Hoje, o futuro inspira-nos visões terríficas. Basta ler os cabeçalhos que vão saindo diariamente nos principais títulos da imprensa mundial. Não é preciso mais do que isso, nem é preciso uma inclinação paranoica para nos sentirmos puxados, empurrados em todas as direções por uma realidade que, se por um lado, a todo o momento nos belisca, exigindo que tenhamos consciência desta e daquela crise, de uma série de fenómenos que deixam inscritos por toda a parte e em letras garrafais avisos absurdamente funestos sobre o dia de amanhã e os que se seguirão, por outro, tenta por todos os meios dissuadir-nos de assumirmos posicionamentos radicais ou ações drásticas no sentido de contrariar os impactos destrutivos da civilização moderna. Somos, assim, confrontados com uma realidade esquizofrénica, que alimenta um sentido de urgência e até mesmo de um certo terror, falando na importância de cultivarmos a nível particular atitudes conscienciosas para atenuar a catástrofe, enquanto no plano mais geral e político, aplica todos os meios de ordem retórica e moral para coagir-nos ao conformismo, usando da repressão e da violência de Estado sempre que algum grupo ou organização ativista procura formas de sabotar as estruturas alinhadas com sectores de produção que a cada dia lucram monstruosamente através da degradação das condições de vida no planeta. Ora, perante este cenário, Ted Kaczynski, o homem que ficou conhecido como o Unabomber, terá sido quem demonstrou melhor que ninguém como a linha que separa o revolucionário do terrorista se tornou demasiado ténue, e como essa indistinção interessa sobretudo àqueles que, seja por que caminhos for, procuram sempre chegar à conclusão que não há nada a fazer.
Theodore J. Kaczynski tem no seu percurso uma série de elementos que facilitam a elaboração de mitos, a começar pela condição de miúdo sobredotado, um rapaz solitário que tinha dificuldade em dar-se com as outras crianças da sua idade, e que, mais tarde, viria a culpar os pais por terem ficado radiantes com a ideia de terem posto no mundo um génio e que tudo fizeram para incentivar as suas capacidades intelectuais ao mesmo tempo que descuravam no afeto, na construção emocional que lhe permitiria ter-se sentido mais acolhido. O certo é que foi desde cedo encarado como um prodígio, e em breve traçaria um percurso académico brilhante como estrela da matemática pura, formando-se em Harvard, mas depois de um período em que todos esperavam dele grandes feitos retirou-se de súbito, vivendo como recluso e encetando uma campanha de terror de 17 anos a partir de uma cabana em Lincoln, no estado de Montana. Construída por ele mesmo, com a ajuda do irmão, foi ali que se converteu numa espécie de eremita, na linha dos apaixonantes escritos de pensadores como Henry David Thoreau, reduzindo ao essencial as suas necessidades, abdicando de todo o comodismo, toda a superficialidade. E, de tempos a tempos, fabricando bombas caseiras que expedia para alvos escolhidos a dedo usando o serviço postal norte-americano.
Kaczynski escolheu os seus alvos de uma forma que, não sendo aleatória, continua a desconcertar aqueles que se debruçam sobre o seu caso, atacando académicos, homens de negócios e civis entre 1978 e 1995, provocando a morte de três pessoas e ferindo 23, e isto com o objetivo declarado de fomentar o colapso da ordem social moderna. Foi, em todo o caso, uma campanha de terror que teve uma enorme repercussão nos meios mediáticos, tenso sido amplamente divulgado o facto de algumas das suas vítimas terem perdido os dedos ao abrir um pacote armadilhado. Assim, o simples ato de lerem o correio gerava um certo nervosismo em muitos norte-americanos. Este período de ameaça latente terminou depois do que foi frequentemente descrito como a mais longa e mais dispendiosa caça ao homem da história americana.
Agora, Kaczynski foi encontrado morto na sua cela, no hospital-prisão de Butner, estado da Carolina do Norte, no sábado passado. A informação foi confirmada por um porta-voz da agência federal responsável pelo sistema prisional, sem ter sido adiantada a causa da morte, mas, no seu obituário, o The New York Times revelava que três pessoas familiarizadas com a situação confirmaram que Kaczynski se suicidou. Tinha 81 anos.
Depois da sua captura por cerca de 40 agentes do FBI em abril de 1996 ter sido notícia em todo o mundo, levando uma sensação de enorme alívio aos lares americanos e de que o bem por fim triunfara, todo o argumento e as motivações ideológicas de que Kaczynski se serviu para justificar os seus atentados, em lugar de serem sujeitos a uma verdadeira análise e debate, foram atropelados por um esforço mediático que tentou por todos os meios dar a ideia de que não passavam dos devaneios de mais outra personagem demente que teria procurado justificar a sua sede de sangue e os seus crimes doentios sob a capa de uma campanha para despertar as consciências. Várias das suas vítimas foram chamadas a assumir um papel na esfera pública no sentido de fazer corar quem quer que ousasse abordar com alguma seriedade um manifesto de 35 mil palavras que ele escrevera num esforço para forçar o mundo a encarar os perigos da sociedade industrializada e da forma como a tecnologia se estava a impor em todos os aspetos da vida moderna.
Os psicólogos chamados a testemunhar no julgamento serviram-se dos seus escritos e tentaram forçar a tese de que ali se encontrava a prova de uma suposta esquizofrenia. Por outro lado, os seus advogados montaram, contra a sua vontade, uma defesa de insanidade – e quando Kaczynski se rebelou e procurou representar-se a si próprio em tribunal, arriscando a pena de morte, os advogados argumentaram que isto era mais um sinal que comprovava a sua insanidade. No entanto, muitos não deixaram de denunciar os aspetos orwellianos do julgamento no qual acabou poupado à pena de morte, com o tribunal a transformar-se num circo mediático em que havia todo o interesse em pintar Kaczynski como um paranoico esquizofrénico, mas «altamente funcional». William Finnegan, que cobriu o julgamento em 1998, publicando um artigo na The New Yorker com o título Defending the Unabomber, disse já em 2011 que tinha ficado convencido de que «foi constituída uma aliança de conveniência entre os procuradores, os psiquiatras, especialistas de prevenção da pena de morte, os próprios advogados de defesa e até o juiz, para levar Kaczynski a xeque-mate, obrigando-o a assumir-se como culpado e a receber a pena perpétua, sem margem para um pedido de liberdade condicional».
Finnegan adiantou que, «por uma variedade de razões, ninguém queria que o Unabomber tivesse o seu dia em tribunal, onde poderia ter explicado por que fez o que fez». E lembrou o que James Q. Wilson, um cientista social conservador, escreveu na altura num artigo de opinião no The New York Times, depois de analisar o manifesto do Unabomber: «Se isto é obra de um louco, então os escritos de muitos filósofos políticos – Jean Jacques Rousseau, Tom Paine, Karl Marx – eram pouco mais sãos que ele».
Em 1998, Kaczynski foi condenado a quatro sentenças de prisão perpétua, e mais 30 anos, por uma campanha de terror que deixou universidades e instituições de todo o país em pânico. Ele mesmo admitiu a autoria de 16 atentados cometidos entre 1978 e 1995, e nunca fez outra coisa senão preocupar-se em esclarecer as suas motivações.
A maior parte da sentença foi cumprida na prisão federal Supermax em Florence, no Colorado, uma unidade de segurança máxima onde cumprem pena alguns dos mais notórios e perigosos reclusos dos EUA, incluindo vários indivíduos condenados por terrorismo. Na cela minúscula da prisão onde viveu mais de duas décadas, antes de ser transferido, em 2021, para o hospital-prisão de Butner para receber tratamento devido aos problemas de saúde relacionados com um cancro terminal, Kaczynski passava 23 horas por dia trancado, e ocupava a maior parte do seu tempo mantendo correspondência com milhares de pessoas em todo mundo. E foi assim, no um para um, que se aplicou a corrigir a perceção pública que, segundo ele, foi distorcida para dar imagem de um tipo brilhante que a dada altura fritou a molécula.
Foi logo após a sua detenção e enquanto decorria o julgamento que todos os aspetos da sua extraordinária biografia foram emiuçados na imprensa, tendo vindo, então, à tona como em miúdo, Kaczynski obtivera 167 pontos num teste de Q.I., como entraram em Harvard aos 16 anos, e como, mais tarde, ao fazer a pós-graduação, na Universidade de Michigan, apresentou teses num campo da matemática tão esotérico que um membro do seu comité de dissertação estimou que apenas 10 ou 12 pessoas no país seriam capazes de acompanhar o seu raciocínio. Aos 25 anos, tornava-se o mais novo professor assistente na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Mas não deu mais do que dois anos à casa, ficando apenas o necessário para juntar algum dinheiro e poder virar costas à civilização. A partir de 1971 e até à sua prisão, viveu na tal cabana, onde não tinha acesso a água corrente, e fazia as suas leituras à luz de velas caseiras, alimentando-se de coelhos. Para a larga maioria dos leitores que acompanharam o caso pelos jornais, o Unabomber não passava de mais outro psicopata, e se não havia maneira de o fritarem na cadeira elétrica, era bom que o trancassem e deitassem fora a chave. O termo «Unabomber», por esta altura, foi adotado pelo imaginário popular como uma forma de se referir a qualquer crânio que, por excesso de atividade nervosa, viesse a configurar o tipo de personagem desajustada, com uma visão particularmente ácida da sociedade, e que eventualmente pudesse fantasiar com a hipótese de levar a cabo algum tipo de ação aterradora.
No entanto, basta abrir hoje os jornais para perceber como, de lá para cá, a perspetiva sobre o impacto destrutivo da civilização em que vivemos deu origem a toda uma nova relação crítica com as sociedades hiperindustrializadas, e como a crescente pressão da crise climática levou o movimento ambientalista, que na altura era ainda um fenómeno largamente marginal e associado à contracultura, a tornar-se uma das causas que tem levado a um redespertar político das gerações mais novas, e a essa luz Kaczynski tem vindo a ser encarado como uma figura presciente e que teve uma clara perceção muito clara dos desafios e dos perigos de as sociedades terem voltado costas à natureza, degradando as condições ambientais. No seu manifesto, ele denunciava os fatores de alienação num momento em que as pessoas eram levadas a assumir uma dependência cada vez maior da tecnologia. Sem se referir ao aquecimento global ou à internet, Kaczynski prefigurou o ambiente de terror generalizado em que vivemos atualmente devido aos efeitos da catástrofe provocada pela submersão das consciências nesse sexto continente virtual, e quando todos os dias surgem relatórios e testemunhos de especialistas que dão conta dos efeitos que o uso das redes sociais tem provocado na saúde mental da população, e particularmente dos mais jovens, quando surgem diariamente estudos a indicar a forma como «os delírios da tecnoengenharia» têm conduzido a um regime de predação necrófila, e quando os decisores políticos continuam a protelar as medidas que traduziriam um pé no travão para evitar que o estado de catástrofe se agudize e gere uma situação que torne insustentável a vida no planeta. Assim, a notícia do suicídio de Kaczynski, embora sem honras de primeira página, ou de abrir os noticiários, rima com todos os indicadores que deixam claro como estamos a assistir a um processo de extinção sem precedentes, numa altura em que dois terços da população de insetos, dois terços da população de mamíferos selvagens, dois terços das populações de árvores já desapareceram.
Se na altura em que foi preso, o Manifesto do Unabomber, como ficou conhecido o texto “A Sociedade Industrial e o Seu Futuro” que Kaczynski conseguiu ver publicado pelo The New York Times e pelo The Washington Post, prometendo que poria fim aos atentados, a larga maioria dos norte-americanos não estavam dispostos a discutir os eventuais méritos do seu argumento, o facto é que, perante todos os sinais de desgraça iminente, cada vez maiores setores têm abandonado a cautela e assumido que, embora os métodos de Kaczynski sejam indefensáveis, o seu poder de previsão sobre aquilo que se avizinhava provaram ter um alcance realmente profético. Assim, e ao longo da última década, o fascínio por Kaczynski e pelo seu manifesto ressurgiu, e este tornou-se uma figura de culto com grande repercussão no espaço público, com a Netflix a estrear em 2021 o filme Ted K, poucos anos depois de ter feito chegar ao nosso país Manhunt: Unabomber, a primeira série de ficção do Canal Discovery, que surpreendia não apenas pela ousadia do enredo, como pelas espinhosas e tão atuais questões que levantava, e ainda pelos valores de produção e o elenco de luxo, liderado por Sam Worthington e Paul Bettany. E não há sinal de estar a abrandar o interesse nesta figura que de forma tão notável e infame lançou uma crítica sobre o futuro tecnológico em que estamos a viver, e isto quando o espaço noticioso se vê saturado dos distúrbios que de algum modo têm origem ou se disseminam nas redes sociais e, particularmente, num momento em que, contra todos os alertas, vemos uma série de ferramentas e algoritmos de inteligência artificial a assumir um relevo cada vez maior na nossa vida, muitas vezes contra a nossa vontade. Assim, se em 2018, a revista Wired anunciava «o estranho e furioso renascimento» do Unabomber nas comunidades online, e se a revista New York o caracterizava como «um profeta improvável para uma nova geração de acólitos», não é de estranhar que muitas das pessoas com quem Kaczynski se correspondia, entre elas uma série de jornalistas e jovens estudantes intrigados com a sua leitura do mundo em que vivemos, estejam a participar num processo revisionista, deixando claro que o juízo final sobre as ações do Unabomber está ainda em suspenso.
Recorde-se, de resto, que Kaczynski só foi apanhado porque estava tão empenhado em que a sua mensagem chegasse ao público. Depois de mais de década e meia sem dar um passo, com crescente pressão do Departamento de Estado e um enorme investimento de meios e pessoal, o FBI parecia estar a perseguir a própria cauda. E mesmo se, por desespero, acabou por se virar para técnicas como a linguística forense – até ali encarada como uma disciplina algo esotérica –, talvez não tivesse capturado um dos mais enigmáticos criminosos com que se confrontou, não fosse o próprio Kaczynski a dar o passo que deixaria a sua cauda de fora. Viria a ser identificado pelo próprio irmão e pela cunhada depois de, no início de 1995, o ano anterior à sua captura, ter proposto a seguinte ‘barganha’: se o The New York Times publicasse um denso ensaio de 35 mil palavras chamado “A Sociedade Industrial e o Seu Futuro” assinado por um grupo que estaria por trás dos atentados e que se identificava com a sigla “FC” (Freedom Club), não voltaria a enviar pacotes explosivos. Em junho, o The Times e o Post aceitaram a proposta do Unabomber, citando uma recomendação do F.B.I. e do Departamento de Justiça, tendo dividido o custo da impressão do ensaio, intitulado. O Post distribuiu-o online e ainda como um suplemento de oito páginas no jornal impresso de 19 de setembro. No período em que as direções dos jornais pesavam os prós e os contras de ceder ao pedido do terrorista, o que terá levado a que se decidissem foi a convicção de alguns membros do FBI de que o texto era demasiado denso e idiossincrático para ser bem recebido pelo público. Um colunista chegou a classificar o manifesto como o "bocejo do Unabomber". Hoje é evidente como foram eles que não perceberam nada e subestimaram o alcance do texto. Mas, num aspeto, a decisão de publicar o texto foi um triunfo, pois foi depois de o ler que o irmão de Ted deu pelas alarmantes semelhanças de algumas das noções, e até frases, entre aquele documento e as cartas que Ted lhe dirigiu durante anos.
Sean Fleming, um investigador da Universidade de Nottingham, está a escrever o primeiro estudo aprofundado sobre o pensamento do Unabomber, e que passou os últimos anos a vasculhar os arquivos que contam com diários, cartas, rascunhos, e a correspondência da prisão que o próprio Kaczynski foi copiando à mão e se preocupou em que pudesse estar disponível para consulta. Fleming vinca que até lhe foi possível aceder “às suas listas de compras e de materiais para fazer bombas". E outro aspeto que este investigador vem relembrar é que o manifesto já na altura em que foi inicialmente divulgado teve uma repercussão bem maior do que o FBI esperava, tendo esgotada nas bancas de jornais em poucos dias. «Havia pessoas a telefonar freneticamente para o Washington Post a perguntar onde podiam obter um exemplar. Depois, pequenas editoras independentes e ligadas a grupos anarquistas, começaram a publicar edições de bolso e versões em panfleto.» O manifesto não teve o mesmo nível de divulgação deste lado do Atlântico, e, um ano depois de Kaczynski ter sido detido, só dois países na Europa viram aparecer nas livrarias uma edição comercial do manifesto: a portuguesa com o selo da Fenda, de Vasco Santos, tendo havido também uma edição francesa, mas que teve de ser impressa na Suíça.
Com o passar dos anos, Kaczynski nunca mostrou sinais de arrependimento ou de ter uma consciência torturada, e nas conversas que foi mantendo com jornalistas e pessoas que mostravam simpatia pelas suas ideias, foi reforçando que achava que a troca (o ter perdido a liberdade para ver a sua mensagem difundida) tinha valido a pena. Fleming garante, contudo, que «nos seus primeiros escritos… ele estava a tentar organizar um grupo de pressão anti-tecnologia antes de se virar para a violência». Este investigador indica ainda que, numa entrevista de 1999, Kaczynski deixa claro que entende que, por essa altura, os seus esforços estavam finalmente a dar frutos. Fleming disse ao The Guardian que, nos últimos anos, ele parecia estar absolutamente convencido de a década de 2020 era aquela em que, por fim, a maioria das pessoas iriam dar-se conta da dimensão da ameaça contra a qual ele tinha vindo a alertar nos últimos 50 anos.
O argumento central do seu manifesto exprime a convicção de que a atual organização da sociedade dá aos "políticos, executivos de corporações, técnicos e burocratas remotos e anónimos" o controlo sobre "as questões de vida ou morte da nossa existência", e que é isto o que tem levado a que um crfescente número de pessoas deem por si a viver numa névoa de constante depressão, sentindo-se dilaceradas por um ambiente que as explora e degragda, ao contrário do "homem primitivo", que obtinha satisfação ao determinar as suas próprias "questões de vida ou morte" e encontrava "uma sensação de segurança" naquilo a que o Unabomber chamava "natureza SELVAGEM".
Um dos pontos cruciais da análise a que Kaczynski se dedica no documento prende-se com um conceito a que ele chama “o processo do poder”, ou essa inata necessidade humana de empreender uma série de metas autónomas e realizações que escapam a qualquer avaliação de riscos. Ele sublinhava que, apesar desta tentação ou necessidade psicológica, na moderna sociedade industrial não eram necessários senão esforços mínimos para satisfazer as necessidades físicas humanas. Ora, o que decorre deste desencontro entre o que é necessário para que as pessoas tenham uma vida condigna, e o permanente esquema de superação que as condições industriais impõem, provoca o estado de desconcerto, desigualdade e miséria que conhecemos. Tudo agravado pelo facto de, mesmo nos países desenvolvidos, as pessoas padecerem de males como a depressão, o desamparo social, o vazio existencial. E Kaczynski sublinha que, mesmo quem consiga superar estes efeitos secundários através da dissolução da consciência numa atividade frenética, algo que é até encorajado pela lógica consumista, fica enredado em atividades que produzem um ainda maior grau de alienação.
No entender de Fleming, se hoje parece indubitável que Kaczynski levantou questões válidas, não há na sua análise nada de particularmente visionário, uma vez que Kaczynski se limitou a assumir fervorosamente os ensinamentos de outros pensadores, incluindo o sociólogo francês Jacques Ellul, cujo texto de 1954, A Sociedade Tecnológica, terá sido uma influência decisiva quando ele era ainda jovem. «Poucos dos seus argumentos são de facto originais», sublinha Fleming. «Ele foi buscar a maior parte das suas ideias a autores académicos bastante convencionais que nunca teriam tolerado a sua violência. Não creio que devamos ler Kaczynski como um teórico ou filósofo e tentar separar as suas ideias da sua crueldade», diz. «Ele autodenomina-se um terrorista e revolucionário, e é assim que o encaro", garante Fleming. E, no entanto, a pergunta que se impõe é: não será num momento de crise existencial menos importante a originalidade das ideias do que o grau de convicção e de comprometimento com elas a verdadeira marca de um espírito revolucionário e, nessa medida, visionário? Para que serve ser o primeiro a chegar a conclusões brilhantes, e até mesmo geniais, se depois mesmo o pavor dessas noções não impregnar de tal modo o espírito que o comova a agir de forma radical? E a pergunta mais difícil é ainda esta: teria Ted Kaczynski conseguido que o seu alerta obtivesse tamanha repercussão se, em vez de uma campanha de terror, tivesse dedicado todas as suas energias e capacidades intelectuais à publicação de ensaios redigidos de forma brilhante e com argumentos insuperáveis?
Depois de Kaczynski ter-se formado em Harvard, e enquanto prosseguia com a pós-graduação no Michigan, era sem qualquer aviso prévio que os outros elementos do seu departamento ficavam a saber dos seus novos avanços em artigos publicados em revistas prestigiados. «Era como se ele conseguisse escrever poesia enquanto todos nós estávamos a tentar aprender gramática», disse mais tarde Joel Shapiro, um colega de curso, ao The Times. E, em 1969, depois de ter completado o doutoramento, de aos 25 anos se tornar o professor mais jovem a ser contratado pela Universidade da Califórnia-Berkeley, quando todos esperavam que se tornasse uma presença verdadeiramente incontornável, o que foi que ele fez? Deixou tudo para trás, e mostrou um grau de convicção que não podia deixar de espelhar uma enorme angústia, isto depois de ver vários dos seus locais preferidos serem devastados pela industrialização. Ora, não é este o verdadeiro exemplo de alguém que não deixa que o mundo o assedie e faça vacilar perante as coisas que ninguém conseguia então ou hoje provar que não viriam a desencadear o cenário de catástrofe que agora nos cerca por todos os lados?