Quando o Governo dissolve o povo

Quando a principal atividade económica do país resultou do turismo, quando ele sustenta o crescimento e o emprego e IVA, esqueceram-se de prever o efeito produzido na habitação, nos transportes, no Governo das cidades.

por Carlos Encarnação

Dizem os estudos de opinião que os portugueses estão longe do contentamento.

Com quase tudo, com a vida, com o Governo, com a maioria das instituições.

Há um pequeno problema, todavia, o universo dos discordantes é contraditório entre si.

Portanto, a incerteza do caminho alternativo é grande e arriscada.

Logo, resulta para o Governo uma tranquilidade estranha.

Pode falhar, pode não ter projeto definido, pode afogar-se em confusões.

Sai sempre com um sorriso nos lábios.

Não mostra consciência dos seus principais pontos fracos e são muitos.

O principal de todos é ter uma ideia abstrusa do que seja governar.

Quando a principal atividade económica do país resultou do turismo, quando ele sustenta o crescimento e o emprego e IVA, esqueceram-se de prever o efeito produzido na habitação, nos transportes, no Governo das cidades.

E, apesar de tudo, tiveram todo o tempo do mundo.

Hoje, estão confrontados com o desequilíbrio geral.

Uma boa parte do universo queixa-se de outra parte do universo.

Quando o envelhecimento da população se tentou vencer com a abertura aos imigrantes, esqueceram-se de salvaguardar a dignidade humana, de garantir condições de vida aceitáveis, de impedir a exploração do grande número dos mais fracos.

Hoje, fazem coro com os movimentos humanitários que denunciam a desumanidade e esquecem-se da que permitem no seu (nosso) próprio território.

Quando os novos investimentos agrícolas passaram a ocupar zonas sensíveis do sul do país, esqueceram-se do problema da água e da sua falta.

Ignoram a imperatividade de iniciar o trabalho que permita o recurso à dessalinização da água do mar.

Quando a composição da população se alterou e as desigualdades se acentuaram e quando as consequências ao nível da administração da saúde se mostraram profundas, ignoraram o esforço necessário à alteração do modelo organizativo.

Pior, fixaram-se na dicotomia entre público e privado, quando a resposta tinha de ser encontrada entre a eficiência e a ineficiência.

Quando significativas categorias de funcionários públicos foram esquecidas em troca da ideia de abandonar as classes médias, não perceberam o essencial de algumas carreiras do Estado.

Não perceberam, por exemplo, que sem professores não há educação.

Não conseguiram prever que adiar não é resolver.

Quando este Governo conseguiu a maioria absoluta, comportaram-se como se tivessem atingido o fim da história.

Tudo deverá ficar na mão do poder.

Tudo será entregue a yes-men.

E mesmo aqueles simples atos dos gabinetes se transformaram em exercícios de dominação.

E aquelas prerrogativas do uso de bens públicos, como os aviões, se refugiaram no segredo e no abuso.

A viagem oficial para um qualquer destino adapta-se ao desejo de ver um desafio de futebol. Faz-se uma escala num ponto escolhido.

Se nada acontecer, nos próximos três anos, vamos todos entreter-nos a descobrir mais incongruências, mais buracos, mais abusos.

Seremos democraticamente felizes.

Noutro tempos e noutro enquadramento, Bertolt Brecht dizia que o povo tinha perdido a confiança no Governo e que só a poderia recuperar com redobrados esforços.

E perguntava-se se não seria mais fácil que o Governo dissolvesse o povo.

Há outro caminho.

O do Governo é dissolver-se.