Tiago Pereira. “Não regressámos todos ao que éramos em 2019”

O psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses admite que estamos a assistir a um regresso à normalidade, mas não estamos todos a caminhar à mesma velocidade.

Foi coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses e reconhece que “estamos hoje” com níveis de perturbação superiores daquilo que eram os níveis pré-pandemia em Portugal. E apesar de lamentar a falta de investimento nesta área no Serviço Nacional de Saúde, refere que durante a pandemia foi dada maior prioridade à saúde mental quando comparada com a que foi dada no início da década anterior, quando “vivemos a grave situação económica em Portugal, com níveis de desemprego, de precariedade e de emigração forçada” que depois, em alguns casos, tiveram reflexos nesta altura. 

 

A pandemia trouxe mais a nu vários problemas mentais, desde burnout, passando por depressões, a ataques de pânico. O que considerou mais alarmante naquela altura? 

O que podemos perceber ao longo do período da pandemia acabou por não ser algo surpreendente, ou seja, acabou por ser ajustado face às expectativas que existiam e ao conhecimento que também existia. Embora não fosse um fenómeno idêntico, porque este foi novo, em que as pessoas ficaram em isolamento um pouco por todo o mundo durante um período tão sensível e tão significativo, mas já existiam outras experiências próximas que nos faziam prever o que acabou por acontecer. Desde logo, um aumento muito significativo às questões associadas ao sofrimento psicológico e à sintomatologia resultante de uma ideia de sofrimento, de perda associada ao isolamento, às quebras de rotinas de trabalho, às quebras de outras rotinas e a uma maior conflitualidade que houve em determinadas situações. De certa forma houve um aumento da perspetiva de um menor bem estar e de um maior sofrimento psicológico, a que se juntou um aumento daquilo que é uma dimensão já de perturbação psicológica ou até psiquiátrica, particularmente em população que ou já tinha alguma perturbação prévia e que já tinha algum nível de perturbação. Isso foi significativamente aprofundado junto da população que tinha algumas vulnerabilidades pessoais e sociais. Estamos a falar, por exemplo, das mulheres que foram particularmente mais impactadas. Também as pessoas que vivenciaram situações de desemprego vivenciaram a pandemia numa maior situação de isolamento e, por isso, foram mais impactadas e, desse ponto de vista, tiveram maior prevalência daquilo que foi o aumento da perturbação. O que é que assistimos ao longo do tempo? Com o avançar do tempo e com o processo de certa forma de adaptação que as pessoas foram conseguindo, tendo em conta as suas situações de vida, o nível de sofrimento psicológico foi, na maioria das pessoas, baixando e não evoluindo para uma perturbação, mas em algumas pessoas isso aconteceu. Aquilo que os estudos estão a demonstrar, e já com alguma maior amplitude temporal, é que deste sofrimento psicológico e desta perturbação, em algumas dessas pessoas manteve-se e hoje estamos com níveis de perturbação superiores face ao que se verifica aos níveis de pré-pandemia em Portugal. No entanto, muito daquilo que foi a dimensão do sofrimento psicológico, felizmente, foi-se batendo com o tempo e as pessoas foram-se adaptando às suas novas circunstâncias. Entretanto, outra surgiu ou foi acumulada com as situações que vivemos atualmente que é a pressão socioeconómica, resultante do aumento constante da inflação, que cria alguma ansiedade financeira, aliada à vivência do período de guerra. 

Estava à espera que as pessoas fossem tão afetadas psicologicamente durante a pandemia? 

Não é fácil responder a essa pergunta porque fomos vivendo a pandemia muito dia-a-dia e foi muito imprevisível. Sabíamos que essa imprevisibilidade ia ter um impacto, mas não posso dizer que estava à espera porque na verdade nunca tivemos uma perceção completamente clara de como é que poderia ser a evolução, quanto tempo é que iria durar, qual seria o seu impacto, quais seriam os períodos de isolamento e com que duração. Estar à espera desse ponto de vista seria difícil porque era tudo muito imprevisível. Agora, sabendo quais seriam os períodos de tempo e as alterações que seriam provocadas, posso dizer que sim, mas, para isso, teríamos de saber que o que iria acontecer seria de certa forma expectável com aquilo que foi o impacto que assistimos em termos de saúde psicológica ou de saúde mental, quer ao nível do sofrimento, quer ao nível da perturbação. Ao momento e à época era difícil de prever, na medida em que foi sempre difícil prever quais seriam os meses subsequentes com tantas alterações e com tanta imprevisibilidade como as que se verificaram. Por essa via, seria difícil e também foi por isso que fomos sempre alertando que o mais importante era garantir que as pessoas que procurassem apoio e ajuda poderiam aceder a esse mesmo apoio e ajuda no momento em que dela necessitavam, porque isso seria altamente promotor e preventivo da não emergência de problemas mais significativos que infelizmente vieram a comprovar e que existiram em algumas situações.

Há dois anos muitos diziam que não queriam voltar a grandes ajuntamentos, mas pelas imagens que vimos de festivais de música, dos santos popular, etc. sente que esse receio já passou, ou pelo menos, para a maioria das pessoas? 

É o regresso à questão da adaptação, as pessoas tendem a adaptar-se à situação que estão a vivenciar e a grande maioria das pessoas, tal como se adaptou na situação da pandemia também se ajusta relativamente às novas dinâmicas. É a ideia de ir jantar ou não ir jantar fora, tentando maior segurança e maior previsibilidade, isto é, mantendo algumas questões associadas à segurança, ao número de pessoas e até tendo em conta outros comportamentos. Ou seja, essas mesmas pessoas também se adaptam a uma nova circunstância, que é a circunstância atual, mas como essas restrições já são muito diminutas ou até inexistentes já não têm essa necessidade, por via da segurança e da previsibilidade de ter esse controlo. O que assistimos neste momento? Como já existiam pessoas na pré-pandemia com mais algumas fobias sociais, alguma ansiedade em determinados momentos sociais com outras pessoas isso acabou por ser aprofundado e é hoje maior, logo mais significativo em mais pessoas do que era anteriormente à pandemia, por via daquilo que foram também as imagens a que assistiram e a outras componentes. Mas isso trata-se e é um processo de adaptação que depois até se junta a um processo também associado àquilo que chamamos o grupo e o grupo social. Ou seja, sinto-me normalmente bem a fazer o que as pessoas que estão à minha volta também estão a fazer. Se sou um jovem e tenho um conjunto de rituais que são importantes para mim, como ir a um festival ou ter uma iniciativa na universidade ou ir a uma romaria ou a uma festa popular na localidade onde estou, se a maioria das pessoas não se sente bem com isso então tendo a estar próximo dessa maioria e portanto, também passo a ter esse cuidado. Mas a partir do momento em que a maioria das pessoas se passa a sentir bem com isso e a procurar esse tipo de atividade, esse tipo de iniciativas que são importantes para o seu bem estar, então as pessoas tendem a ir com o grupo e a retomar esse tipo de dinâmicas que são tão importantes em diferentes fases da vida, que depois se expressam em atividades culturais, em atividades religiosas, em atividades desportivas ou num outro conjunto muito significativo de atividades. 

Essa participação, muitas vezes, também acaba por ser importante para a saúde mental…

É importante esse tipo de iniciativas, porque são momentos normalmente de celebração, em que estamos próximos de outras pessoas, pessoas que identificamos como pessoas próximas de nós, quer seja num concerto, em que as pessoas gostam daquele tipo de música, quer seja no evento desportivo, onde estou com as pessoas do meu clube ou do meu país ou numa localidade, quando se trata de uma festa ou de uma romaria, em que as pessoas da minha localidade regressam à aldeia. Isso tudo reforça uma identidade e uma proximidade com os outros, que é absolutamente fundamental para nós, para a nossa perceção do bem-estar e também para a nossa dimensão de saúde mental. Mas há ainda um outro elemento que é a ideia do regresso, ou seja, a ideia de termos sido desafiados pela pandemia, de termos feito individual e coletivamente um grande esforço e grandes alterações face àquilo que era o nosso quotidiano e termos de, certa forma, superado esse momento. Por isso, este regresso a determinadas rotinas e a um quotidiano que tínhamos na pré-pandemia é também um momento de celebração e de partilha, como se de uma vitória se tratasse, enquanto indivíduo e enquanto comunidade. E isso também é muito relevante para a nossa saúde mental e também é muito relevante até para desafios futuros que teremos de enfrentar enquanto indivíduos e enquanto comunidade, porque recorda-nos que é possível e que conseguimos ou podemos superar este tipo de desafios. 

É uma espécie do regresso à vida normal…

É um regresso a um quotidiano, mas não regressa tudo ao que era em 2019. Por isso, disse há pouco que algumas pessoas sentem mais dificuldade neste regresso e isso é muito evidente. Por exemplo, aquilo que é a ansiedade e a dimensão da ansiedade mais aguda, às vezes, até com ataques de pânico e outras componentes aumentou muito significativamente nas crianças e nos jovens. Hoje é muito frequente esse tipo de questões surgirem no dia-a-dia das escolas e isso aumentou muito significativamente, daí ter dito que este regresso não foi igual para todas as pessoas e que não foi equitativo deste ponto de vista, porque não foi idêntico para todas as pessoas. Mas também há mudanças que vieram para ficar. Há hoje, provavelmente, muito mais reconhecimento e atenção a determinados comportamentos de autoproteção que as pessoas passaram a adotar em determinadas situações. Há, por exemplo, no contexto de trabalho mudanças ainda assim significativas e houve um aprofundamento muito grande e muito mais rápido, por via da pandemia daquilo que são os atuais modelos híbridos de trabalho. Há outro tipo de alterações face àquilo que eram rotinas de férias e de outras questões que as pessoas tinham e, portanto, nem todos regressam a 100% ao que era antes. Há é um processo de ajuste entre aquilo que é a possibilidade do regresso ao quotidiano e algumas alterações que tivemos na nossa vida, algumas delas que nos trouxeram mais conforto. Ou seja, de certa forma também nos habituamos e nos adaptamos a essas alterações e também não queremos agora de um momento para o outro abdicar delas. E isso assiste-se, por exemplo, com as questões do teletrabalho. Não é possível para todas as pessoas, mas para quem é possível há uma tendência para se procurar, no mínimo, um modelo híbrido de trabalho, porque isso permite uma melhor conciliação daquilo que é a sua vida pessoal com a vida profissional. E isso é algo que se mantém hoje. 

O modelo híbrido foi considerado um dos melhores para os trabalhadores porque permite conciliar a vida pessoal com a profissional e não estar totalmente ausente do contacto físico no trabalho…

E é exatamente o que tem acontecido. Há hoje mais investigação para que estes dados sejam produzidos, mas também foi preciso passar algum tempo para analisar a utilização de modelos, mas os híbridos estão a demonstrar que, quando isto é possível na atividade profissional, são os que trazem não apenas maior satisfação para os trabalhadores e para as equipas no geral, mas também maiores ganhos em termos de produtividade, menores erros e diminuição dos riscos psicossociais e, por isso, estão a ganhar algum espaço. Modelos híbridos esses que conciliam tempos de teletrabalho com uma maior facilidade do ponto de vista da gestão de alguns horários e a conciliação com a vida pessoal, aliado a uma menor perda de tempo em deslocações entre casa e trabalha e até outros custos que os trabalhadores têm associados, mantendo, ao mesmo tempo, momentos e períodos de conexão e de relação direta entre trabalhadores e em equipas que são absolutamente fundamentais para reforçar o trabalho em equipa, a proximidade e para garantir que não há uma perda de uma questão tão importante na nossa vida adulta, porque, na verdade, as relações que estabelecemos no contexto de trabalho são relações muito marcantes na vida adulta. Muitas delas até se transformam, por vezes, em relações pessoais de amizade entre colegas de trabalho. E isso tem um papel muito importante também naquilo que é o bem estar na nossa vida adulta e, portanto, a conciliação destes dois aspetos é aquilo que parece produzir, neste momento, melhor efeito, quer ao nível da satisfação como lhe dizia, quer ao nível daquilo que são os resultados em termos de trabalho.

No final de 2021 disse que era impossível recuperarmos o nosso país se não recuperarmos as pessoas. Sentiu esses progressos? 

Enquanto país devemos investir mais significativamente nesse processo. Ao longo deste período foram realizadas algumas iniciativas, nomeadamente para as crianças e jovens, em que se assistiu a um reforço grande em relação àquilo que é a atenção às questões da saúde mental, mas é ainda muito insuficiente. Estamos a este nível muito pressionados, pois todas as gerações estão com níveis de sofrimento e até de perturbação instalada mais significativos do que as gerações anteriores. Ou seja, as crianças estão hoje mais impactadas do que as crianças estavam há alguns anos e isto faz com que todas as gerações sucessivas sintam isso. Há um problema grave hoje, ao nível dos jovens jovens, por exemplo, em contexto universitário. E apesar de termos assistido a alguma preparação, como disse no início, particularmente relativamente às pessoas com sofrimento psicológico, o investimento feito nas dimensões de prevenção e de intervenção precoce, ou seja, próxima das pessoas que estão em sofrimento foi menos significativo do que aquele que devia ter acontecido. Não posso dizer que houve um investimento total, particularmente no contexto do Serviço Nacional de Saúde, onde continuam a existir dificuldades de acesso muito, muito, muito significativas. Há uma iniquidade muito grande, em que as pessoas com menos recursos e com mais vulnerabilidades são as que têm maior dificuldade em aceder a serviços de psicologia e de saúde mental no geral e não o podem fazer no contexto privado. Infelizmente, esse acesso não está a acontecer, embora também deva assinalar, porque isso é justo fazê-lo, hoje há uma atenção da sociedade e da sociedade civil completamente diferente, por exemplo, da atenção que foi dada quando no início da década anterior vivemos a grave situação económica em Portugal, com níveis de desemprego, de precariedade, de emigração forçada muito, muito significativos. E aí pouco se falou sobre saúde mental e chegámos à pandemia muito penalizados pelos efeitos a médio e longo prazo desses períodos de grave crise socioeconómica. Hoje fala-se de outra forma, o tema está presente no espaço público e fala-se mais sobre estes temas. As pessoas estão muito mais despertas, estão muito mais atentas, reclamam muito mais iniciativas neste âmbito. Falta que o Estado também assuma, particularmente no Serviço Nacional de Saúde, uma atitude muito mais assertiva de resposta às necessidades das pessoas e que de uma forma rápida, próxima e contingente permita que elas melhor se adaptem às suas condições de vida, aos seus acontecimentos de vida mais significativos.

E aquela ideia de ir a um psicólogo, a um psiquiatra era visto com um estigma, em que muitos preferiam falar sobre os seus problemas com amigos ou colegas já desapareceu? Parece que já entrou no dia-a-dia e nas necessidades dos portugueses… 

Disso não tenho nenhuma dúvidas. Não poderei dizer de todo que o estigma desapareceu ou foi ultrapassado. Isso não é verdade. Mas o estigma deixou de ser a principal razão para as pessoas não terem serviços nesta área. A principal razão para as pessoas não acederem a serviços nesta área é existirem ou não existirem serviços nesta área acessíveis às pessoas, essa é a principal razão e já não é o estigma. Houve um aumento significativo da procura. Por exemplo, fizemos ainda no final de 2021, um inquérito socioprofissional e o aumento da procura reportado por parte dos psicólogos portugueses era mais de 30%, portanto, a procura aumentou muito significativamente. O que acontece é que não há hoje psicólogo que trabalhe no serviço público ou que, às vezes, nem trabalha no serviço público tenha espaço e tempo para receber mais pessoas, porque normalmente os serviços estão cheios, porque são insuficientes. E essa é a principal razão hoje para as pessoas não acederem a serviços nesta área e não o estigma. Estigma esse que, ainda existindo, tenderá a desaparecer a partir do momento em que as pessoas também possam contactar com este tipo de serviços, porque onde resta estigma é junto de pessoas que, muitas vezes, não têm acesso a este tipo de serviços e a este tipo de apoio, que é um apoio muito, muito relevante com evidência científica que demonstra a sua pertinência e os seus resultados e a forma como pode apoiar as pessoas e, por essa via, ajudar à sua recuperação e à recuperação do país.