O império dos sentidos

As crianças estão mais despertas para a vida, com todos os seus sentidos muito apurados. Tudo tem mais sabor, mais cheiro, mais cor, tudo tem uma textura…

Às vezes vou no carro e dou-me conta do som compassado do pisca-pisca: ‘tac, tac, tac, tac’, como se estivesse a marcar o tempo. Transporta-me invariavelmente para os táxis que às vezes apanhava com a minha mãe e irmã quando vínhamos de casa da minha avó. Na altura aquele som ocupava o carro inteiro, como as luzes do tablier ou as vozes do rádio que ia chamando os taxistas e fazendo interferência. Hoje, absorta nos meus pensamentos, concentrada na condução ou distraída com a vida, raramente os oiço, mesmo quando estou sozinha (com as crianças é impossível ouvir o que quer que seja além delas próprias). Naquela altura tudo tinha um som, um cheiro, cores intensas. 

Quando íamos à praia podíamos ouvir o som do mar quando mergulhávamos, ouvir a nossa respiração quando nadávamos de máscara, o do motor dos barcos – que era logo motivo de alarme – ou a rebentação das ondas a libertar refrescantes gotinhas de água. Quando agora vou à praia, por vezes o cheiro no ar é o mesmo de antigamente, do creme de cenoura da Nívea, das batatas fritas que tinham um sabor único e que nos trazem à lembrança os castelos de areia ou os paraquedistas que eram largados do céu. Há cheiros que nos despertam uma série de sensações e lembranças bem guardadas da altura em que não tínhamos a preocupação de perder as crianças na praia e não precisávamos de pens para guardar tudo na memória.

 

As crianças estão mais despertas para a vida, com todos os seus sentidos muito apurados. Tudo tem mais sabor, mais cheiro, mais cor, tudo tem uma textura. São como esponjas que por onde passam absorvem a realidade ao pormenor, não só superficialmente, como às vezes acontece connosco. Por isso às vezes algumas coisas ou alguns sítios as incomodam tanto, porque estão atentos a pormenores de que nós não nos apercebemos. Como o cheiro a mofo das casas antigas, ou o odor da peixaria ou do talho. Aquele cheiro, sobretudo, e também aquelas imagens, invadem-nos sem que às vezes consigam reparar no resto. Só querem sair dali. Vivem em estreita harmonia com os sentidos e é assim que apreendem a realidade.

 

Há imensos aromas e pequenos detalhes que nos ficaram cravados na memória desde essa altura e nos remetem para situações ou fases da nossa infância ou juventude. Por vezes alguns muito familiares, que não conseguimos identificar, mas que nos fazem sentir qualquer coisa especial. Que nos lembram uma fase, uma sensação. Que nome terá esse sentido que a memória nos traz?

Das coisas que mais me deixam feliz é num dia de sol abrir a janela ou a porta de casa e sentir aquilo a que chamo o cheiro a verão. «Ah! Cheira a verão!» –  deixo escapar invariavelmente para de seguida respirar fundo e armazenar nos pulmões o mais que eles conseguirem daquele aroma mágico. É o cheiro a calor, a bom tempo, a liberdade, a festa. Que só por si podia não ser nada, mas provavelmente está ligado a recordações felizes que o tornam tão especial. 

 

As crianças, desprovidas de tantas responsabilidades e tarefas a cumprir, conseguem na sua calma estar atentas a todas estas sensações que muitas vezes deixamos escapar. Que elas possam continuar a viver, com os sentidos bem despertos e apurados, momentos novos e diversificados. Na rua, na praia ou no campo. Longe dos quartos fechados, dos computadores e dos tablets. Uma vida cheia de boas fragrâncias e cores genuínas que mais tarde recordarão com saudade.

Psicóloga na ClinicaLab

Rita de Botton

filipachasqueira@gmail.com