A caminho da sua 3.ª edição, o Prémio Tágides conta com a jornalista e ex-vereadora da Câmara Municipal de Lisboa Laurinda Alves como sua diretora. Criado pela All4Integrity em 2021, este prémio, que pretende identificar, reconhecer, celebrar e premiar projetos, iniciativas ou trabalhos de pessoas que se destaquem na luta contra a corrupção e na promoção da integridade em Portugal, estreou-se enquanto iniciativa da sociedade civil para a sociedade civil, num esforço para democratizar e despolitizar a discussão sobre o tema da corrupção. À conversa com o Nascer do SOL, a nova diretora do Prémio Tágides ressalva a importância da participação cívica e da mobilização coletiva para a exigência de mais legislação anticorrupção e investimento na Justiça, fazendo ainda um apelo à participação através de nomeações, que terão lugar entre 12 de junho e 25 de agosto no site da All4Integrity.
Laurinda Alves fala ainda sobre a «barbaridade de dinheiro que é subtraído à Educação, à Ciência e à Justiça» todos os anos e que está a «comprometer o futuro de muitas gerações». São 20 mil milhões de euros, o equivalente a cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB).
Nesta entrevista, aborda ainda o papel da educação nesta luta, a sensação de impunidade na classe política e a descrença dos portugueses nas instituições. Dados recentes do Eurobarómetro referem que a maioria está insatisfeita com o combate à corrupção (67%) e considera que existe corrupção nas instituições públicas nacionais (86%). À semelhança dos anos anteriores, nesta presente edição o júri será composto por 35 elementos, desta vez distribuídos por seis categorias. A cerimónia de entrega do Prémio Tágides 2023 terá́ lugar no próximo dia 4 de dezembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Que balanço resulta das edições passadas e qual a importância deste prémio?
O objetivo principal do Prémio Tágides é identificar, celebrar e premiar quem é uma inspiração para os portugueses no combate à corrupção. Esses objetivos foram concretizados. A primeira edição foi um sucesso, a segunda também, mas ressalvo a primeira pela adesão da sociedade civil pelas nomeações. A nossa iniciativa envolve diretamente a participação dos portugueses que vêm reforçar a imagem e o nome daqueles que são mais populares no combate à corrupção, como foi o caso da Maria José Morgado, da Joana Marques Vidal ou do Rui Nabeiro. Na segunda edição, tivemos alguma novidade. Tivemos muitas nomeações de nomes mediáticos, como o juiz Carlos Alexandre, entre muitas outras pessoas conhecidas mais diretamente no combate à corrupção. Mas, curiosamente, na segunda edição houve muitos nomes anónimos. Isso foi muito interessante. Acreditamos que, ao longo das próximas edições, vai haver cada vez mais nomes anónimos, menos mediáticos. Como é óbvio, muitas das vezes, estes nomes que são mais mediáticos têm um trabalho muito mais consistente ao longo da sua carreira profissional. Na primeira edição, também não tivemos um premiado na iniciativa Jovem e na segunda edição tivemos o Eduardo Figueiredo, que tem um trabalho muito interessante de investigação na área do combate à corrupção em Portugal. Começa a haver aqui alterações interessantes.
As gerações mais jovens estão atentas ao fenómeno da corrupção?
Penso que sim. A All4Integrity tem um outro programa que é a RedEscolas AntiCorrupção. Quando se propõe aos professores implementarem um programa de literacia anticorrupção é muito curioso ver o nível de informação que os alunos mais velhos, sobretudo do ensino secundário, têm sobre o combate à corrupção, sobre os problemas da corrupção. A All4Integrity não trabalha de forma estanque cada um dos programas, cada uma das iniciativas. Entrecruzam-se e, por isso, o prémio Tágides não significará nada se não houver um trabalho de formação e literacia que seja transversal à sociedade, seja nas escolas, seja pela via da comunicação social, da academia ou da formação dos quadros empresariais. Cada vez mais, com a ação da All4Integrity, ao falar do assunto, ao estimular o pensamento e a opinião sobre estas matérias, vai despertar na sociedade civil mais interesse e uma atitude mais crítica das instituições políticas ou empresariais. Isto é um trabalho a médio/longo prazo.
Quais são as prioridades para esta edição?
A prioridade é que possamos assumir que esta é uma causa de todos. Os portugueses por vezes são passivos, somos capazes de nos indignar, mas depois do ponto de vista cívico somos incapazes de nos atravessar por esta causa. Temos que fazer com que as pessoas tomem consciência de que isto é uma causa de todos. A corrupção em Portugal equivale a cerca de 20 mil milhões de euros do PIB. É uma brutalidade. É 1,6 vezes mais que o orçamento para a Saúde e 13 vezes mais que o orçamento para a Justiça em 2021. É dinheiro que se perde por esquemas de corrupção e de fraude e que podia ser investido, por exemplo, na Saúde, na Educação, na Justiça, até na celeridade da Justiça. Este prémio tem este desígnio de viralizar esta consciência de que todos temos um papel. Não são só as instituições, as organizações, a escola. Nós, enquanto sociedade civil e pessoas individuais temos uma grande quota parte nesta causa.Temos que dar a conhecer as pessoas que lutam ativamente contra a corrupção. Precisamos de ter essas referências e de perceber que estas pessoas podem ser nomeadas e podem ganhar um prémio. Os prémios são sempre simbólicos, mas esta pessoa tem um impacto enorme na sua comunidade ou na sua esfera de influência. Este prémio é criado para isto, para revelar esta noção de que isto é uma causa de todos e que nos afeta a todos.
Como é que se faz a seleção entre as candidaturas? E que critérios guiam o júri?
Há uma triagem. É um trabalho de uma exigência enorme porque as pessoas são livres de nomear quem quiserem e temos uma equipa que faz essa triagem, um double check para perceber se as nomeações fazem sentido. Depois, tudo o que chega ao júri já foi triado. Temos um regulamento que edição após edição vai sendo melhorado. Este ano vamos ter uma nova categoria, a iniciativa Portugal no Mundo, portanto, temos que pensar quais são as pessoas que queremos identificar. À medida que as pessoas vão fazendo as nomeações essa equipa vai validando. Muitas vezes as pessoas confundem o que são pessoas que nos inspiram no combate à corrupção com pessoas que nos inspiram na promoção da integridade e nomeiam pessoas que são referências de integridade mas que não estão ativamente a lutar pelo combate à corrupção. Portanto, temos que peneirar esses nomes. Outras vezes os nomes são identificados para uma categoria mas enquadram-se muito melhor noutra categoria. Ou seja, há todo um trabalho de bastidores até chegar aos finalistas. Cada nomeado tem uma ficha técnica que chega às mãos do júri e essa ficha técnica já sofreu um trabalho antecipado. Fazemos assim um trabalho quase de polícia judiciária, de investigação. Avaliamos as indicações que nos dão, vemos as redes sociais, os links na imprensa, para realmente percebermos se se enquadram naquilo que é o tema geral do prémio.
Mas já aconteceu criticarem o prémio por estarem nomeadas pessoas como Pedro Nuno Santos, Ana Gomes e Rui Pinto. Isto não belisca a credibilidade do prémio?
Não. As nomeações são da sociedade civil. Nós não condicionamos a opinião que as pessoas têm sobre quem os inspira no combate à corrupção. A associação, quando faz este trabalho de triagem, não vai inculcar qualquer valor ou preconceito relativamente a quem é nomeado. Esse é um trabalho que cabe ao júri. É o júri nas diferentes categorias que vai avaliar se aquelas pessoas devem ser nomes finalistas e se devem ser selecionadas como vencedoras. Se um nomeado finalista não se sente confortável na mesma categoria ao lado da outra pessoa, isso é um problema que transcende a associação. Quando fazemos a validação, aquilo que seguimos são os princípios do regulamento. Temos situações de pessoas que até estão associadas ao combate à corrupção que foram condenadas ou que estão ligadas a casos judiciais, mas que ainda não foram condenadas. É por isso que o júri tem de avaliar se aquela pessoa em particular está em condição de passar à fase seguinte de finalista.
Que contributo é que Luís Marques Mendes pode ter como embaixador deste prémio?
Este prémio precisa muito de ser comunicado, para dar mais margem a que mais pessoas empenhadas na luta contra a corrupção sejam nomeadas. Luís Marques Mendes é uma pessoa da comunicação de massas e que identificamos como uma pessoa com ética, rigor e profissionalismo e, portanto, a quem agradecemos este papel de embaixador-comunicador. É valor acrescentado aos recursos humanos que estão associados ao prémio. Podemos discutir as opiniões, os comentários, mas é uma figura incontornável na comunicação. É fundamental criar aqui um lastro de comunicação para sensibilizar ainda mais, suscitar a curiosidade e envolver cada vez mais a sociedade civil.
Como se preserva a integridade e a transparência, num país que está contaminado por uma cultura de cunhas, favores, nepotismo, clientelismo?
Aquilo que é perturbador é sermos um país com essa cultura da cunha, do passar à frente e fazermos isso com uma grande lata, com grande à vontade. Somos um país onde alguns sistemas, nomeadamente o sistema judicial ou o sistema de saúde, não são ágeis. Tudo aquilo que não é ágil, ou lentifica os processos faz com que muitas pessoas recorram a esses instrumentos. Estou a pensar, por exemplo, nas cunhas que se pedem aos profissionais de saúde quando se está à espera imenso tempo por uma cirurgia ou uma consulta. O que pensamos logo é: Quem é que conheço para abreviar este prazo?. Isto gera uma sensação de que esta cultura faz parte do sistema. Da cunha ao favor e do favor à corrupção são passos muito curtos. Depois isto tem um impacto muito grande e devíamos todos interiorizar esta questão de não passar à frente do outro. Devemos ser ativos em exigir que as instituições funcionem melhor e que todo o sistema seja melhor oleado e mais funcional. Se não estamos também a expor pessoas muito vulneráveis e que pela sua vulnerabilidade são também mais facilmente permeáveis a tentar outros caminhos.
Vemos casos de corrupção que envolvem políticos frequentemente. O que pode dissuadir um cidadão comum de praticar estes atos de pequena escala quando não se dá o exemplo?
Claro, o exemplo vem de cima. Mas, curiosamente, neste caso é de baixo que temos de começar a mobilizar-nos. Se não por uma uma lentidão de um processo judicial, uma pessoa que cometeu fraude no fim ainda pode pedir uma indemnização ao Estado por danos. Corremos este risco, mas não podemos desanimar, porque essa leitura pode tirar-nos a esperança. Não podemos continuar a ter esta mentalidade de que há corruptos, há impunidade e eu não posso fazer nada contra isto. Isto faz de nós um país onde as pessoas mais facilmente desistem e abstêm-se, em vez de dar voz a esta indignação, para que haja menos impunidade, para que haja mais rigor, mais ética, mais transparência na classe política, na classe dirigente. Desde o 25 de Abril que parece que vivemos num sistema de rotativismo político. Portanto, essas pessoas continuam e temos que exigir delas uma legislação mais clara, mais objetiva, sem equívocos. Temos que ser muito mais exigentes, por exemplo, quando há um concurso público. Também temos que sublinhar que há muito mais pessoas que não são corruptas, mas que são tocadas pelos efeitos da corrupção. Esta barbaridade de dinheiro que é subtraído à educação, à ciência e à justiça podia ser investido. Estes quase 20 mil milhões de euros bem aplicados não comprometeriam como estão a comprometer o futuro de muitos jovens e muitas gerações.
Quanto à legislação, no rescaldo do Qatargate e com as europeias a aproximarem-se, a União Europeia decidiu lançar um pacote anticorrupção. Como é que se pode confiar nas boas intenções de instituições que são também elas permeáveis a estas práticas de corrupção?
Não podemos desistir das instituições. Existem esses casos, mas não são todas as pessoas que lá trabalham. É muito difícil de esperar que uma instituição seja quimicamente pura e completamente despojada da possibilidade de pessoas ligadas a lobbies corruptos e poderosos. Agora, é nestas instituições que também encontramos as pessoas que estão ativamente empenhadas em lutar contra a corrupção. O sistema só se melhora dentro do sistema. No sistema existem de facto muitas falhas e pessoas que infelizmente estão ligadas a esquemas de corrupção, mas isso não nos pode fazer desistir.
Mas os casos mais mediáticos de corrupção na classe política não retiram credibilidade às instituições, aos partidos políticos tradicionais ou até mesmo à democracia?
Fere, não diria que retira credibilidade, porque isso seria muito injusto e até ofensivo para quem está com sentido de missão ao serviço da causa pública. Claro que isto é uma lança que deixa uma ferida aberta, mas, por isso, é que temos a obrigação de fazer aquilo que está ao nosso alcance para denunciar.
Segundo dados do Eurobarómetro, 67% dos portugueses estão insatisfeitos com a luta contra a corrupção. Isto não é um sinal de que falta legislação e mecanismos de prevenção?
Falta legislação. Mas sobretudo falta a aplicação e a transposição de leis que foram aprovadas na União Europeia. Portugal é acusado de não as transpor da forma como era suposto e de só estar a fazer cumprir três de um pacote de quinze. Portanto, isto é um sinal gritante. Não podemos ter ilusões, tem que haver um investimento muito grande no combate à corrupção. É um crime altamente sofisticado que é difícil comprovar. A Justiça aqui tem um papel muito importante. Não basta estarmos muito conscientes e com formação sobre este problema, quando temos órgãos ligados à Justiça que não têm mecanismos, como recursos humanos e tecnológicos, capazes de fazer uma investigação rápida e eficaz, quando temos uma Justiça que é muito pouco célere. O Estado tem que fazer esse investimento. Há toda uma série de coisas que têm de acontecer em simultâneo. Tem de haver uma resposta integrada e interpartidária. Não podemos ter políticas circunscritas a legislaturas. Esta é uma matéria onde tem que haver concertação política. Tem que haver um compromisso de todas as frentes políticas. Isso seria um sinal muito interessante de que os políticos estão verdadeiramente interessados em combater a corrupção.
Há certos partidos mais radicais, como o Chega ou o Bloco de Esquerda, que apregoam um discurso pelo combate à corrupção. Pode isso motivar a ascensão dos populismos?
É sobretudo um grande oportunismo quando as pessoas se apropriam de um argumento e de um imaginário comum para fazer seu ou para reforçar o seu populismo e depois isso não se traduz em nada. No fundo, os políticos e os partidos que fazem isto e que muitas vezes extremam o seu ativismo combatem muito pouco a verdadeira corrupção. Temos que fazer muito mais antes de apregoar tanto. Quando nos apropriamos de uma bandeira, parece que somos os donos dessa luta. Antes de me apropriar desta luta tenho que apresentar resultados. Mostrem-nos o que têm feito no combate à corrupção. Se realmente estiverem ativamente empenhados no combate à corrupção de certeza absoluta que não se ficam só pelas frases que fazem eco. Aí há também um double check a fazer para perceber se isto é só para inglês ver e português ouvir ou se realmente revela algum trabalho. No espectro partidário, não deixando refém nenhum partido nem à direita, nem à esquerda, nem no centro, temos que ver trabalho feito.