Quanto mais pequeno o mundo se torna por causa da tecnologia, mais cada um dos sítios se torna importante, estratégico, em muitos casos», escreve Robert D. Kaplan em A Vingança da Geografia (ed. Clube do Autor). «Pense num relógio de pulso: tão pequeno, mas uma vez que comece a desmontá-lo, torna-se de repente enorme e complicado. Isso é o mundo do século XXI». Nascido em 1952 em Nova Iorque, Kaplan foi jornalista e professor da Academia Naval dos EUA, em Annapolis. Viajou extensivamente pela Europa de Leste antes da queda do Muro de Berlim e esteve no Iraque cinco vezes, onde aprendeu que «a anarquia é ainda pior que a tirania». No livro A Vingança da Geografia, demonstra por que temos de voltar a olhar para os mapas. «Se a Grã-Bretanha não fosse uma ilha, a democracia só teria chegado muitas décadas mais tarde», diz-nos. É também a geografia que explica o domínio americano, a ansiedade da China em relação a Taiwan e a atitude agressiva de Putin. É precisamente por não ter fronteiras naturais que a Rússia «foi invadida não apenas por Napoleão e Hitler, mas também pelos suecos, pelos lituanos e pelos polacos ao longo dos séculos». E isso é algo, conclui o analista, «que Putin – ou qualquer que seja o líder russo – sente até aos ossos».
Tenho um amigo – não o consideraria pró-russo, mas também não é certamente pró-ucraniano – que já muito antes da invasão da Ucrânia costumava alertar-me para os riscos que havia na região. E dizia-me: ‘Olhe para o mapa! Olhe para o mapa e vai perceber’. A geografia pura e simples explica o que está a acontecer atualmente na Ucrânia?
Não sou determinista. A geografia explica 50%. Este livro foi escrito há 13 anos, numa altura em que os intelectuais estavam completamente obcecados com a intervenção humana, com o poder dos indivíduos para tomar decisões. E tinham negligenciado o contexto geográfico e geopolítico. E, para mim, as respostas estão todas na geografia e nos mapas. Até ao momento em que entram em cena as questões shakespeareanas. [risos]
Falemos então da Ucrânia. Fica mesmo ao lado da Rússia e a sua história está entrelaçada com a da Rússia. As línguas são muito parecidas. As culturas são diferentes, embora tenham alguns aspetos em comum. Há muito a unir a Rússia e a Ucrânia. Acontece que, com a Ucrânia, a Rússia é um grande império europeu. Sem a Ucrânia, a Rússia é apenas um país enorme no Leste da Europa. Este é o pano de fundo. E neste livro escrevo sobre o pano de fundo do que está a acontecer. Quanto aos acontecimentos em si, são praticados por indivíduos. A decisão de Putin de invadir a Ucrânia, por exemplo, nem sequer teve o apoio da maior parte da elite russa. A maioria dos oligarcas teria preferido que ele não invadisse. Foi uma decisão altamente pessoal que pode ter sido influenciada pelo seu isolamento durante a covid, mas isso é algo que só saberemos nos próximos anos. Há muitos fatores em jogo. E depois há a parte shakespeareana.
As paixões dos homens?
As paixões dos homens e todos os aspetos associados à personalidade. Isso representa 50%, mas o meu livro é sobre os outros 50% do pano de fundo e tenta trazê-los de novo para a discussão.
Não é um pouco irónico que o maior país do mundo queira ainda aumentar a extensão do seu território, ou não devemos ver a coisa assim?
Não é nada irónico, na realidade é muito fácil perceber a justificação. A Rússia é a maior potência terrestre. O seu território contém metade das longitudes do planeta. Não tem fronteiras naturais, grandes rios ou cadeias montanhosas que a protejam a Ocidente. Por causa disso, foi invadida não apenas por Napoleão e Hitler, mas também pelos suecos, pelos lituanos e pelos polacos ao longo dos séculos, o que é algo que Putin – ou qualquer que seja o líder russo – sente até aos ossos. Uma potência terrestre, portanto, está sempre insegura. Muito insegura. Ao contrário de uma potência marítima, porque o oceano oferece uma proteção muito maior. E é isso que permite às potências marítimas serem liberais, terem uma mentalidade aberta, tudo isso. Se a Grã-Bretanha não fosse uma ilha, a democracia só teria chegado muitas décadas mais tarde. Se os Estados Unidos não tivessem oceanos de ambos os lados e uma fronteira com a civilização de classe média do Canadá ao Norte, a democracia americana seria muito mais confusa. Não, não é irónico que a Rússia queira anexar a Ucrânia. As potências terrestres como a Rússia são inevitavelmente inseguras e isso leva-as a tornarem-se incrivelmente agressivas.
Quando Napoleão atravessou os Alpes, por volta de 1800, foi um enorme feito. Hoje temos túneis e viadutos. E também temos aviões a jacto. E a internet. Ainda há pouco tempo falei em videoconferência com uma pessoa que estava em Bolonha.
Pois, os Alpes não foram um obstáculo. [risos]
E ainda temos mísseis de longo alcance. A tecnologia não está a fazer com que a geografia se torne ‘obsoleta’?
A geografia foi encolhida pela tecnologia, mas não desapareceu. O mundo está mais pequeno, mais claustrofóbico, mais ansioso, com as crises de um lado da terra a fazerem ricochete no outro lado de uma maneira que nunca tínhamos experimentado. Apesar disso, a geografia continua a ter importância. Continua a ser um elemento a ter em conta. Vou dar um exemplo. Taiwan está a 100 milhas, por aí, da costa da China continental. Se houvesse, digamos, o equivalente do Canal da Mancha a separá-las, uma distância de 20 milhas, a China teria invadido e conquistado Taiwan nos anos 50. Outro exemplo. A América é uma grande potência porque sempre teve muitos portos de águas profundas na costa leste. Havia passagens nas montanhas para o Midwest [região Centro-Oeste dos EUA, que alberga cidades como Chicago e Detroit]. E tinha, em terra, o maior sistema fluviário do mundo, navegável, o que permitiu criar uma economia de escala. A América é hoje esta potência avassaladora em parte por causa da geografia. E por isso digo que a geografia continua a ter importância. Os chineses sentem que vivem numa prisão porque quando olham para fora, só veem aliados americanos por todo o lado: no Japão, em Taiwan, nas Filipinas, na Austrália. Singapura não é um aliado americano, mas pende para aí, por assim dizer. E por isso há tantos motivos para a China querer invadir Taiwan. Não se trata apenas de Taiwan ter um sistema democrático. É também para se libertar da geografia.
Pensamos na geografia como algo quase imutável, com desertos, rios, montanhas, oceanos. Mas será que ela própria não vai mudando de acordo com as épocas? A geografia da Grécia de Péricles talvez não seja a mesma geografia que na época dos Descobrimentos.
É verdade. Há diferentes zonas do mapa que vão ganhando ou perdendo importância consoante o período histórico. Na época de Péricles, a geografia que interessava ao Ocidente era, essencialmente, o Mar Egeu, entre a Sicília, a ocidente, e o que é hoje a Turquia continental, a oriente. Na era dos Descobrimentos, a geografia desloca-se lateralmente para o Atlântico, alarga-se com a descoberta de novas regiões na América do Norte e do Sul, e passa a abarcar diferentes zonas do globo em simultâneo. Daí em diante, cada lugar pode assumir uma importância estratégica porque, graças à tecnologia, as crises migram de um ponto do planeta para outro.
O título do seu livro chama a atenção para os perigos da geografia. Mas não podemos, nalguns casos, vê-la antes como uma bênção? Estou a pensar no Egipto, com a abundância trazida pelo Nilo.
Sim, neste livro eu falo na vingança da geografia neste sentido de os intelectuais a terem descartado por completo, pelo que não estavam preparados para os conflitos que seriam parcialmente explicáveis pela geografia. Quando falo na vingança, significa: não se esqueçam da geografia. Era essa a ideia. Não a podemos descartar.
A certa altura a geografia tornou-se algo fora de moda, antiquado?
Sim. Foi o que aconteceu depois do fim da Guerra Fria. Isso está nos capítulos iniciais do livro: o fim da Guerra Fria fez com que a geografia ficasse fora de moda. O que aconteceu foi que a única guerra na Europa imediatamente a seguir à Guerra Fria foi numa região pobre, montanhosa, do sudeste do continente, os Balcãs. E se pensarmos na geografia no sentido que era dado à palavra no século XIX, como o ponto de partida para analisar os costumes dos povos, os recursos naturais, a História e as histórias dos diferentes impérios, percebemos que não foi um acaso a guerra ter eclodido nos Balcãs.
Há alguns meses, publicámos neste jornal um artigo de opinião de uma historiadora portuguesa [Maria de Fátima Bonifácio] que se intitulava ‘Saudades da Cortina de Ferro’. A tese era que antes da queda do Muro de Berlim e da União Soviética pelo menos sabíamos com o que podíamos contar. Havia um certo equilíbrio e estabilidade que o fim da Guerra Fria veio pôr em causa.
Durante a Guerra Fria o mundo era certamente mais estável e previsível porque os sistemas bipolares são mais estáveis do que os sistemas multipolares. Mas não nos podemos esquecer que durante a Guerra Fria vivíamos todos com a preocupação de uma aniquilação nuclear, e o facto de não terem sido usadas armas nucleares deve-se tanto a boas tomadas de decisão como a uma questão de sorte. Ao mesmo tempo, metade da Europa vivia num estado de extrema pobreza, em consequência dos próprios regimes. Sei isso porque fui jornalista durante esse período. A Guerra Fria não foi, portanto, tão cor-de-rosa quanto isso. Mas essa tese tem razão numa coisa: depois da Guerra Fria houve uma dose de previsibilidade que se perdeu. E agora estamos de novo numa situação em que a Rússia volta a ser a ameaça e o problema. Lembre-se que a Rússia foi um problema durante a Primeira Guerra Mundial, com a criação do sistema marxista-leninista [instaurado pela revolução de outubro de 1917]. Foi importantíssima na Segunda Guerra Mundial. Derrotou Hitler, mas perdeu qualquer coisa como vinte milhões de homens. Durante a Guerra Fria, metade da Europa estava sob domínio soviético. E agora volta a ser o problema. Essa é a ameaça que enfrentamos agora. A Europa está envolvida na maior guerra terrestre desde a Queda de Berlim em 1945. A ameaça da Rússia à Europa não desapareceu nestes últimos 125 anos.
Embora todos pensássemos que sim, depois da desagregação da União Soviética.
Com a queda da União Soviética houve a ilusão no Ocidente de que a Rússia podia facilmente tornar-se uma nação ‘normal’ se adotasse o capitalismo. Mas essa tentativa de adotar o capitalismo foi mal pensada e acabou por levar ao colapso da Rússia, a um certo caos, à destruição da vida das pessoas, das pensões, etc. E o resultado disso foi a ascensão de Vladimir Putin. Putin, inicialmente, experimentou um pouco o liberalismo, mas recuou rapidamente. E portanto o que temos hoje é Putin como o resultado da reação ao caos, ao fim da Guerra Fria e à dissolução da União Soviética.
Foi uma reação ao caos mas, ironicamente, trouxe de novo o caos à região.
Sem dúvida. É como se tivéssemos, mais uma vez, a História a marcar de novo o compasso. Um compasso que esteve lá durante as duas guerras mundiais, esteve lá durante a Guerra Fria e depois desapareceu, durante 20, 30 anos. E agora está de volta. Porque, seja qual for o desfecho da guerra da Ucrânia, a Rússia ainda constitui o principal desafio da Europa.
Independentemente do que sair da guerra?
Independentemente do que sair da guerra.
Muitas pessoas hoje pensam que a Europa está condenada a perder influência e importância. Qual o maior desafio que o Velho Continente enfrenta?
A Europa tem uma importância enorme em termos estratégicos. Neste momento encontra-se cercada. Está cercada a leste, com a guerra da Ucrânia, como vemos todos os dias nas manchetes. Mas está também, e assim continuará ao longo deste século, sob grande pressão demográfica por parte África saariana e subsaariana, cuja população continua a crescer – nalguns sítios começa a desenvolver-se uma classe média, mas em muitos outros não. A população a nível mundial está a estabilizar, mas a da África subsaariana, em relação à da Europa, cresce desmesuradamente, e esse será o principal desafio que a Europa enfrenta a Sul.
O seu livro fala da importância da geografia. Mas olhando para o mapa da Europa, a Suíça está mesmo no meio do furacão da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. E no entanto passou incólume a ambas.
Isso também tem que ver com a geografia. Deve-se, em grande parte, à fortaleza dos Alpes. Se a Suíça fosse plana, teria constituído um valioso corredor, como a Bélgica constituiu em ambas as guerras. Mas não é plana, é montanhosa. E houve outro elemento, que foi a sua capacidade para se manter neutral, para evitar o conflito.
Sim, mas duvido que Hitler se preocupasse muito com isso. A Suíça estava entre a França, que chegou a ser ocupada, a Áustria, a Alemanha e a Itália de Mussolini.
Hitler invadiu a França através de uma zona plana, um corredor que está ao nível das águas do mar. A Suíça está lá em cima nas montanhas. Estive na Bélgica há poucas semanas e visitei um cemitério da Primeira Guerra Mundial. São muitos homens, não milhares, mas dezenas de milhares de sepulturas por toda a Flandres. É uma visão emocionante. E o que nos chama a atenção na Flandres é a sua planura. Qualquer colina com 50 metros de altura equivale a uma montanha e torna-se um ponto estratégico que os exércitos passavam não semanas, mas anos a tentar conquistar. Graças à geografia percebemos porque é que a Bélgica foi invadida tantas vezes.
Além da geografia, há o fator humano. Recordo-me de a minha avó ter estado em Israel há uns 50 anos, e me contar que havia um contraste enorme: do lado israelita, havia estufas, os campos estavam trabalhados, eram verdes, prósperos. Do lado palestiniano, estava tudo árido, desértico. E a terra era exatamente a mesma, havia apenas uma fronteira convencionada. Isso não mostra a importância do povo?
Israel é a exceção que confirma a regra. Mais uma vez, a geografia é apenas 50% da equação.
Temos tendência para acreditar que o progresso civilizacional acabará com todas as guerras. Agora, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, muitas pessoas ficaram incrédulas por estarmos a assistir a um acontecimento deste género em pleno século XXI. Mas, olhando para trás, o facto é que quanto mais recentes, piores as guerras são.
No Ocidente as pessoas têm a ilusão de que conseguimos fugir à História, por assim dizer. O ponto de partida do meu livro é que não: ainda estamos na noite dos tempos. Tudo depende de onde vivemos. Não se trata apenas da Ucrânia. Houve os Balcãs em 1990, e continua a haver guerra em muitos outros sítios, como a África subsaariana. Problemas como esses, as migrações ou as alterações climáticas, que podem estar relacionados com a geografia, constituem um outro lado da realidade a que as elites do Ocidente, com as suas vidas altamente regulamentadas e facilitadas pela tecnologia, pensam ter conseguido escapar. E eu defendo que não, não escaparam.
Provavelmente em 1914 as pessoas também tinham essa falsa sensação.
Esse exemplo é muito interessante. No final das guerras napoleónicas, um grupo de realistas – Metternich, Castlereagh e Tallyerand – redigiram uma série de tratados de paz que não se baseavam no idealismo, mas antes na ideia de devolver o poder às antigas casas reais. Como consequência do seu realismo, houve quase um século de paz na Europa, pelo que quando a guerra eclodiu em 1914 as pessoas tinham perdido o sentido do trágico, e pensaram que seria uma guerra curta, localizada e triunfal. Em vez disso, foi uma guerra em que ninguém realmente venceu, que se arrastou por quatro anos e em que morreram 17 milhões de pessoas, ou perto disso. Uma das mensagens deste livro é essa: nunca devemos perder o sentido do trágico.