‘Não controlar a inflação agora significa que a prazo a dor vai ser maior’

A espiral da inflação tem de ser controlada, avisa Daniel Traça. E lembra que ‘as ferramentas que o BCE tem são o aumento das taxas de juro’. Aliás, é para tomar decisões impopulares como essa que o banco central tem a sua independência do poder político. ‘Uma inflação a prazo será devastadora para as mesmas…

Daniel Traça não tem dificuldade em justificar o facto de a economia portuguesa estar a crescer mais do que a dos restantes países europeus: durante o tempo da covid sofremos mais do que Europa e começámos a recuperar mais tarde do que a Europa, «daí ser normal que agora estejamos a crescer mais porque começamos de uma base pior». O economista e ex-diretor da Nova SBE lamenta a «falta de crescimento da produtividade em Portugal e de alguma incapacidade de criação de empregos para os mais qualificados» e lembra que por cada 100 pessoas que concluem os seus cursos há 40/50 que saem do país.

Como vê o momento atual da economia portuguesa? 

Em duas ou três linhas gerais tivemos e ainda temos um problema. Até à covid e durante um período longo assistimos a uma falta de crescimento da produtividade em Portugal e a alguma incapacidade de criação de empregos para os qualificados. Se virmos as qualificações que as pessoas têm e as qualificações que são precisas para desempenhar as funções, concluímos que somos o país na Europa com o maior nível de sobre qualificação e, por isso, temos um desafio de criar produtividade e de criar empregos qualificados. E o que verificamos? Temos uma incapacidade de o fazer, num contexto em que há cada vez mais jovens qualificados, com curso superior e bem preparados, mas não somos capazes de pagar os salários suficientes e, como tal, as pessoas estão a sair do país. Os níveis de jovens qualificados a saírem de Portugal são verdadeiramente preocupantes. Calculei o rácio entre as pessoas com curso superior que saíam e as pessoas que adquiriam o curso superior nesse ano, e são números que rondam entre os 40 e os 50%. Ou seja, por cada 100 pessoas que acabam o curso há 40/50 que saem do país com cursos superiores. E a responsabilidade é da economia. É a nossa incapacidade de criar empregos que paguem bem, que tenham em conta a alta produtividade e as qualificações desses jovens para evitar que saiam. Para resolvermos este problema de emigração precisamos de ter uma economia com maior capacidade de criar empregos de alta produtividade e de criar mais empregos que tenham em conta as qualificações. Esse é o desafio.

Por outro lado, estamos a assistir em Portugal à entrada de mão-de-obra pouco qualificada… 

No último ano e meio a economia portuguesa registou um comportamento muito interessante. Semestre a semestre estivemos no topo do crescimento na Europa. Mas também é preciso perceber duas ou três coisas sobre este crescimento. Primeiro, tem muito a ver com o facto de no passado, ou seja, durante o tempo da crise da covid, termos sofrido mais do que Europa e termos começado a recuperar mais tarde do que a Europa, daí ser normal que agora estejamos a crescer mais porque começamos de uma base pior naquilo que foi a consequência da crise. Este é um tema importante, porque muito deste crescimento é resultado de termos sofrido mais no passado. A segunda dimensão também é igualmente importante, já que este crescimento está relacionado com a contribuição do turismo, mas isso tem duas consequências. A primeira é que o turismo, apesar de ser uma indústria fundamental atual, não vai ser a indústria que vai transformar Portugal. O crescimento da produtividade do turismo não é enorme. Mais uma vez, os problemas em Portugal são a produtividade e a criação de empregos qualificados. O turismo nem tem um grande crescimento em termos de produtividade, nem tem um grande espaço para a criação de empregos qualificados. Estive a analisar e cerca de 10% dos empregos criados no turismo são para pessoas com cursos superiores. Portanto, sendo um setor muito importante para gerar emprego e para gerar atividade, precisamos de outros setores, talvez de outros serviços qualificados para dinamizar a economia. E, portanto, o crescimento destes últimos anos não serve para resolver o problema fundamental da economia portuguesa. Por outro lado, é um crescimento que tem muito a ver com aquilo que foi o boom do turismo pós-covid, mas é um boom que está a começar a reduzir. Se vir, por exemplo, as perspetivas de crescimento para a economia portuguesa para 2024 da Comissão Europeia, já aponta para um crescimento que está entre os crescimentos mais baixos, ao lado dos países mais pobres da União Europeia. Isso revela que este surto pós-covid em Portugal, por um lado, não resolve os problemas estruturais. Por outro lado, é um surto de curta duração que vai acabar a partir de 2024, pelo menos, é isso que as previsões da Comissão Europeia dizem. Pergunta-me como vejo a economia portuguesa e o que digo é que é preciso resolver os problemas fundamentais e os problemas fundamentais são mais crescimento de produtividade e mais emprego para os jovens qualificados. É preciso as duas coisas juntas para pagar melhores salários e para manter as pessoas aqui em vez de as fazer sair do país.

Mas esses problemas estão identificados. O que é que falta fazer? E é preciso o tal desígnio de ambição que tanto se fala?

A questão da produtividade e a questão da criação de empregos qualificados estão identificados. O que acho que está menos identificado é a saída para esses problemas. Falamos muito da questão do Estado e de facto se virmos os nossos indicadores de qualidade do Estado verificamos que estão a cair. Temos sido ultrapassados por países europeus em questões de eficácia do Governo e da eficácia da administração pública, em questão de qualidade regulatória. Estamos a decair, em vez de estarmos a aumentar. E isto num contexto em que cada vez temos mais pessoas mais qualificadas. Acho que estamos sempre a falar desta questão do funcionamento do Estado, mas também acho que há muita coisa que se pode fazer do lado das empresas, mesmo neste contexto de um Estado que não é o mais fácil para se trabalhar, para fazer negócios. Acho que podemos criar melhores empresas, empresas que podem ter mais ambição – mais ambição sobretudo em termos exportadores, de fazer grandes projetos e de ter uma maior capacidade para motivar as pessoas e dar-lhes maior autonomia. Também acho que há um desafio, em termos de liderança empresarial portuguesa. Obviamente que há empresas fantásticas em Portugal, estou a generalizar o tema. Mas há na generalidade uma necessidade de levar a cabo mudanças na liderança empresarial em Portugal, que precisam de ganhar mais mundo, que queiram ser mais exportadoras, que queiram ter maior ambição, de fazer grandes projetos e de avançar com grandes transformações. Não podem ser vítimas. Há um investigador holandês que há 20 anos analisou muitas das economias internacionais e a portuguesa surgia como a economia que apresentava a maior aversão ao risco e a menor orientação para o longo prazo. Acho que o tema também é cultural. 

E 20 anos depois parece que está tudo na mesma. Algumas empresas obviamente mudaram, mas a grande maioria continua a ser avessa ao risco…

Avessa ao risco, com pouca orientação para o longo prazo, assente numa liderança que quer muito controlo e não está disponível para apostar nas pessoas e de lhes dar liberdade, nem que seja para as pessoas falharem para depois poderem melhorar a seguir. Acho que é um tema de cultura de gestão e de cultura de liderança, e acho que vale a pena pensar em como é que podemos mudar. Essa cultura de liderança tem de estar alinhada com uma visão de muito maior ambição. Sei que é difícil, porque mais uma vez, o Estado cria dificuldades, não é fácil. O país tem aqui algumas questões, mas também tem enorme talento e tem que tirar partido desse talento.

As perspetivas não são animadoras. A presidente do Banco Central Europeu ainda esta semana esteve em Portugal e voltou a dizer que não está a equacionar fazer uma pausa na subida dos juros, quando somos os mais penalizados porque a maior parte dos créditos, nomeadamente o crédito habitação, está indexado às taxas variáveis…

Há duas formas de ver o tema da inflação. Ao contrário da questão do desenvolvimento da economia portuguesa e do desafio de como é que vamos criar estes empregos qualificados para tirar partido do talento, que é um tema difícil e em que não é óbvio qual é a solução, no caso da inflação sabemos lidar com esse problema. Tivemos um surto de inflação grande por causa da energia, ao princípio. O BCE dizia que era tudo temporário e que não havia problema. Depois percebeu que havia problema e começou a subir as taxas de juro de uma forma muito, muito agressiva, que é a ferramenta que o Banco Central Europeu tem. O BCE não tem outras ferramentas para resolver este problema, quando tem essa missão. Agora temos uma situação em que a energia já está a começar a decair. Só que a inflação já não está só nos setores voláteis, como a energia e a alimentação, ou seja, a inflação já está na vida dos portugueses. E o problema da inflação é que cria ciclos em que as pessoas, às tantas querem mais salários para compensar a inflação, depois aumentam-se os preços e acaba por surgir um ciclo entre salários e inflação, o que é muito perigoso, porque temos de ter consciência que no final disto tudo, se não se controlar este ciclo que se está a criar, vamos ter um aumento da inflação a prazo e garanto que todos nós vamos detestar essa situação. Alguns de nós dizemos que ‘se calhar poderiam ir com mais calma’, mas atenção: ir mais com mais calma pode significar uma perda com toda a inflação e uma inflação a prazo vai ser devastadora para as mesmas pessoas que estão hoje a queixar-se das taxas de juro.

Então defende que o melhor caminho é este que está a ser seguido pelo BCE que não dá tréguas à subida das taxas de juro? 

Não dá tréguas e este não é só o melhor caminho, como é o único caminho. É preciso controlar a inflação rapidamente, porque o que nós sentimos é que se no princípio era a energia que estava a provocar esta inflação, agora já não é a energia. Estamos a entrar numa nova espiral de inflação e essa é a preocupação do Banco Central Europeu. E essa espiral de inflação tem de ser controlada e as ferramentas que o BCE tem são o aumento das taxas de juro, não tem mais nenhuma. O BCE vai continuar a subir os juros e as notícias nos últimos dois, três meses não foram fantásticas, porque mostram que estando a energia sob controle, o resto da economia está neste momento a entrar nesta espiral inflacionária. E isso é muito preocupante, porque se no caso da energia decidimos que era uma questão temporária, as espirais inflacionárias não o são e, portanto, o Banco Central terá de continuar hiperativo e a tentar assegurar que esta espiral inflacionária não continue. E quanto mais cedo ela acabar, melhor, porque menos dor vamos sentir. Volto a dizer: o que temos de perceber é que não fazer isto agora significa apenas que temos de conviver com uma inflação muito alta no futuro que ninguém quer, porque é insuportável. Acho que as pessoas já se esqueceram disso, mas tivemos uma inflação muito alta na década de 80, em que a vida era insuportável para todos. Entretanto, como a inflação baixou, muitas pessoas já estão um bocadinho desabituadas.

Mas tanto o primeiro-ministro como o Presidente da República têm vindo a criticar o discurso de Christine Lagarde… 

É exatamente por isso que se criou a independência do Banco Central e tornou-se num imperativo fundamental, porque esse trabalho é difícil e os governos têm dificuldade em fazer esse mesmo trabalho. É um trabalho ingrato que cabe aos presidentes do Banco Central Europeu.

Se fosse um Governo a tomar esse tipo de decisões teria mais resistência porque inevitavelmente iria ter reflexos mais cedo ou mais tarde no resultado das urnas…

Se fosse uma decisão política, as pessoas acabariam por se focar mais no curto prazo. O que as pessoas têm que perceber é que a falta de controlo da inflação no final vai representar uma vida horrível para todos. Mais vale aceitar este custo a curto prazo, sabendo que a inflação vai estar controlada. 

Neste momento já não são só os mais vulneráveis que sentem dificuldades, apesar destes últimos já contarem com alguns apoios, independentemente da discussão de serem suficientes ou não, mas a classe média também já está a ser fustigada com estes aumentos galopantes…

É inevitável e vai ser uma dor. Percebo isso, mas volto a dizer: não controlar agora a inflação significa que a prazo que a dor vai ser maior. Não estou a dizer que a situação é fácil. Só estou a dizer que é menos custoso tentar controlar agora do que tentar tomar uma solução de curto prazo para reduzir a dor agora e depois ter a inflação a aumentar e termos o problema de controlar a inflação que ainda será maior. 

Isso depois terá de passar por apoiar mais portugueses e não apenas aqueles que são os mais vulneráveis? 

Não será para todos, mas acho que agora durante um tempo vamos ter de dar os apoios às pessoas mais vulneráveis e temos de aceitar que este potencial ciclo de inflação vai ser custoso para todos. Não há como não fazê-lo. É uma questão de as pessoas recuperarem aquilo que foi a tentativa de controlar a inflação quando ela surgiu nos anos 80 e o custo que foi. Nos Estados Unidos foi a pior recessão da sua história a seguir à Grande Depressão. Foram anos de desemprego com 20%. As pessoas têm de perceber que mais vale controlar agora em que as coisas vão custar, mas custa menos do que deixar o problema continuar e tentar controlá-lo mais tarde. 

E em relação a estes apoios, acha que são suficientes ou acredita que o Governo vai ter de ir mais além? 

Acho que o Governo, na medida em que consiga, e sem tentar estimular demasiado a economia – porque depois há esta questão: não vale a pena termos o Banco Central a apertar a economia e o Governo estar a estimular demasiado a economia – terá de dar um apoio às pessoas que têm mais necessidade. Agora mais ou menos dinheiro é uma questão de informação, não sei qual é a folga que o Governo tem, mas se tem mais folga então pode dar mais. Mas do ponto de vista da dívida, aquilo que tem sido a gestão dos défices públicos nos anos últimos anos, o nosso país tem conseguido muito bem controlar de alguma forma aquilo que é a trajetória da divida portuguesa e, sobretudo hoje, Portugal já não é o grande problema da dívida na Europa. Se olharmos a prazo vemos outros países com situações mais complicadas do que nós e isso é a grande vantagem do trabalho que se fez, em termos de controlo de défice nos últimos anos. E é isso que permite hoje poder sobreviver neste ambiente de taxas de juro crescentes. Espera-se, penso eu, não termos aqui uma crise da dívida complicada, mas não seria esse o caso se não tivéssemos tido o controlo orçamental que tivemos.

Aliás isso foi visível na altura da troika …

Exatamente. Por isso é que estou a dizer que às vezes tentamos não tomar medidas no curto prazo e depois temos consequências muito mais graves a longo prazo. E agora o problema é exatamente o mesmo. Dor sim, vai ser difícil sim. Mas mais vale sofrer a dor agora do que sofrer uma dor muito maior daqui a uns anos. 

Disse recentemente que o ambiente da política em Portugal também não é fácil. É por falta de reformas ou por assistirmos a casos, como por exemplo, da TAP? 

O ambiente é complicado. Sou daqueles que acha que, mesmo havendo algum diferendo político, os políticos tentam fazer aquilo que sabem naquilo que podem, porque os problemas não são fáceis. Veja a questão da TAP. Por questõezinhas que surgem – e não estou a tirar a gravidade das questões – depois os grandes temas acabam por ficar um bocadinho de lado. Acho que o grande desafio é que os portugueses precisam de começar a ter uma visão muito ambiciosa. Muito ambiciosa para o país, para si próprios e para as suas empresas. E focarem-se em conseguir chegar a um resultado de um país novo. A falta de ambição distrai-nos e faz-nos falar de coisinhas com menos importância. Se tivermos a ambição de um projeto grande se calhar estaríamos a falar de grandes temas e dos temas que interessam.