a seguir pagar outro valor. Nesse caso começávamos logo a perder.
E também depende da resposta que pretendermos dar. Se for para ficar o dia todo a ver televisão como disse à pouco…
Todos reconhecemos que isto que escrevi há 20 anos ou mais permanece em muitos lares. E é por isso que temos de abordar a questão de uma maneira diferente. E isso não se faz num ano. Demora cinco, dez anos. Mas o que é preciso é começar, porque quando começar vamos todos entrar num novo paradigma. E é também por isso que há pouco lhe disse que a solução não é só fazer mais lares. Num primeiro momento, deveríamos remodelar os lares que existem e, num segundo momento, avançar com o apoio domiciliário à séria.
Como vê a questão da eutanásia?
Participei muito nas discussões da eutanásia. Tive um longo debate na rádio com José Manuel Pureza e a minha posição sobre a eutanásia é conhecida, mas sou português, respeito a Constituição e o Estado português. E se do ponto de vista teórico sou completamente contra a eutanásia – não me custa nada assumir isso –, do ponto de vista legal sou um cidadão português respeitador e cumpridor da lei. Mas também percebo que uma coisa é a minha posição, outra é a posição que outra pessoa ao lado possa ter. Sou contra a eutanásia, mas também reconheço que há situações limite. Infelizmente, pelas minhas funções, contacto com essas situações e tenho uma perceção maior do que a maioria esmagadora dos portugueses.
Então acha normal os médicos poderem declarar objeção de consciência?
Normalíssimo, se fosse médico passava a vida a declarar objeção de consciência. Mas não podemos ver esta questão como um copo meio cheio ou meio vazio. E também não nos compete a nós setor social intervir na política. A política é para a Assembleia da República, é para o Governo, é para o Presidente da República e para as pessoas que se dedicam a isso. Nós temos de olhar para as pessoas e, nesse contexto, atuar quanto muito como grupos de pressão, dizendo a verdade. Agora, dizer que sou contra ou a favor do Governo ou sou contra o Estado? O Estado é o meu maior parceiro, mesmo quando o Estado não tinha a função que tem hoje, porque era por decreto régio que eram criadas as misericórdias. Então vou agora deitar esse património fora? Não posso, agora, tenho o direito e o dever de dizer a verdade ou, pelo menos, a minha verdade. E é isso que faço.
Mesmo não querendo interferir na política, estando na área social têm de lidar com o Ministério do Trabalho e Solidariedade que tutela este setor…
Temos excelentes relações com a ministra. Reconheço-lhe muita motivação, muito empenhamento. Mas, se lhe pedir agora um aumento de cem euros por mês, diz-me que não, porque não há dinheiro. Percebo isso, mas também não quer dizer que não lhe diga que é preciso mais verba. Ana Mendes Godinho também já vai conhecendo o que se passa e já anda nesta área há quatro ou cinco anos. E a nossa relação durante a pandemia foi fundamental, reuníamos quase todos os dias por videoconferência e aprendemos a respeitarmo-nos e a estimarmo-nos. O mesmo posso dizer da secretária de Estado, Sofia Antunes.