Faz parte da sabedoria humana uma certa exaustão que nos impede de embarcar em grandes delírios ou expectativas que acabam por produzir um tremendo desajuste na nossa relação com o mundo. Em grande medida, o último livro de Rui Nunes transmite-nos esse sentido do mais vulnerável dos lugares, a percepção de um exílio do qual não se regressa, como se a vida nos transmitisse essa devastação da nossa própria intimidade, “a nossa terra exausta, a nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta”. E o que não há mais é um regresso a esses caminhos de uma esperança que tende a capturar-nos. Hoje o mundo está cheio de esperança. Apesar de todos os sinais de degradação ao nosso redor, tudo nos encaminha para a ilusão, para esse transe de um paraíso artificioso que se nos esquiva, mas deixa um rastro de tal modo palpável que nos abandonamos a ele.
A vida que se tornou desejável tem todas as características de uma falsificação, e, logo no início desta indagação, Rui Nunes descreve esse território impróprio onde tudo se confunde, todos os sinais nos baralham e a própria matéria é falsa: “Dos escritórios vem um som de abelhas, do amanhecer ao entardecer zumbem sem descanso, e nos lavabos, mictórios e latrinas, ouve-se o canto de melros digitais, enquanto se limpa o cu a papel higiénico perfumado, e se lavam as mãos com o cheiro a gel de flores silvestres.”
É uma cena armadilhada mas que, na medida em que nos tem cativos, torna muito difícil de interpretar esta condição cercante. “Segue‑se o quê? Segue‑se o crepúsculo, o moroso crepúsculo dos prédios. Os elevadores silenciosamente furiosos. Descem e sobem. E nós avançamos para as portas da cidade, estacamos junto a elas, inspira‑se o ar alcatroado, o bafo a gasolina cruzado por um som fluvial ininterrupto. E saímos com determinação. Perdidos durante alguns segundos, ouvimos a transparência de uma parede que, nas nossas costas, maníaca, se abre e se fecha, se abre e se fecha, se abre e se fecha. Nem uma única luz cadente, memória do céu arcaico da infância.”
Esta forma de desenredar um regime que por se ter tornado habitual parece inapreensível cruza-se com um momento do filme “O Sacrifício” de Andrei Tarkovsky, em que o protagonista encara a forma como o homem foi sempre erguendo barreiras com vista a proteger-se da natureza e dos outros homens, acabando por impor uma civilização que se organiza na base da força e do poder, do medo, da dependência. Diz-nos que a técnica enquanto instrumento do progresso, se nos providenciou conforto e bem-estar, nos foi legando instrumentos de violência para salvaguardar o poder… “Assim que temos ao nosso alcance uma nova descoberta científica, logo encontramos formas de a colocar ao serviço do mal.”
A condição comum está saturada destes exemplos de avanços que, na verdade, apenas perpetuam a forma como nos vamos tornando reféns desses instrumentos que deveriam libertar-nos. E o protagonista, um actor que deixou os palcos para se dedicar ao jornalismo, numa extensão do seu esforço crítico enquanto professor de estética, recorda-nos a lição de um sábio que afirmou que o pecado não é outra coisa senão tudo aquilo que, sendo desnecessário, acabamos por integrar nas nossas vidas, assumindo-o como indispensável. “Se isto é verdade, então toda a nossa civilização está arquitectada sobre o pecado, do princípio ao fim. Adquirimos uma terrível desarmonia, um desequilíbrio, se preferires, entre o nosso desenvolvimento material e o nosso desenvolvimento espiritual. A nossa cultura é defeituosa. Quer dizer, basicamente toda a nossa civilização e a nossa condição de existência assentam nesta articulação defeituosa.”
Chegámos a este ponto em que uma nova abertura dramática, um relançar dos dados e das hipóteses se coloca diante de nós, e já sabemos como em breve vamos sufocar em novos aspectos da degradação generalizada da vida, levando a nossa desmoralização actual a níveis ainda mais preocupantes. O que se desenha no horizonte, num momento em que uma série de pragas novas se antecipam, desafios cruciais à sobrevivência das diversas formas de vida neste planeta, é uma forma de alienação extraordinária, com novos e insanos constrangimentos, formas de tirania nestes sistemas que dominam cada aspecto das nossas vidas, ao ponto de estarem dentro de nós e impregnarem o nosso ser.
Entre as formas modernas da distribuição da morte ao domicílio, da devastação da intimidade à perda da noção do tempo, dessa rede de articulações imprecisas, que inflamam, se embotam, como assinalava Cesariny, o que está em causa “não é só esse entrelaçado de figuras rezando dia e noite à deusa Quantidade”, mas sobretudo a nossa incapacidade de agir em caso de incêndio, isto porque nos vemos capturados pela confusão da época, que nos atordoa, mina a nossa capacidade de confiança instintiva, essa capacidade de prover à subsistência da vida, por todo o condicionamento que impede a presença de espírito.
Sob o efeito destas formas de estupor, vivemos sujeitos a uma perda constante de intensidade, a uma incapacidade de se coincidir consigo mesmo, desfiando-nos entre actos e gestos que, sem estrela, sem radiação ou calor, apenas nos dissolvem na massa anónima. E, nisto, vemo-nos cercado por esses agentes que vêm “pedir extinção de intermediários, entre o homem e as coisas, entre o mundo e os mundos” (Cesariny).
Ora, a literatura com o seu poder de enunciação, de pressentimento dos elementos íntimos da catástrofe, persiste na sua vigilância, reelaborando hipóteses de um absurdo que começa a fazer-se sentir antes de tornar claro as suas consequências.
Em “Neve, Cão e Lava”, Rui Nunes procede a um exame sensível e que traz um longo balanço a partir das lições de treva que lhe foram transmitidas pelo século anterior, e fala-nos na sensação “de se percorrer um tempo que se desdobra sem segundos, sem minutos, sem horas nem dias, um tempo de grande pureza. O tempo: estás aí, frente ao ecrã, há oito horas, oito dias, oito anos, se calhar oito séculos, porém, este tempo não te envelhece, de repente morrer fulminado em plena juventude”. Este livro é uma reflexão poética a partir desses elementos que não cabem, não coincidem ou não se tocam numa mesma perspectiva.
É preciso assim uma análise de vários planos, uma composição para se conseguir ver para lá do que se nos mostra, alinhar sintomas num momento em que estes escapam a qualquer previsão ou diagnóstico, e sem se deter especificamente nesta ou naquela manifestação da nossa cultura defeituosa, Rui Nunes entrevê, contudo, uma concatenação de elementos que podem traduzir-se numa nova ameaça: “assiste-se ao nascimento da definição de uma voz. Que assassinou todos os corpos de onde poderia ter nascido. É uma voz sem carne, não desencarnada, mas que não procura a sua carne, ou antes, que não sabe que há vozes que nasceram da carne”… Num certo sentido, o que se perde nesse enredo de probabilidades, é precisamente o desvio, a realidade trabalhada pelo desejo.
Rui Nunes fala-nos, aponta para esse organismo sintético, “nome-corpo frágil e incerto, que nele enraizará, como uma doença adormecida, uma célula que um dia há-de enlouquecer”. O homem dá assim origem a um órgão que deve ser capaz de interpretar e deter a torrente infernal dos dados, num mundo que produz informação de forma vertiginosa, deixando toda uma biblioteca sombria em que se cruzam raízes num significado que se descontrolou e que precisa agora de ser resumido e sintetizado, e, com esse fim, fora do seu corpo biológico, produz-se este órgão exterior que organiza o mundo segundo um regime probabilístico. Mas, ao mesmo tempo, Rui Nunes parece identificar o perigo deste processo alienado, que necessariamente contém em si o germe dessa “indiferença acolhedora de um corpo que ultrapassou a exaustão”.
No fundo, desprovido da angustiante relação com o tempo que carrega todo o organismo biológico de uma tentação de se replicar e deixar algum legado, transmitir o seu código, gerando assim essa possibilidade de continuidade e, ao mesmo tempo de desvio, numa errância vivificante que alimenta o nexo evolutivo, o processo algorítmico da chamada “inteligência artificial” não passa de um enredo de algum modo cancerígeno, uma vez que contém em si esse elemento que leva ao definhar das proposições de onde parte, dos elementos da experiência humana, que são avaliados segundo uma qualquer escala redutora, produzindo essa forma de imagem comprimida, e que avança sobre novos problemas ou desafios como se preenchesse lacunas, ligando pela via mais fácil, pela solução mais óbvia, o que está antes e o que vem a seguir.
Daí que seja útil falar neste processador como uma espécie de vírus informático que tem em si “uma doença adormecida, uma célula que um dia há-de enlouquecer”. E enlouquecer-nos a todos. Em certo sentido, é possível recolher neste livro uma interpretação deste fenómeno de correlação da imensa biblioteca digital como um modelo que, sendo incapaz de valorizar certos elementos guiado por uma afectividade ou uma capacidade de reconhecer o benefício do fim, da exaustão, de dar a vez a outro, prossegue de forma implacável construindo uma rede em que o vínculo entre os signos que tentam captar a experiência, entre o alfabeto, a sintaxe ou o vocabulário e o efeito de nomeação do mundo “desviam-se do mundo e recolhem-se sem pudor nas palavras, as que dizem a alma separada da merda, e os ossos que nunca suportaram carne apodrecida”.
Perante este mecanismo, diz-nos Rui Nunes que “quem lê esquece”, o esquecimento torna-se o próprio efeito de um processo que descende ao abismo da quantidade e começa a apodrecer, mas sem ser já capaz de gerar o tempo, ou a sensação da sua passagem. É uma forma de loucura infinita, um cancro que não encontra uma barreira para o seu processo de metastização. Assim, no seu esforço analítico, estes algoritmos reduzem uma experiência a uma falsa compreensão sintética, a uma síntese desoladora, produzindo um fantasma desajustado, uma imagem cada vez mais distante da origem, e do próprio mundo, e o que parece mimetizar os gestos, na verdade consegue apenas destituí-los da pulsão que os governa e que determina a sua gravidade e alcance.
Todo o gesto de uma máquina é frouxo, frio, é já a produção de reflexos mortos, de uma actividade imparável e desapaixonada. As máquinas dessa fantasmagoria espantosa só sabem o lençol que se usa por cima da cabeça, para gerar em quem olha esse reconhecimento mais imediato: olha, um fantasma! A inteligência artificial é uma produtora, numa escala que logo nos deixa exaustos e, por isso, nos torna obsoletos, de variações inócuas, de gestos infinitamente decompostos, que submergem toda a carga enfática desse gesto único e, por isso, decisivo. É essa ênfase que produz a assombração que dá vida ao vazio, coloca intenções no que está aí no lugar do nada. E isto significa a perda do processo de consciência, uma vez que esta nasce da forma como o homem consegue analisar as repercussões dos seus actos, fazer uma previsão e evitar um determinado fim.
Rui Nunes diz-nos que “um risco inicia o sentido, um sentido. É a perda da inocência. Não mais um regresso. Eis o instante iniciático que ultrapassará a nossa morte, um risco separa-nos, afasta a mão que o faz, e não só afasta como entra nela, prolonga-se no braço, ramifica-se para o ombro, a cabeça, as costelas e as pernas, torna-se o nosso mais íntimo esqueleto: o esqueleto oculto de um esqueleto, ou seja, uma incerteza, porque um risco é a primeira interrogação, a primeira pergunta feita a uma criança: que é isso?, ou que ela própria se faz, prolongando-o noutro risco, que se prolonga noutro, quando para de riscar, encontrou todas as respostas a todas as perguntas, mesmo às que ainda não fez: as cavernas encheram-se de auroques, bisontes, homens-riscos, erecções-riscos, as palavras nasceram de um encontro, de um cruzamento de riscos, de uma tangente, a quê?, de uma secante, a quê? Uma tangente tem a horizontalidade de uma carícia, aflora, é uma flor, a tímida delicadeza da geometria, uma secante tem a profundidade de um crime, faz extravasar: sangue, vísceras, urros, espasmos, é uma sementeira do caótico”.
Para a máquina a previsão ou o acontecimento são apenas hipóteses concorrentes. Ela é incapaz de incertezas, de hesitações, de suster a dúvida, e, por isso, também é incapaz de uma verdadeira reflexão, de fazer uma escolha perante uma série de elementos que escapam à sua capacidade de previsão. E o certo é que o Universo escapará sempre à previsibilidade, pois a falha e o erro fazem parte da densidade do seu engenho. A criação só tem essa fome de infinito porque está de algum modo fascinada pelo efeito desse “algo mais” que gera uma abertura incalculável, absurda e fértil por precisar de esse elemento de risco e de proposição para desencadear um novo sistema de relações e possibilidades.
A vantagem do homem está sobretudo nessa integração a este regime, nessa relação intuída e mais funda, que o faz trocar o que estava antes por uma visão que surgiu em consequência dessa. Estamos sempre a ler coisas escritas em cima de outras apagadas. Até começarmos a ler essas máquinas envergando lençóis. A diferença de um corpo, das experiências que emergem nele, resultando tantas vezes de tentações contraditórias, tudo isso se pressente, a ânsia biológica, a própria angústia por vezes dilacerante que em nós produz a passagem do tempo. A sexualidade carrega todo esse dinamismo incitante e, finalmente, desgostante. Mas tudo isso é apenas uma excrescência ornamental para os sistemas algorítmicos, que impõem o seu horizonte limitando o campo de ação a decorrências do já visto. Incapazes de experimentar todos os constrangimentos e o gozo absurdo de uma existência deleitosa ainda que condenada, as máquinas não sentem, apenas simulam. Só podem por isso promover ciclos de radiação cada vez mais limitados, à medida que as suas réplicas se afastam da origem. As máquinas alimentam-se da biologia, mas nunca serão capazes de se libertar dela. Não podem sentir, mas apenas esgotar todos os sentimentos que consigam registar. São processadores da mesmidade, e levam a cabo uma derrogação do acaso. Ora, o acaso atua em nos através do sentimento, e este é uma paciência infinita num ser mortal e que, por isso, se torna mortífero.
Perante este cenário, há muito que alguns desses espíritos abalados por terríveis pressentimentos, figuras como Antonin Artaud nos vinham alertando para a necessidade de todas as nossas conceções de vida terem de ser forçosamente revistas numa época em que já nada se mantém estreitamente ligado à vida. Mas ele intuiu também que esta rutura dolorosa iria desencadear uma vingança das coisas. “A poesia que já não temos dentro de nós e não conseguimos encontrar nas coisas surge de súbito no lado falso dessas mesmas coisas; tenhamos em conta o número sem precedentes de crimes cuja perversa gratuitidade se explica apenas pela nossa impotência de possuir integralmente a vida.” No manifesto “O Teatro e a Cultura”, Artaud admite que “é até conveniente que as excessivas facilidades de que fruímos deixem de estar ao nosso alcance, que as formas estabelecidas tombem no esquecimento”. E prossegue: “Uma cultura sem espaço nem tempo, apenas limitada pela capacidade dos nossos próprios nervos, reaparecerá assim com energia redobrada. Ainda bem que, de tempos a tempos, se produzem cataclismos que nos obrigam a retornar à natureza, isto é, a redescobrir a vida.”
Ora, o processo da crise climática pode ser descrito como uma crise que faz a natureza e o mundo precipitar-se de forma absolutamente drástica sobre a nossa civilização, abatendo-se e devastando todas as defesas erguidas ao longo de séculos para nos defender dos seus humores.
Mas retomando a questão tecnológica, antes de o território da ficção científica penetrar e dominar o nosso dia-a-dia, desdobrando-se numa infinidade de efeitos invisíveis, há precisamente uma década, numa obra que só agora é publicada por cá – “O Cunho do Editor”, com selo das Edições 70 e tradução de José J.C. Serra (isto depois da edição de “Como Organizar uma Biblioteca”, que se tornou especialmente notável devido à desastrosa tradução assinada por João Coles) – Roberto Calasso (1941-2021) tinha já apreendido em traços gerais e, ao mesmo tempo, bastante firmes a hipótese em que nos víamos precipitados, e ia ao ponto de ler os sinais cataclísmicos através da leitura do negativo daquilo que comparece de forma radiante enquanto conjectura sobre aquilo que o futuro nos trará.
Assim, a partir de um manifesto de Kevin Kelly, fundador da revista Wired, publicado no suplemento The New York Times Magazine com o título “O que vai acontecer aos livros?”, Calasso isola a resposta que este oferece a uma pergunta crucial: O que pretende a tecnologia? “A tecnologia acelera a migração de tudo o que sabemos para a forma universal dos bits digitais.” Perante este anúncio, o fundador de uma das casas editoriais europeias mais prestigiadas, a Adelphi, vinca que “as enormes migrações étnicas que fazem tremer o globo são apenas a sombra de uma migração mais vasta e capilar, que mira a ‘forma universal’”. Calasso adianta que não há nada de enfático ou inexacto nisto, e considera que a tentação de se deixar um rastro de tudo o que em tempos, pela sua natureza efémera, estava sujeito à natural erosão e ao esquecimento, pode vir a ficar preservado e rapidamente constituir uma biblioteca que supere os 32 milhões de livros que se estima que a humanidade tenha publicado, isto a começar pelas tabuinhas sumérias que chegaram até nós e que são os primeiros suportes dessa então recente tecnologia da escrita.
O editor italiano considera que esta cópia digital de tudo o que fazemos é a forma mais avançada de perseguição que alguma vez foi descrita: “a vida sitiada por uma vida em que nada se perde e tudo está condenado a existir, sempre disponível, sufocante. Neste quadro, os livros parecem uma província remota ou um reino de opereta. Que valor podem ter 32 milhões de livros quando comparado com as falanges de milhares de milhões de ‘páginas web mortas’, em crescimento exponencial? São estes os verdadeiros mortos-vivos que nos atormentam”, remata Calasso.
Assim, e muito antes de surgirem os atuais chatbots, o terreno foi sendo preparado para que se procedesse a um esforço titânico de digitalização universal, com a Google na dianteira, sendo que a digitalização dos livros só não tem progredido de forma mais célere por ter embatido na limitação jurídica dos direitos autorais e na obrigação de as páginas dos livros terem de ser viradas manualmente, isto até ter aparecido um robô capaz de virar e digitalizar automaticamente mil páginas por hora.
E se os direitos autorais são hoje um dos aspectos cruciais quando muitas das críticas que os modelos de inteligência artificial têm enfrentado é o de não passarem de mecanismos de recomposição a partir de um esquema de plágio em massa, Calasso assinala a forma como o livro, enquanto objeto que obriga a determinados gestos específicos, se torna odioso na sua estrutura por criar resistências a esta migração, até por ser pensado como um elemento isolado, que tem na capa “a pele do corpo que é o livro”. E este, diz-nos ele, “é um grave obstáculo quando se quer pôr em ação a orgia da biblioteca universal, uma orgia interminável e irrefreável entre corpos desprovidos de pele”.
O editor frisa que esta é porventura a imagem mais eficaz quando se quer cancelar qualquer desejo erótico, ou mesmo quando se quer tornar o eros repelente. Se os livros têm o péssimo vício de serem “artigos separados, independentes uns dos outros, exatamente como o são nas estantes das vossas bibliotecas”, diz Calasso remetendo para o texto de Kelly, “o ponto é que a digitalização universal implica uma hostilidade para com o modo do conhecimento”.
Pois se Kelly exalta a biblioteca universal, na qual nenhum livro será uma ilha, Calasso percebe como essa conceção não é só ingénua, mas perigosa, uma vez que ao eleger como inimigo a existência separada, solitária e autossuficiente dos livros, na verdade, ataca aquilo que é decisivo na própria relação que o leitor estabelece com os livros, construindo um percurso mais ou menos anárquico, desenhando um percurso único, e que não é apenas autónomo, mas divergente, difícil de localizar.
Os livros na sua constituição irredutível são encarados por estes construtores de uma utopia que aglutina e integra tudo como seres associais por constituição, que têm de ser digitalmente reeducados, diz-nos Calasso. “Mas a digitalização – avisa Kelly – é apenas um primeiro passo, semelhante aos procedimentos no acesso a uma penitenciária, rapar o cabelo e vestir o uniforme: ‘A verdadeira magia vem com o segundo acto, quando cada palavra em cada livro for submetida a ligações cruzadas, for agregada, citada, extraída, indexada, analisada, anotada, remisturada, reagrupada e reinserida na cultura, mais profundamente do que nunca.”
O editor italiano assinala a forma como esta frase de Kelly gera por si só uma sensação de asfixia: “Já não nos sentimos mais protegidos pela neutra e insignificante brancura do papel em que se imprimem a s letras de um livro. Agora, as letras invadem todo o espaço livre, coladas como moscas numa fita adesiva. (…) O texto – qualquer texto – é um pretexto. Aquilo que conta é o link, a ligação.” A vertigem impõe-se à medida que a rede se impõe como uma hiper-estrutura agregadora, e, no entanto, a partir daqui já não é só o acesso a este sistema o que condiciona o leitor, mas o regime que hierarquiza todos estes textos ou conteúdos, e o poder está do lado daquele que cria um motor de pesquisa ou uma ferramenta que cumpre as funções de bibliotecário e cicerone, formulando sinopses, resumos ou sínteses, as quais, como é evidente, condicionam decisivamente a nossa experiência na exploração dessa biblioteca.
Kelly defende que a partir do momento em que “o texto se torna digital, os livros emergem das suas encadernações e entretecem-se uns nos outros”. Segundo ele, isto abre caminho a uma “inteligência coletiva” que nasce desse efeito de integração forçada dos livros, mas ele vê nisto a possibilidade de se alcançar uma perspectiva panorâmica que não se consegue obter num livro individual, isolado. Ora, o problema é precisamente a forma como este regime degrada os aspectos desviantes de um texto, as hipóteses mais transgressivas e desalinhadas, o seu conteúdo subversivo, valorizando em seu lugar esses elementos integradores e conformistas.
Isto mesmo caracteriza a experiência que hoje temos ao interagir com esses protocolos de inteligência artificial como o ChatGPT, em que em vez de uma conversa com um espírito autónomo, uma presença individuada, somos confrontados com o tipo de sabedoria destilada por uma massa amorfa, anónima. Kelly diz-nos que “quando os livros são digitalizados, ler torna-se uma actividade comunitária. Apontamentos escritos nos livros podem ser partilhados com outros leitores. As glosas podem ser partilhadas. As bibliografias trocadas. O leitor pode ser avisado de que o amigo Carl tomou nota de um dos seus livros prediletos. No momento seguinte, os links dele passam a ser também do leitor. De maneira curiosa, a biblioteca universal torna-se um texto só, muito, muito grande: o livro único do mundo”.
No fundo, Kelly descreve tudo o que se oferece já de forma muito concreta e detestável na experiência das redes sociais, essa sensação de um livro em que todo o sentido se vai adiando e transformando numa miragem, numa névoa esgotante, em que o imperativo de uma comunicação imediatista nos faz desabar numa conceção empedernida de todos os factos, gerando uma cultura sem sombras, sem a gravidade daquilo que se absorve entre noções ambíguas, a partir de uma análise nuanceada, começamos a derivar numa linguagem cada vez mais imbecilizada, incapaz de concretizar qualquer raciocínio mais exigente e que exija algum esforço e fôlego. Nestas coisas é importante um contacto sem deferimento, uma presença total e um compromisso de estar diante do outro e retirado do mundo.
“A tudo o que nasceu pode ainda ser dada vida, se não nos contentarmos com permanecer meros organismos com funções de registo”, diz-nos Artaud. E Calasso expõe a enorme impostura deste paraíso artificial que, na verdade, leva a efeito um inferno bastante concreto. “Quando se diz que ‘a leitura se torna uma actividade comunitária’, subentende-se que o secreto, impenetrável, distinto, discriminante e silencioso pensamento do cérebro individual que lê é substituído pela sociedade: um cérebro imenso, capilar, constituído por todos os cérebros, indistintamente, que agem na rede e nela fala. É uma tagarelice densíssima, que cria um ruído de fundo, porém, significante.”
Numa altura em que se perspectiva a extinção das abelhas, Rui Nunes fala-nos no “silêncio desodorizado do refúgio” e de como “nele recuperamos o zumbido apis mellifica que se interrompera, mas que regressa insidioso. Nem uma pergunta, nem uma resposta, nem: já chegaste, nem: de onde vieste, o zumbido povoa, habita, surge de todas as divisões da casa como de diversas colmeias, e abate paredes, não se distingue um zumbido de outro (…) hoje, ao zumbido sucede um zumbido, a que sucede um zumbido, a que sucede um sucedâneo, meu pai dizia: ersatz, eu digo: puta que os pariu”.
E Calasso diz-nos que se está a proceder a uma inversão fundamental em que “tudo o que existe (seja o que for) é substituído pela sociedade daqueles que vivem e falam, digitando e digitalizando, no contexto daquilo que existe, tudo e mais alguma coisa que digam. O Liber Mundi é substituído pelo ‘livro único do mundo’, apenas acessível no ecrã. Quanto ao mundo, é cancelado, torna-se supérfluo, na sua muda e refratária alienação.”
E nisto a perda do mundo pressente-se já na perda das faculdades expressivas, na incapacidade de o dizer, na forma como cada vez mais todos se exprimem por meio de lugares comuns, nessa fraseologia que exprime a deformação do pensamento e bate a continência para os generais do mediatismo e segue alegremente as orientações com vista à mobilização geral. Perante isto, alguns ficam a sentir-se como náufragos da sociedade, e buscam, como Rui Nunes, “uma voz que não seja um olhar emprestado ou roubado”, horrorizado por se dar conta como “há olhos que não inventam as árvores que veem, que só veem as árvores inventadas por outros olhos”. Umas poucas vezes espantando-se, mais vezes envergonhando-se diante do reflexo frio que lhe devolvem esses “olhos que são catálogos: vagueiam entre os destroços da Criação”.