Como descolei todas as páginas de um livro (menos uma)

Finalmente os nossos destinos cruzavam-se:á estava ele, José Megre, com o seu chapéu de aventureiro experimentado.

Para o apreciador de livros, que cuida e se preocupa com o estado dos volumes da sua biblioteca, poucas tarefas haverá mais penosas do que separar páginas coladas pela humidade. É um processo ingrato e demorado, que exige um cuidado escrupuloso: a diferença entre separar e rasgar é da espessura de uma folha de papel.
Já tentei fazê-lo com uma faca, com resultados manifestamente insatisfatórios. O instrumento mais eficaz, tanto quanto sei, são as pontas dos dedos, puxando e pressionando com o máximo de delicadeza. Quando o processo corre bem, ouve-se uma espécie de estralejar – é sinal de que os pontos de contacto são finos como alfinetes, e soltam-se com facilidade. Mas outras vezes a lentidão dos avanços é acompanhada pelo som inconfundível de camadas de papel a rasgarem-se.

Há uma agravante que vale a pena referir: as páginas com maior tendência para se colarem umas às outras são as que têm ilustrações, certamente porque a tinta, ou aquele tipo de papel específico, mais acetinado, contém ingredientes que, em contacto com a humidade, se tornam pegajosos. Ou seja, qualquer passo mal medido vai inevitavelmente estragar a imagem. Se se tratar de um livro raro, como me aconteceu recentemente, pode ser de cortar o coração.
Uma pessoa amiga tinha-me falado dele há vários anos, mas já na altura se encontrava esgotado. Passou-se uma década, talvez mais do que isso, quando dei de caras com ele na estupenda livraria Déjà Lu, na Cidadela de Cascais. Como eu vi todos os países do mundo (menos um), do piloto e viajante José Megre (1946-2009). Finalmente os nossos destinos cruzavam-se – ali estava ele, com a foto de Megre na capa, com o seu chapéu de aventureiro experimentado. Por coincidência, a pessoa amiga que me tinha falado deste livro ia fazer anos, uma data redonda, dali a pouco tempo. Achei que seria uma boa surpresa. 
Com o entusiasmo meti-o logo debaixo do braço – parecia-me um exemplar imaculado – e saí feliz e contente da Cidadela. Livros destes esgotados não aparecem todos os dias.

Ao chegar a casa pus-me a folheá-lo, percorrendo as páginas a alta velocidade com a extremidade do polegar. E comecei a sentir irregularidades:algumas folhas pareciam especialmente duras e grossas… Não foi difícil perceber porquê.
Lá me enchi de paciência e, com o coração apertado – ainda por cima o livro era para oferecer –, atirei-me à penosa tarefa de separar as páginas coladas. Quando pensava que o trabalho estava terminado, havia sempre mais uma por descolar. E outra. E outra ainda. Mesmo assim, penso que consegui aquilo a que os políticos chamam ‘controlo de danos’, ou seja, separar as páginas com estragos mínimos.
Os meus esforços esbarraram porém na última das últimas. Quando esgotei os meus recursos e percebi que só ia estragar, desisti, inspirado talvez no que fazem arqueólogos e técnicos de restauro conscienciosos: quando os meios de que dispõem não garantem um bom resultado, deixam tudo como estava para não se estragar mais. Quem sabe no futuro pode surgir uma técnica mais avançada que resolva a situação. E, no meu caso, com alguma sorte, a tal página que ficou por descolar diz respeito ao tal país que José Megre nunca visitou.