“Foi aqui que Napoleão começou a perder a guerra”

No seu oitavo romance, que arranca de forma arriscada, o autor visita um período traumático da história de Portugal e da Europa: as invasões francesas. ‘Foi altamente violento para a população portuguesa’, nota o historiador. ‘E os populares vingaram-se de forma proporcional’.

Antigo professor do ensino secundário e, durante muitos anos, investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical, especializou-se no estudo do tráfico transatlântico de escravos, com particular incidência no papel dos portugueses nesse flagelo. Não afina pelo diapasão do politicamente correto e publicou vários livros e artigos em contra-corrente, propondo-se a desmontar certas ideias feitas. Denuncia «simplificações» e «omissões» no discurso daqueles que acusam Portugal de ser «o criador do tráfico de escravos e da escravatura», o que lhe tem valido críticas duras e umas quantas inimizades.

Mas antes de se envolver nestas controvérsias, João Pedro Marques já tinha uma bem-sucedida carreira como autor de ficção histórica. É a este género literário que regressa agora, com Até ao Fim da Terra (ed. Porto Editora), um romance ambientado na época das invasões francesas. Conta a história de José Bento Calheiros, um homem atormentado pela culpa que vai até onde for preciso para cumprir uma promessa. E acaba por testemunhar a invasão da Rússia pelo exército de Napoleão.

Fiquei surpreendido, aqui há tempos, quando percebi através de um artigo seu no Observador que havia outro académico [Pedro Schacht Pereira] que dizia as piores coisas de si: que não tem credibilidade, que ninguém o leva a sério. Há alguma querela pessoal entre os dois?

Não! Nunca falei com ele. As pessoas da extrema-esquerda académica detestam aquilo que eu escrevo e aquilo que eu penso. E isso desde o primeiro artigo, em torno da polémica que se seguiu à ida de Marcelo Rebelo de Sousa ao Senegal. Não sei se se recorda…

Não tenho presente.

Em abril de 2017 o Presidente visitou o Senegal, e tradicionalmente levam as pessoas à ilha de Gorée, que simboliza o tráfico transatlântico de escravos. E estavam na expectativa de que ele pedisse desculpa, como outros líderes fizeram – incluindo o próprio Papa. Ele de facto pediu desculpa, lamentou a existência do tráfico, que foi uma coisa horrível. Mas disse que aquilo que havia a fazer agora era estar atento a novas formas de escravatura que iam surgindo, e lutar pelos direitos humanos. A extrema-esquerda fez um clamor em torno disto e eu publiquei um artigo no Público quatro ou cinco dias depois. Logo aí, esse Pedro Schacht Pereira começou a arranjar-me alcunhas, a demolir-me como pessoa e a pôr em causa a minha credibilidade. Mas este artigo que escrevi agora no Observador foi remédio santo. Nunca mais me chatearam.

Por que tomou a iniciativa de envolver-se nessa discussão?

Como tenho uma boa formação na área do tráfico de escravos e do envolvimento dos portugueses – o meu doutoramento foi sobre isso e foi o que investiguei durante décadas – achei que era minha responsabilidade…

Repor a verdade?

E dar às pessoas a possibilidade de formarem a sua opinião. Com informação. E é isso que eles não me perdoam. Schacht Pereira queria desempenhar o papel de figura principal neste palco. Repare: nenhum deles me contradiz. Fazem ataques ad homine, porque não conhecem a questão a fundo como eu conheço.

A escrita de romances tem um efeito terapêutico, ajuda-o a descansar desses combates pela História?

Não. Quando comecei a envolver-me nestes debates sobre o tráfico escravo, em 2017, já tinha publicado cinco romances históricos. Quanto a esse tema, foi uma porta que reabri, porque saí da investigação em 2010, por conflitos que tive com o presidente do instituto onde trabalhava, e pensei: ‘Vou experimentar escrever, ver se sou capaz’. Escrevi o primeiro romance histórico, chamado Os Dias da Febre. A crítica foi positiva e teve algum – limitado – sucesso comercial. Gostei da experiência e escrevi o segundo, que foi muito bem acolhido pelo público.

Uma Fazenda em África.

Ainda que eu ache que não é o meu melhor romance, foi aquele que mais vendeu.

Tem alguma ligação a África ou esse romance resulta da sua experiência no Instituto de Investigação Científica Tropical?

Exatamente, a minha experiência é apenas como investigador. Nem quando fiz o serviço militar lá estive [em África]. Mas como tinha muita documentação, achei que seria interessante fazer um romance sobre o início da colonização de Moçâmedes, que era uma coisa de que as pessoas não tinham bem ideia. Escrevi esse romance e foi um sucesso. O terceiro também não foi mau. E um quarto… E de repente surge esta questão da escravatura. Para já, gosto de debater. E depois achei que tinha mesmo a obrigação cívica de intervir naquele campo.

Este novo romance, Até ao Fim da Terra, começa na cama do marechal Massena, o militar que conduziu o exército francês na terceira invasão de Portugal. Diz-se que a primeira página do livro é a mais importante e aquela a que o escritor dedica mais atenção. Foi para si fácil perceber como iria começar o livro?

De facto o início do romance é muito importante. Às vezes consigo arranjar um início que me agrada, outras vezes não consigo. Este começa de facto com o Massena na cama com a sua amante. Houve até pessoas que ficaram um bocadinho…

Escandalizadas?

Sabe, essa parte amorosa, e eventualmente erotizada, é a mais difícil de escrever num romance, porque é um terreno muito resvaladiço. Tem que ser profundo sem ser chocante, sem resvalar para a ordinarice. Começar o romance com uma cena na cama, ainda que não explícita, é sempre um risco. Mas neste caso achei importante para reforçar a caracterização de Massena como invasor: invadia um país e invadia de uma forma de certo modo forçada e abusiva a sua amante.

Um pouco mais adiante dá-se uma tragédia, um acidente de caça em que morre uma criança. Estes são dois ingredientes importantes num romance, o amor e o sangue, o sexo e a violência?

Este é um romance que se passa num contexto de guerra. Já é o terceiro: O Estranho Caso de Sebastião Moncada passa-se nas guerras liberais, o Vento de Espanha passa-se em parte na Guerra Civil Espanhola, e este passa-se na época napoleónica. Isto é um cozinhado que tem que ter medida certa. Não se pode abusar da violência, até porque a maior parte dos leitores são do sexo feminino. E, portanto, um romance militar, guerreiro…

Não tem apelo?

E também não tem grande interesse, porque a guerra é uma coisa horrível, destrutiva, massacrante, sangrenta, triste. Tem que ser uma coisa muito pontual. E acho que consegui fazer isso. A violência tem de facto um papel importante neste romance, porque estou a falar da guerra. E até há um capítulo que é a descrição de uma batalha, a batalha de Borodino. É o teatro onde um dos personagens centrais vai morrer, e é através desse personagem, daquilo que ele vê, daquilo que ele sente, daquilo que ele faz, que nós estamos na batalha. Mas não abuso disso. A violência está lá pontualmente, para dar os toques principais do que estava a acontecer. Mas eu diria que, ainda que o amor e a guerra sejam importantes, o romance gira em torno de uma promessa, uma promessa que vai ou não ser cumprida. E, portanto, além do amor, uma coisa fundamental é o compromisso de honra. E o sentimento de culpa.

O protagonista é alguém que vai à procura da redenção.

Houve o tal acidente de caça, que é qualquer coisa que marcou muito a vida deste homem e a sua visão das coisas. No princípio hesitei na escolha do personagem principal, e acabei por escolher este capitão Bento Calheiros porque quis fazer dele um personagem típico desta fase do século XIX. Ele é, de certa forma – não integralmente – uma reprodução do Bernardo de Sá Nogueira, visconde e depois marquês de Sá da Bandeira. Fiel à sua palavra, estoico, corajoso. Escolhi fazer deste Bento Calheiros esse homem-tipo do princípio do século XIX.

Quando se trata este período das invasões francesas, é inevitável que falemos da fuga da família real para o Brasil. E às vezes quase nos esquecemos de olhar para o que se estava a passar cá. Há descrições, cartas, relatos de militares que permitam reconstituir os acontecimentos e o ambiente?

Há memórias, sobretudo da parte dos franceses. E dos ingleses também. E até irlandeses. Estiveram cá soldados de quase todas as nacionalidades: polacos, italianos, espanhóis, holandeses, etc., porque o exército napoleónico ia agregando tudo aquilo que conquistava. Essa gente deixou muitas memórias e eu utilizo a informação que nos transmitem. Já os jornais da época são muito esquálidos. Têm resumos de notícias militares e coisas desse género, não têm combustível para alimentar um romance. Mas essas memórias têm. E depois há livros sobre o que se passava cá. O Vasco Pulido Valente, por exemplo, escreveu um livro sobre o tempo da primeira invasão, do Junot.

Ir prò maneta.

Exatamente. O maneta era um general francês chamado Loison. Houve uma sublevação popular, os franceses acabaram por perder o controlo e saíram do país. Mas, voltando à sua questão, é um período muito bem documentado.

Esses testemunhos permitem ter um pouco do sabor e da cor da época?

Sim. Eu utilizo a terminologia, os nomes, as palavras, as frases, as formas de tratamento, na construção do romance. Não de uma forma exaustiva, mas vou espalhando isso precisamente para que o leitor fique com a ideia de que está a ler uma coisa de um tempo diferente.

Isso é uma coisa que sempre me questionei relativamente ao romance histórico. O autor tem de estar muito atento para não escorregar, para não ser como aquele filme sobre a Idade Média em que um dos atores aparecia com um relógio Casio no pulso…

[risos] Pois… É claro que não posso escrever um romance como se fosse o Camilo Castelo Branco… Para isso os leitores que leiam o Camilo, que escreve melhor que eu. Mas vou usando expressões, palavras, designações, algumas até já caíram em desuso, para dar cor local.

Todo o livro está salpicado de referências a abusos. Aqui há uma violação, ali há alguém que está a extorquir comida, acolá há um ato de violência gratuita. Esta invasão foi muito castigadora para o povo?

Muito, muito. Os franceses não tinha logística para suportar aquela multidão de soldados. Depois da Revolução, no tempo de Napoleão, começou-se a fazer aquilo a que eles chamam ‘lever en masse’, mobilizações gerais. E depois não tinham vestuário, não tinham botas, não tinham armamento para todos… Não havia capacidade de corresponder àquela integração maciça. E, do ponto de vista da alimentação, o que faziam era ‘vivre du pays’. Quando invadiam uma região agricolamente rica, como era a Alemanha, isso funcionava. Agora, aqui na Península Ibérica o caso fiava mais fino. Sobretudo em Portugal, que era pobre. Os camponeses, imagine, tinham ali o porco, e era toda a sua riqueza. E os franceses chegavam lá e levavam o porco. Foi altamente violento para a população portuguesa. E os populares vingavam-se dos soldados franceses de forma proporcional. Quando apanhavam um isolado faziam coisas aterradoras.

Com requintes de malvadez?

Mesmo sádicos. E por isso para os franceses isto era um território amaldiçoado. Ainda que fossem militarmente superiores no combate em campo aberto, depois nestas guerrilhas arriscavam-se a ser esfolados vivos, crucificados numa porta da igreja…

Literalmente?

Literalmente. Esventrados, queimados vivos, cegados com ferros… Coisas aterradoras. Por exemplo, um correio – os que levavam os ofícios e as cartas de um comando para outro, ou de França – se era apanhado numa emboscada estava morto.

É curioso, porque isso contraria aquela ideia dos brandos costumes.

Isso é uma coisa mais do tempo do Salazar.

Bem sei, mas diríamos que era um traço do povo, independentemente da época.

Não, não. Veja as guerras liberais, por exemplo, do tempo do D. Miguel. Foi brutal. Enforcava-se gente a torto e a direito, sem grandes contemplações. Matava-se com grande facilidade.

No ‘quadro de honra’ das grandes batalhas de Napoleão, vêm-nos de imediato à ideia o Egipto, eventualmente os Alpes, até por causa do quadro do David com o cavalo branco, Austerlitz, Trafalgar, Borodino, Waterloo. Mas não a Península Ibérica. Parece que fica sempre em segundo ou terceiro plano.

Foi aqui na Península Ibérica que Napoleão perdeu a guerra. Para já, começou a falhar porque capturou a família real espanhola, mas não conseguiu capturar os Braganças e portanto Portugal continuou a resistir. Depois, porque os ingleses conseguiram desembarcar aqui e criar várias cabeças de ponte, vários focos de combate. E depois porque foi vencido aqui, não conseguiu conquistar Lisboa, tiveram que retirar. E houve sempre falta de colaboração entre os vários exércitos franceses que estavam na Península Ibérica, rivalidades entre os comandantes. Massena, por exemplo, pediu várias vezes reforços.

E nunca lhe deram?

Alguns desses tipos odiavam-se uns aos outros. O Massena detestava o Berthier – mas detestava mesmo, não é uma coisa que eu esteja a inventar. E de facto, com pouco espavento, foi aqui que os exércitos franceses começaram a perder a guerra.

É engraçado, alguém que se abalança a conquistar a Europa toda, ser aqui num país tão pequenino que acaba por falhar.

Não conseguiu chegar a Lisboa. Grande mérito do Wellington e das Linhas de Torres.

O livro também transmite muito essa ideia de que os franceses ficam aqui um bocado a marcar passo.

A marcar passo, a viver do país… Delapidaram tudo. Beira Baixa, Ribatejo, ficou tudo devastado e não podiam continuar. Tiveram que retirar.

A certa altura diz o seguinte: «Santarém exibia, de forma bem evidente, como se fossem feridas abertas na cara de uma pessoa, as feias marcas da ocupação francesa».

O país foi devastado. Sobretudo a zona entre o Douro e o Tejo. A parte sul estava protegida pelas tropas do Beresford até determinada altura, mas parte da Estremadura, Ribatejo, Beiras, foi tudo devastado. As cidades e as vilas foram pilhadas ou na vinda ou na ida.

O seu protagonista, o Bento José Calheiros é um militar que não combate.

Eu quero ser, tanto quanto possível, rigoroso na cronologia. Pu-lo a aparecer na batalha do Vimeiro. Mas a maior parte das tropas portuguesas não combateram no Vimeiro, ficaram na retaguarda. Portanto não fazia sentido pô-lo a combater no Vimeiro. Na retirada ele já não está com as tropas portuguesas, está a retirar juntamente com o marquês de Alorna, junto com os franceses, portanto não está a combater. E depois, quando é a invasão da Rússia, ele vai como ajudante de campo do marquês de Alorna, juntamente com aquilo a que se chamava a Legião Portuguesa, mas o Napoleão não tinha confiança no marquês de Alorna, portanto nunca lhe deu missões de combate. Ficou como governador civil de uma cidade da atual Lituânia. Quem combateu foram as tropas portuguesas comandadas não pelo marquês de Alorna, mas pelo marquês de Loulé.

O marquês de Alorna é uma figura com um papel importante no seu livro. Pode falar-me sobre ele?

O marquês de Alorna é uma figura trágica. A ideia que eu tenho é que ele era um tipo fútil, como havia muitos no final do século XVIII, princípio do século XIX. Delapidava o que tinha ao jogo e coisas desse género. Mas com uma vida muito marcada pela tragédia.

Vindo de onde vem…

Pois, estava ligado aos Távoras, por um lado. Depois, o que deve ter sido uma coisa muito marcante para ele, perdeu os dois filhos em acidentes. Um num acidente de cavalo ali em Monsanto. E o filho mais novo morreu afogado num tanque em Borba. Para culminar todo este percurso terrível, é incorporado à força pelo Junot como comandante das melhores tropas portuguesas, enviado para fora, e é considerado traidor na sua pátria… Volta a Portugal integrado no exército de Massena e faz apelos à população portuguesa para que se renda, o que foi qualquer coisa que caiu muito mal. E foi condenado à morte à revelia. E acaba, o que refiro também no livro, em total desgraça, com o seu nome na lama. Não chega a combater, mas retira com o exército francês da Lituânia em direção à Polónia. E morre na Polónia doente. Nunca chegou a voltar a Portugal. E a irmã, futura marquesa de Alorna, vai ter um trabalho de décadas para conseguir limpar o nome dele e a sua memória e recuperar o título – que ficou para ela.

Foi sempre um deslocado, porque entre os franceses não havia de se sentir francês, mas em Portugal também era muito odiado.

Ele detestava os ingleses, porque aqui em Portugal, na altura, havia os dois anglófilos e os francófilos, que aliás rodeavam o Rei há muitos anos. Os francófilos tinham um grande peso. O Conde da Barca, que tinha estado preso uns meses na Bastilha quando era enviado diplomático português, continuou a ser pró-francês. Depois vai com o futuro Rei para o Brasil e ainda é o ministro mais importante de D. João VI por volta de 1814-15. Os anglófilos acabaram depois por se impor, quando a Família Real fugiu para o Brasil. Entre esses anglófilos estava, por exemplo, aquele que viria a ser o tio do duque de Palmela, o Domingos de Sousa Coutinho, que era embaixador em Londres. E o marquês de Alorna era francófono. Acreditava na Revolução Francesa… Mas havia uma dificuldade, que aliás foi sempre a dificuldade das invasões francesas: aquilo era muito ambíguo. Por um lado, aquela gente tinha trazido as ideias revolucionárias, ideias até libertadoras que a maçonaria e os liberais professavam. Mas, por outro lado, havia uma enorme brutalidade associada àquilo.

Um grande derramamento de sangue.

Os franceses eram os invasores e foram os ingleses, que eram relativamente odiados, que garantiram a independência de Portugal. Mas em Portugal havia uma má vontade contra os ingleses, que permaneceu ao longo do século XIX.

Qual era a origem dessa má vontade, se nos ajudaram a libertarmo-nos dos franceses?

Era a subordinação política em que Portugal ficou. A Inglaterra tinha sido a garantia da manutenção do Império. Mas, como estava na dependência da Inglaterra, Portugal foi forçado a abrir os portos do Brasil ao comércio com a Inglaterra. Até então era um monopólio português. De lá para cá, os produtos só circulavam via Portugal. A partir de 1810, abriu-se ao comércio estrangeiro, que era o que os brasileiros queriam, porque lhes permitia ter acesso a bens muito mais baratos. Portugal sempre culpou a Inglaterra por ter perdido o Brasil. Esse tratado de 1810 com Inglaterra, que deu a liberdade comercial ao Brasil, foi visto como o fim da grandeza portuguesa. E lembre-se que os ingleses ficaram a governar Portugal após a derrota das tropas napoleónicas, e guardavam o melhor bocado para si.

Não há almoços grátis.

Pois é. E depois, em 1839, há um ato de prepotência, o chamado ‘Bill do lorde Palmerson’. O Parlamento inglês fez uma lei que dava o direito à marinha de guerra inglesa de apresar ou afundar navios com bandeira portuguesa, desde que estivessem equipados para fazer tráfico de escravos. E apresaram e afundaram dezenas. Naquele período de 1839-40 houve muita gente a apelar à guerra contra Inglaterra. Esta sucessão de coisas criou um espírito anti-britânico muito mais forte do que o anti-francês, quando os franceses é que tinham cometido violências brutais em Portugal.

Não sabia desta Legião Portuguesa, de que fala no livro. Eram cerca de 9000 homens, não eram?

Sim. Era muita gente e eram as melhores tropas. Quando os ingleses vieram, em 1808, e desembarcaram na zona da Figueira da Foz, treinaram as tropas portuguesas que tinham ficado. E fizeram regimentos e companhias militarmente muito bons, como os Caçadores. Essa preparação da tropa portuguesa deve-se em grande medida aos ingleses, porque as melhores tropas tinham sido levadas pelos franceses e morreram quase todas na Rússia.

Diz-se que Napoleão perdeu mais de 500 mil homens nessa campanha.

Foi uma tragédia. Porque os russos não os deixaram retirar para onde eles queriam. A ideia de Moscovo veio a meio do caminho. Havia várias opiniões que não aconselhavam aquilo. Depois, na retirada, as tropas russas cortaram-lhes o caminho pelo sul. Portanto, tiveram que fazer a retirada por um caminho já gasto, sem mantimentos. Foi catastrófico.

Há um momento dramático, que é a travessia do Berezina.

No meu livro há um capítulo sobre isso. Tiveram o azar de retirar numa altura em que os rios ainda não estavam gelados. A construção das pontes do Berezina, pelos pontoneiros, como lhes chamavam, é uma coisa heroica… Às vezes com água até ao pescoço. Boa parte dessa gente morreu na própria construção da ponte. E depois a travessia foi caótica… Será que o Bento Calheiros vai conseguir passar?

Por lapso, na edição impressa, o título do livro surgiu incorretamente referido como Até ao Fim do Mundo, em vez de Até ao Fim da Terra. Pelo facto pedimos desculpa aos leitores, ao autor e à editora.