Texto de João Oliveira Duarte
Para além de problemas estruturais ligados às estruturas de poder, a academia portuguesa transformou-se naquilo que o realizador francês Jacques Rivette chamava de “civilização de especialistas” (Alan Resnais, menos simpático, falava em “insectos comedores de papel”). A expressão é ambígua, com diversos sentidos, mais ou menos irónica – há um riso de fundo que se liberta dela, um riso borgiano que faz tremer a formulação. Em todo o caso, parece ser justa.
No campo do que se pode chamar, num sentido bastante lato do termo, teoria (não confundir com os departamentos de filosofia que, em Portugal, há muito que desapareceram), a produção académica tem produzido milhares de páginas absolutamente brilhantes, feita por académicos competentes, com contributos importantes e interessantes para os respectivos campos de estudo. No entanto, quem passe os olhos por todas essas teses sobre os mais variados assuntos e os compare com a produção noutros lugares – e não é preciso ir longe – depara-se com um curioso efeito: elas têm um funcionamento apocalíptico. Da mesma forma que um computador continuaria a escrever textos sobre árvores e rios mesmo depois de já nada disso existir à face da terra, os nossos “insectos comedores de papel” continuariam a escrever de forma brilhante páginas intermináveis sobre os mais variados assuntos depois do fim do mundo. Há piores, claro: aqueles que se pretendem actuais e que escrevem, de forma brilhante, sem dúvida, sobre assuntos na ordem do dia, ou os curiosos, aqueles que se interessam sobre tudo e sabem de tudo.
É, por isso, interessante o mais recente livro de Margarida Medeiros (“Animismo e outros ensaios”), uma académica portuguesa que tem escrito abundantemente sobre fotografia, e que decide usar todo o seu conhecimento acumulado durante décadas para pensar um conjunto de questões actuais (ligadas ao digital e ao seu impacto, sem esquecer o contributo de alguma arte contemporânea que trabalha a fotografia e o cinema). Um livro assim devia dar lugar a uma discussão alargada, devia convocar diversos intervenientes, de diversas outras áreas, mas, infelizmente, aquilo a que se chama “espaço público” encontra-se cada vez mais dividido entre a opinião especializada, que circula quase clandestinamente em revistas académicas a que ninguém tem acesso, e um outro tipo de opinião, que encontramos disseminada pelos jornais, e cujo regime de linguagem conviria interrogar de forma mais demorada (apetece, por vezes, convocar Deleuze: são aqueles que fazem da sua estupidez um dito de espírito). O objectivo, sóbrio, é sublinhado de forma sucinta por Margarida Medeiros logo ao início:
“Chamei, pois, a estes textos «ensaios» porque foram escritos sem preocupação totalitária ou exaustiva, fora de qualquer obsessão analítica ou de esgotar a reflexão sobre estes media e, sobretudo, contra a prática académica dominante dos nossos dias: artigos que se pretendem conclusivos e produtivos (…)”
Que não pretenda ser conclusivo, que queira apenas colocar questões (faltará, talvez, a perplexidade, o espanto, que são tantas vezes grandes motores do pensamento) e mapear certos conceitos, é algo de raro num universo de opinião generalizada – onde todos sabem tudo sobre tudo, onde poucos sabem parar no limiar da linguagem.
Este conjunto de ensaios sobre cinema e fotografia (o mais interessante talvez seja, efectivamente, o primeiro) acabam por mapear um território bastante conhecido de conceitos que começam por ser formulados a partir da imagem fotográfica, mas que Margarida Medeiros estende para o cinema – na realidade, tenta mostrar que entre ambos os media há uma cada vez maior interpenetração. “Ausência”, “indexicalidade”, “documento”, “transparência” (títulos dos diferentes capítulos do livro), são problemas já clássicos que se colocam à imagem fotográfica, e a primeira dúvida que pode surgir é facilmente formulável: conseguem estes conceitos dar conta do fluxo imagético avassalador que tomou conta das nossas sociedades nas últimas décadas? Não seria preciso, pelo contrário, formular novos conceitos, tentar colocar novos problemas, para explicar a relativa novidade de uma cultura visual que tomou conta de todos os momentos da nossa vida? Em que medida, por exemplo, é que o conceito de “indexicalidade” pode continuar a ser relevante, a não ser no caso de artista, analisados por Margarida Medeiros, que trabalham algures entre regimes visuais que parecem diferentes – o que não significa, evidentemente, que tenha desaparecido um certo efeito de verdade típico do cinema e da fotografia?
Num dos momentos mais interessantes, Margarida Medeiros fala num “espectador possessivo”, que seria aquele que já não faz a experiência da sala de cinema (onde o filme não pode ser parado), mas que pode agora “exercer este impulso para parar o filme”.
“Durante a projecção numa sala de cinema não podemos exercer este impulso para parar o filme, por isso pausa é uma palavra que remete para um gesto, o da suspensão da narrativa, que traz toda uma nova ontologia da relação do espectador com a imagem fílmica. De algum modo é o correlato talvez necessário de uma época, a contemporânea, na qual a informação e os acontecimentos, a experiência quotidiana, são marcados pela vertigem da velocidade, pela experiência do descontrolo e das mudanças permanentes”
Muito haveria a dizer sobre essa pausa de que fala e sobre a possibilidade de ela contrariar a “vertigem da velocidade”. Em todo o caso, mais do que uma nova ontologia sobre a relação do espectador com a imagem cinematográfica, talvez fosse necessária uma política que integrasse essa pausa dentro de um contexto mais alargado. E, aqui, mais do que contrariar “a vertigem da velocidade”, encontramos uma lógica do consumo que transportou o cinema das salas para o conforto do lar – onde está, finalmente, totalmente disponível para que o consumidor, cuja industrialização da visão, como diria o pensador francês Paul Virilio, encurtou a atenção e a disponibilidade, faça dele o que entender. A mesma lógica militarista que preside a um anúncio de televisão (não sei quantos planos num único segundo, algo apenas comparável à brevidade de violência de som e luz num cenário de guerra), preside, igualmente, à total disponibilidade com que, actualmente, os espectadores podem parar o filme quando quiserem, tornando bastante difícil, para o cinema, épater la bourgeoisie confortavelmente sentada no seu sofá.
São diversos os momentos em que Margarida Medeiros (o que foi dito anteriormente é apenas um exemplo entre muitos), mais do que dar-nos soluções, convoca a pensar problemas que são os do nosso tempo e geografia – e, uma vez mais, seria preciso uma discussão alargada, vindo de vários lugares.
De entre todos os ensaios reunidos, aquele que é mais original é, talvez, o primeiro, que dá título ao livro. Vagueando entre o cinema e a fotografia, Margarida Medeiros vê, no animismo presente em ambos os media, uma forma de partilha do “recalcado que a cultura ocidental procurou, por todos os meios ao seu alcance, domesticar, modernizar”.
“No cinema como na fotografia, a porosidade entre o real e a representação é central, para um sujeito que se deixa penetrar pelas imagens de um mundo que é o seu apesar de não o ser, de uma história que é a sua apesar de ser a de outrem (das personagens, do realizador) ou que olha numa fotografia não uma cópia da pessoa amada, mas a própria pessoa amada”
Uma vez mais, o interesse deste ponto de vista “animista” relativamente ao cinema – com o correlato fetichismo da imagem fotográfica – está naquilo que pode dar a pensar. E lembremos um dito que o realizador Alexander Kluge atribui ao filósofo alemão Adorno: “gosto muito de cinema, o que me incomoda é a imagem no ecrã”. Mais do que um ponto de vista iconoclasta – podemos dizer que Kluge parte desse dito de Adorno para construir todo um programa cinematográfico –, o que Adorno sublinha é exactamente essa “magia” que estaria em causa no cinema, esse “animismo” onde a distinção Eu/Mundo colapsa. Margarida Medeiros vê nisso a possibilidade de uma libertação, de uma outra relação entre nós e o mundo – mas podemos também dizer: é exactamente isso, essa magia inebriante, que está em causa nos produtos da grande indústria do cinema.
E se as questões são aquelas levantadas pela cultura digital, talvez a problematização tivesse que passar por outros campos – que não aquele de uma “cultura visual”. Teria interesse, por exemplo, saber o que alguém como Margarida Medeiros pensa sobre um outro “regime visual”, que já não se refere a produtos culturais, mas ao que Farocki chamava de “imagens operacionais” (são estas que estão em causa em grande parte da “cultura digital”): imagens que não são feitas para serem vistas – pensemos, por exemplo, nas portagens, onde uma câmara capta a matrícula de um carro e faz correr um processo todo ele automatizado –, que não são produzidas para serem interpretadas ou contempladas (não são feitas para o homem, mas da máquina para a máquina), que se inscrevem materialmente em dispositivos logísticos, que são destruídas momentos depois de terem sido produzidas – não entrando no arquivo da nossa cultura visual. Talvez seja aqui, no seio deste ruído de fundo visual quase totalmente inaparente, que se joga o nosso futuro.