Tove Ditlevsen. A origem da espécie

A Trilogia de Copenhaga (1967-1971), de Tove Ditlevsen, antecedeu em muitos anos os exemplos hoje apreciados da chamada auto-ficção: Knausgårde, Rachel Cusk ou Deborah Levy, e mesmo de Annie Ernaux.  

Texto de Paulo Bugalho

 

A literatura é para sempre, o resto não. Senão atente o leitor no jogo contrário, e avance a ler um clássico das ciências. A Origem das Espécies, por exemplo, obra demolidora de mundos e inspiração determinante para a literatura da época, mesmo que sob suspeita (“A selecção natural nem sempre é boa e depende dos caprichos de animais muito tolos”, escreveria George Elliot). Torção inacabável da visão que temos das coisas, é um dos livros mais aborrecidos de percorrer, pelo menos para quem, não sendo historiador da ciência, nele entre incauto à espera de receber de chofre com a revelação, e dê por si magoando as canelas em descrições contundentes da mais desbragada columbofilia, ou trechos dignos de um manual sobre raças caninas, interessantes apenas para o mais extremista dos criadores. O relato original das grandes descobertas científicas deixa de ter interesse para o leitor futuro, porque tendo atingido o domínio da percepção humana, transforma-a, tornando-se lugar-comum, tão fundamental e estéril quanto óbvia passou a ser a visão por ele produzida. Os clássicos das ciências sofrem de obsolescência rápida e o tédio provocado pela leitura desses momentos básicos é a medida directa da sua exactidão e inapelável verdade. A literatura mostra vantagens, nesta questão, pois não é verdade que o Gilgamesh perca contra a leitura de qualquer romance moderno, nem que as odes de Ricardo Reis excedam as de Horácio. Não há evolução na literatura, tudo é uma eterna arca de segredos. Não quer isto dizer que certos géneros, certos achados, não possam constituir o primeiro passo de uma ordem nova. Ignoramos se a literatura de auto-ficção, esta hoje tão apreciada mania de unir o que se pretende narrar com os nós da própria biografia, terá começado com os sumérios: não é fácil encontrar o ascendente zero, como se consegue com a genealogia das mutações genéticas.  Do anexim algo arbitrário de que toda a ficção é autobiográfica (ou seja, modificada a partir da experiência do escritor) à apóstrofe lançada aos cultores desta arte por quem os acusa de lhes faltar a imaginação, desde a mecânica afinal tão pouco lisa dos diários, também eles uma encenação (“não é uma crónica dos meus dias” escrevia Torga, “mas a parábola deles”) aos livros inventados para salvar os seus escritores (leiam-se as lamentosas minucias de Ovídeo, nos poemas de Tristia, construídos como galeras penitenciais que o retornassem à pátria), vai um mundo de nuances que não conseguiremos alisar. Contudo, a cronologia não mente: A Trilogia de Copenhaga (1967-1971), de Tove Ditlevsen, antecedeu em muitos anos os exemplos hoje apreciados de Knausgårde, Rachel Cusk ou Deborah Levy, e mesmo de Annie Ernaux.  

Originalmente publicado em três novelas separadas, Infância, Juventude e Relações Tóxicas, o conjunto abrange a vida da autora desde o passado escuro num bairro pobre de Copenhaga até ao estrelato literário, que coincidiu com a sua iniciação na dependência química. A última novela foi publicada em 1971, apenas cinco anos antes da sua morte, por suicídio, e após uma carreira prolífica que incluiu poesia, outros romances, trabalhos para a imprensa e prémios vários no país de origem. Como acontece nestas lides, a matéria é verdadeira, mas o método é ficcional. A história é contada na primeira pessoa e irradia de imediato a luz especial das narrativas ditas sob perspectiva infantil, tingidas ao mesmo tempo de agudeza e falta de discernimento. Em Infância, a ignorância sobre a origem dos mecanismos da realidade social e familiar dá o tom certo a um processo que, executado várias vezes ao longo da história da literatura, não deixa de ter aqui um exemplo exacto e luminoso. Estamos em Copenhaga, começamos nos anos vinte do século passado, e as pistas históricas, que se estendem, na última novela, à ocupação nazi do país na segunda guerra-mundial,  são filtradas por um ambiente de classe operária onde a personalidade do pai, partidário de politicas socialistas, sonhador, amargo pela frustração de não ter podido dedicar-se à literatura, contrasta com o pragmatismo de uma mãe não raro cruel e sempre fiel adepta das convenções sociais, ao mesmo tempo que saudosa de uma adolescência moderadamente libertina. A silhueta desenha-se pelo confronto entre a pobreza e tacanhez do meio e a descoberta de uma excepção, que é já o olhar lateral próprio dos escritores. Confundida com pobreza de dons mentais e falta de aprumo, a inteligência de linguagem da narradora-enquanto-criança coloca-a sem demasiada hipótese de defesa num terreno em que dominam a infelicidade e um sentimento de aberração: “As pessoas que têm uma infância visível, flagrante tanto por dentro quanto por fora, chamam-se crianças, e os adultos podem tratá-las como lhes der na gana, porque não há que as recear. As crianças, afinal, não têm armas nem máscaras, a menos que sejam muito matreiras. Eu sou uma dessas crianças, e a minha máscara é a estupidez". A aura de um isolamento luminoso, e o drama imposto para o esconder, produzem o ardil necessário, as artes de embuste precisas para a formação de uma personalidade literária, apta a transformar a realidade terrena até que esta se adapte às intenções da escrita. Um diálogo entre o irmão da narradora, Edvin, e a própria, depois do primeiro ter encontrado o seu secreto caderno de poemas, produz uma definição precisa da frutífera hipocrisia literária, que a um português soará sempre como se saída da boca de Pessoa: “O Edvin disse, mais tarde, que os poemas lhe pareceriam, na verdade, bons, se tivessem sido escritos por outra pessoa. Quando se sabe que é tudo mentira, disse ele, só dá vontade de rir. Os elogios agradam-me, porque não me incomoda que seja tudo mentira. Sei que às vezes é preciso mentir para dar a mostrar a verdade." Este primeiro capítulo, escrito numa clareza avassaladora, dá lugar a Juventude, descrição da narradora enquanto trabalhadora manual e aspirante ao reino da literatura. Sucessivamente trabalhadora doméstica, copeira e empregada de escritório, pouco hábil nas amizades, repetidamente rechaçada nos seus voos pela incompreensão da família (que pretende preservar-lhe a honra ao mesmo tempo que a empurra para a existência esperada no meio, incluindo a sedução necessária a um casamento rápido que a tire da lista de despesas familiares), parece inocente nas suas tentativas de imersão no meio literário, porque totalmente falha de uma educação formal. A meio do caminho, torna-se providencial o casamento com um homem bastante mais velho, editor e figura influente no meio intelectual de Copenhaga. Aqui brilha o que talvez seja uma das vantagens do género, que é induzir a separação, e logo a dúvida, entre o que nos é contado, com a dose de auto-justificação presente em qualquer relato pessoal, e a realidade que intuímos em volta, neste caso a suspeita de que a pobre, feia e desajeitada Tove talvez não esteja isenta de um certo dom para o arrivismo: os contactos feitos parecem ser os mais adequados a quem pretenda pôr no sítio certo aquilo que vai escrevendo. O título da última parte foi traduzido por Relações Tóxicas, que adapta a ambiguidade do original (a palavra dinamarquesa gift, que tanto significa “casados” quanto “veneno”) e reflecte a dupla natureza da narrativa, descrição tanto dos sucessivos desaires amorosos quanto do afundamento da protagonista na dependência de opiáceos, induzida por um dos homens com quem se relaciona (uma história tão cruel e inverosímil que ninguém a podia ter inventado). O relato da queda faz oscilar o leitor entre uma pena desmedida e uma certa irritação com a passiva inocência da escritora, ambiguidade de tom que de umas vezes é útil ao entrosamento ficcional e de outras amortece o interesse gerado no início pela descrição da infância.  

De uma escorreiteza desarmante, A Trilogia de Copenhaga é um livro fluente e sedutor (e aqui temos de agradecer também à habilidade de quem traduz, João Reis, a quem devemos tantas versões encantatórias da literatura escandinávica – o leitor ignorante destas línguas não pode senão desejar que os originais tenham a elegância com que nos chegam em português). Manipulador, por vezes erosivo da moral do leitor e do seu sentido crítico, de outras promovendo uma adesão empolgante, este Trilogia tem ainda o mérito de perspectivar exemplos posteriores do método auto-ficcional. Comparado com os seus congéneres, que antecipa, o livro exibe as vantagens e os defeitos de uma obra primitiva: incipiente e privada das habilidades cometidas mais tarde, conserva a inocência e a alegria de todas as primeiras tentativas.  Achamo-lo mais sincero, na abordagem do feminino, que os ademanes de Deborah Levy em Coisas que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Direito de Propriedade: monótona e frustrante no seu desconforto burguês, enunciadora apenas dos lugares comuns a qualquer decência. Falta-lhe a limpeza técnica de Annie Ernaux, antropóloga, no mesmo acto, de si mesma e de uma geração (leia-se Os Anos, para se perceber como é possível escrever no plural remetendo sempre para o fulgor da experiência própria).  Mais clara, menos caricatural, é contudo muito mais plana que Cusk, na sua trilogia de romances (A contraluz, Trânsito, Kudos), sendo que nestes a realidade pessoal parece existir sobretudo como pretexto para a possibilidade de criar uma ficção a três dimensões (veja-se como Cusk funciona ainda melhor em Segunda Casa, romance exímio, em que as personagens são como círculos em crescimento, expandindo até colidirem). A comparação mais óbvia, e por isso de resultados mais claros, é aquela que poderemos fazer com a monumental obra de Knausgårde, mais não fosse por parentescos geográficos. Mas também pelo mesma mistura entre sinceridade explícita e a necessária dose de intoxicação emocional (hipnotizar o leitor é, no fim de contas, a missão de qualquer acto literário). A Minha Luta, opus em seis volumes cimentados com o mais detalhado auto-escrutínio que a literatura recente pôs ao mundo, parece apresentar-se como a ampliação, a uma escala radical, do modelo ditlevseniano, mostrando Knausgårde a esventrar-se em público com um detalhe que a dinamarquesa não atingiu e erigindo a automutilação numa experiência que tem mais de existencial que de literária, embora ponha questões que dizem respeito a todo o labor ficcional (como devemos escolher, da biografia, o que entra e o que sai, que esta escolha é o que distingue literatura de um inventário; até que ponto devemos aproximar o tempo da narrativa do tempo gasto na leitura; qual o valor do detalhe, ou dizendo melhor, e sendo a realidade composta de detalhes, quantos devemos acumular num romance para que ele pareça real). Ambas as tentativas, porém, a de Knausgårde e a de Ditlevsen, parecem, na capacidade que têm em atrair o leitor, revelar que a vantagem original do ficcionista em relação ao biógrafo, diarista ou memorialista, de poder moldar totalmente a sua história, escolhendo o modo como pretende apelar (uma vida inventada tende a ser mais interessante do que a pobre realidade), é apenas aparente. Porque a liberdade serve, por vezes, para esconder a linguagem, enganando-nos com o enredo enquanto disfarça as tibiezas do estilo. O contrário também pode ocorrer: às vezes o bom modo de escrever brilha melhor quando o filão é pobre. É o caso.