“Isabelino de los Tristes Destinos”

Isabelino Gradín era um jogador com tamanho estilo que precisava de entrar na poesia – Juan del Riego foi o seu poeta.

Por Afonso de Melo

Isabelino é um estilo. Sobretudo de mobiliário. E não, não tem nada de inglês, como o estilo vitoriano, por exemplo. É fruto da existência de Isabel II de Espanha, conhecida por La de los Tristes Destinos, e aplica-se às artes decorativas, tal e qual como o que nasceu do nome da Rainha Victoria Augusta. Isabelino também foi o nome de Gradín um rapaz de Montevidéu neto de escravos que tinham vindo do exótico Lesotho, um país enclave da África do Sul. Ah! E Isabelino tinha estilo. E que estilo! Isabelino foi todo ele um estilista a merecer trovas e poemas. Um estilo que já exibia a rodos quando disputava bolas de trapos nas ruelas estreitas do Barrio de Palermo onde nasceu em 8 de julho de 1897.

Aos 47 anos, Isabelino Gradín estava morto. Doença fulminante. Tão fulminante que nem os médicos ficaram de acordo no registo da certidão de óbito. Se foi pobre à nascença, morreu na miséria. Se foi rápido a correr, foi rápido a morrer. Afinal a velocidade fazia parte da sua personalidade. Quando não estava jugando pelota nas calles estava na Plaza de Deportes n.º 1 a disputar provas de 200 e 400 metros e, sobretudo, a ganhá-las assim a modos como com uma perna às costas. Entre 1918 e 1920 varreu vários recordes sul-americanos. Mas tinha saudades da sua bichinha: a bola. Começou a travar-se o dilema – o futebol ou as provas de atletismo? E o dilema não vivia apenas dentro da cabeça de Gradín, espalhava-se pelos cafés de Montevidéu e estendia-se aos representantes máximos das federações. A Federação de Atletismo convenceu Gradín a participar nos Jogos Sul-Americanos de 1922, realizados no Brasil, ganhou o ouro nos 400 metros e, saindo por último na equipa uruguaia da estafeta de 4X400 recuperou de um atraso de quase meia pista para cortar a meta em primeiro. O brasileiros fizeram uma berraria: que Gradín tinha beneficiado de uma invasão de adeptos que se espalhou espontaneamente pela pista e que a vitória ficava manchada. Tal como lhe deram o ouro, tiraram-lho. Pacífico, no seu estilo tão isabelino, Isabelino Gradín encolheu os ombros e foi jogar futebol tornando-se no primeiro negro a vestir a camisola azul-celeste da seleção uruguaia, em julho de 1915.

Quando, aos 18 anos, começou a treinar-se com a equipa principal do Peñarol não houve quem não adivinhasse um futuro formidável para aquele trinca-espinhas que fazia maravilhas com o pé esquerdo, entortando os olhos aos adversários, e chutando com o pé direito com uma violência inaudita. O aspeto de esfomeado que exibia irritava particularmente os oponentes que procuram morder-lhe as canelas como chacais enraivecidos. Isabelino não ligava peva. Era daqueles capazes de fintarem a própria sombra. E de fascinarem um poeta, como aconteceu com o modernista peruano que emigrara para o Uruguai – Juan Parra del Riego. Lá volto eu à questão de estilo. «Palpitante y jubiloso/como el grito que se lanza de repente a un aviador/todo así claro y nervioso/yo te canto, ¡oh jugador maravilloso!/que hoy has puesto el pecho mío como un trémulo tambor». O poema ganhou o nome de Polirritmo al Jugador de Fútbol.

Oh! Jogador maravilhoso! Um poema que Isabelino agradecia com mais uma das suas jogadas selecionadas fingindo que ia meter a bola por um lado e passar o defesa pelo outro mas, no último milésimo de segundo, seguindo ambos de mão dada, ele e a bola, pela curva antecipadamente escolhida: «Ágil/fino/alado/eléctrico/repentino/delicado/fulminante/yo te vi en la tarde olímpica jugar./Mi alma estaba oscura y torpe de un secreto sollozante/pero cuando rasgó el pito emocionante/y te vi correr…saltar…».

Há jogadores que ficaram injustamente fora da poesia. Porque é na poesia do futebol, na sua metafísica, que se chega ao âmago do golo capaz de rebentar um coração. Ou de apenas obrigar um fulano a tirar a caneta do bolso do paletó e rabiscar o que acabou de ver com olhos de poeta.

Isabelino Gradín fascinou-se por Gradín e tirou a caneta do bolso do paletó: «Y te vi, Gradín/bronce vivo de la múltiple actitud/zigzagueante espadachín/del golkeeper cazador/de ese pájaro violento/que le silba a la pelota por el viento». O poema é tão extenso como foram os recursos libertários do ilusionista Gradín. E termina numa explosão: «De una salva luminosa de sombreros/que se van hasta la luna a gritarle allá:/¡Gradín! ¡Gradín! ¡Gradín!». Como nas touradas da Plaza de Toros da Cidade do México, a maior do mundo, os fanático de Gradín silenciavam-se por completo quando o viam aproximar-se felinamente do defesa que lhe ficava mais próximo. Esperava pelo ataque, pela marrada, pelo disparo brutal dos pitons às suas canelas fininhas. Quando ele chegava já Isabelino ia à procura da próxima vítima, deixando o infeliz sentado no chão e fazendo ouvir uma voz em uníssono: «Olé Gradín!» Uma epilepsia coletiva tomava conta dos hinchas do Peñarol e quando o golo vinha Gradín saltava socando o ar de uma forma graciosa de bailarino perdido. Era o seu estilo. O estilo de Isabelino.

afonso.melo@newsplex.pt