O livro O Quarto do Bebé tem merecido, e justamente, a aclamação unânime da crítica: assim, por exemplo, no Público, Helena Vasconcelos deu a pontuação máxima (cinco estrelas) a uma obra que, segundo o filósofo e ensaísta Miguel Real, veio operar "uma fundamental diferença no panorama da literatura actual, encetando uma nova vertente neste domínio, algo a que poderíamos chamar 'biorromance' ou 'romance do corpo' (como a quase totalidade da obra de Teolinda Gersão)" (Jornal de Letras, Artes e Ideias, 28 de Junho de 2023).
Anabela Mota Ribeiro é um nome sobejamente conhecido de Portugal e dos portugueses. Nos últimos anos, tornou-se a mais consagrada das nossas entrevistadoras e, mais recentemente, uma das maiores especialistas mundiais na obra de Machado de Assis.
Neste livro, Anabela revela-se uma escritora corajosa e audaz, disposta a desvendar os seus pensamentos mais recônditos ou, pelo menos, mais pessoais. Não denotando relutância em abordar temas difíceis, guia-nos até ao seu quarto, até à sua casa de banho, até à sua "casa-mansão" (p. 62), até ao divã do seu psicanalista. Enfim, leva a exposição da sua intimidade até ao extremo, até ao limite.
Obra de autoficção, que combina muito bem episódios reais da vida da autora com outros efabulados, O Quarto do Bebé fala-nos do corpo feminino, do desejo sexual, da doença, da morte, da infertilidade, da maternidade, da menopausa, da pobreza, das relações entre mãe e filha, da memória do passado, da ascensão social, das coisas do quotidiano e da esfera doméstica, só para citar alguns dos temas abordados nas suas 275 páginas.
Sem pretender, de algum modo, polemizar com os que já escreveram sobre este livro – e foram muitos, e coincidentes –, julgo que as suas propostas interpretativas não são as únicas chaves (nem sequer as mais importantes) para abrir a porta do romance de estreia de Mota Ribeiro.
Entre as várias pistas de compreensão, não tem sido devidamente referida, como penso que merece, a obsessão pelo ânus, que a autora partilha com Samuel Beckett, sobretudo no romance Molloy (1951).
É esta fixação anal que, em nosso entender, conduz Anabela a outro tópico literário que domina a narrativa da primeira à última página: o cocó.
Reter e Expulsar
Na verdade, a arquitectura de O Quarto do Bebé repousa e assenta, inquestionavelmente, na dicotomia reter vs. expulsar (o cocó), dispositivo analítico, ou anal, que, de acordo com os ensinamentos do Dr. Sigmund Freud, remonta aos primeiros conflitos manifestados da infância.
Como é referido logo na página 22, a narradora, quando chegou a altura de fazer a transição das fraldas para o bacio, recusava-se a evacuar perante o mundo, diante dos outros. Em resultado disso, aguentava, aguentava. Ou seja, retinha quanto podia. A intenção subjacente, adivinha-se, era poupar os seus semelhantes ao espectáculo de a verem fazer cocó.
Quando lhe dava vontade, Anabela tinha a nobreza de abandonar discretamente o convívio dos demais. Sabia que fazer cocó é uma coisa privada que requeria um certo pudor: "Na passagem das fraldas para o pote, não queria fazer no pote. Resguardava-me atrás de uma porta, debaixo da mesa, da cama, longe dos olhares dos adultos. Pode ser que não quisesse submeter-me às ordens da minha mãe. Domina-me a impressão longínqua de vergonha – por fazer (ou não querer fazer) uma coisa íntima à frente de outros. Não queria ser devassada". Daí a algumas horas, a mãe descobria os vestígios da matéria fecal e "enchia-me de porca" (p. 33).
Esta atitude da narradora testemunha, precocemente, um desejo de autonomia e de independência individuais – no fundo, de liberdade ilimitada –, um desejo rebelde de emancipação em relação a todas as fontes de autoridade. Ou, se quiserem, uma ânsia indomável de pensar, de julgar, de actuar pela sua cabeça, e de defecar pelo seu ânus (só isso explica que tenha largado a chupeta quando ainda só tinha um ano, como é referido na p. 54).
Escapulir-se "para debaixo das mesas e camas para as necessidades" (p. 55) designa em geral uma recusa em submeter-se à heteronormatividade e, em particular, ao domínio dos adultos: "A nossa relação com o poder constrói-se nessas experiências primordiais", diz a certa altura (p. 55).
Como dos conflitos resulta quase sempre uma maior consciência do mundo e de nós próprios, cedo Anabela percebeu que desafiar os pais era algo socialmente inaceitável, mas, também, que esse desafio a estimulava e lhe proporcionava um prazer triunfante.
A mestria no funcionamento dos esfíncteres – isto é, a capacidade de retenção das fezes quando a colocavam no bacio, para só as expulsar quando se encontrava sozinha –, mobilizava a atenção geral, permitia-lhe tornar-se o centro das atenções.
Por outro lado, a nula submissão à ordem social, e o desrespeito militante pelos poderosos despertavam nela sentimentos de superioridade em relação à figura materna (pp. 28 e 46).
Nesta luta interna, por certo dilacerante, Anabela lutava para manter o cocó entalado nas nádegas bem apertadas, evitando assim que fosse expelido do intestino protector para o mundo exterior, talvez porque desfazer-se dele diante dos outros era o mesmo que desfazer-se de si própria e da sua individualidade: "Queria concentrar-me numa essência onde me sinto eu" (p. 45).
Porém, quando se escondia ou a deixavam sozinha, dava plena expansão àquela vontade que queria vir à superfície, ou à luz do dia. Nesse preciso instante (de liberdade e de descolagem), a narradora descontraía, distraindo-se com aquele prolongamento do seu próprio corpo.
Em bom rigor, o prazer na projecção dos seus excrementos (fezes, urina, muco nasal) foi a fonte da sua primeira diversão, antes até do barro e da plasticina: "um prazer de criança que brinca com as fezes, o genital, a terra" (p. 36). Ou ainda: "brincava na terra. Fazia bolinhas com a terra que antes humedecia com o meu chichi. Amassava como quem amassa pão. Desfazia e voltava a fazer" (p. 190).
Fantasmas do pénis
Tanto a retenção como a expulsão da matéria fecal correspondem a uma intenção masturbatória, pois a a líbido das crianças, como é sabido, está inicialmente focada na retenção e evacuação das suas secreções e excreções (urina e fezes) e centra-se no prazer de controlar os movimentos da bexiga e do intestino. Se a narradora atribui tanta importância à zona anal, tal deve-se, sem sombra de dúvida, à memória dessas primeiras práticas autoeróticas.
Do ponto de vista simbólico, as fezes tendem a ser interpretadas como "fantasmas" do pénis. Porque, tal como o cocó (no reto), também o pénis desliza num órgão oco (a bainha da vagina, durante a cópula): "Sempre penso, quando faço bem cocó, que estou a expelir um falo. Fiz hoje um assim. A carne que comi há dois dias não ficou muito tempo em mim. Sinto-me depois limpa. Sinto durante um prazer de orgasmo" (p. 128).
Esta afinidade entre as fezes e o pénis denuncia também um investimento libidinal no ânus, mostrando que a narradora privilegia o reto sobre a vagina, ou (pelo menos) que o valoriza tanto quanto esta última. E, assim, pensar no pénis quando está a defecar é uma forma de atribuir ao ânus a mesma natureza e função da vagina.
Por outro lado, ao substituir a cavidade vaginal pela cavidade anal, Anabela Mota Ribeiro não apenas inverte a clássica hierarquia anatómica ligada à procriação, como chama ainda a atenção para a coexistência de orientações opostas (chegar/partir, entrar/sair) no mesmo canal (o ânus), o qual passa a desempenhar, neste contexto, todas as funções (defecação, coito e parto).
Acresce a tudo isto que, neste livro, a imagem da vagina está profundamente ligada ao medo que antecede a penetração. No início da quarta parte desta obra, estando nua, de barriga para cima, momentos antes de o marido lhe dar uma injecção na zona do abdómen, a narradora revela-se "transida de medo" e, logo de seguida, pensa "no instante imediatamente anterior à penetração. No temor, na rejeição, na porta que se fecha, na boca do corpo cosida com linha. E por fim no gozo. Porque é que as mulheres têm medo do sexo? Se calhar sou uma lésbica que nunca o foi" (p. 229).
Se o cocó é igual ao pénis e o ânus igual à vagina, chegamos à equação "ânus = bebés = filhos". Na página 33, diz a narradora, conclusivamente: "Não há muito tempo, já na casa nova, sonhei que o João [o marido] fazia um cocó-bebé, imenso. Era, na verdade, um cocó-bebé meu. Acarinhei esse bebé. Estava tão seca, tão árida, que nem um bebé-cocó conseguia fazer, sonhar. Estranhamente, aquele bebé do João era meu, pertencia-me".
Em face disto, é legítimo perguntarmos: o episódio onírico em que intervém o cocó do João deve ser entendido no seu sentido literal ou numa acepção mais metafórica? Deixo aqui aos leitores e aos estudiosos da obra de Mota Ribeiro uma das grandes questões deste livro: como interpretar o cocó do João no sonho da narradora?
Será que a narradora nos pretende dizer, numa mensagem à clef, que sente um deleite erótico em ver o cocó a sair do ânus do João e que isso tem fortalecido o amor entre ambos? Será isso o que a narradora quer dizer, consciente ou inconscientemente? Que observá-lo, quando o João evacua, é uma incomensurável honra, como nos tempos de Luís XIV ou da corte de Nápoles (leia-se O Amante do Vulcão, de Susan Sontag, quando o rei convida Lord Hamilton, o embaixador inglês, a assistir à cerimónia da defecação real, ao momento em que "uma rajada de ruídos crepitantes culminou numa profunda exalação cavernosa das tripas!").
Ou será no cocó do seu companheiro que reside a chave da sua inspiração e do seu génio literário, pois foi a pensar nele que escreveu este livro, como diz na página 118 e na dedicatória ("Para o Zé António, que esteve comigo na selva oscura")?
Perder as fezes, ou separar-se delas, é vivido pela narradora, emocionalmente, inconscientemente, como perder ou separar-se de um bebé (afinal, as fezes, tal como os bebés, são e não são, simultaneamente, partes do corpo dos progenitores).
Escrita e cocó
A equivalência entre a obra que se está a escrever e o cocó que se projecta para o exterior é uma ideia transversal a todo este livro de Anabela Mota Ribeiro: o romance, tal como o intestino, é um lugar de gestação ("O mais provável é que, resolvida a tese [doutoramento sobre Machado de Assis], escreva um romance que será um pão sagrado que se ladeia com as mãos, corpo parido de outra gestação. Esse é que será o meu corpo", p. 64).
Por outro lado, o cocó reflecte a própria estrutura de um romance construído em forma de diário íntimo. Como este, as fezes são fragmentadas, irregulares, compostas de partes avulsas: "esta escrita decepada", feita, entre outras coisas, "de restos de fezes" (p. 186).
Como o cocó, o livro é também, e ainda, uma extensão orgânica de quem o concebe: romance e cocó irrompem de dentro para fora, são uma espécie de organismo criado no interior, que se expande no exterior e deixa de nos pertencer, ganha uma vida própria (arriscaria até dizer, perdoem-me se simplifico demasiado, que se trata do equivalente, na teoria dos dois corpos de Kantorowicz, ao corpo terreno, que morre – o cocó –, por oposição ao verdadeiro monarca – a obra literária –, que é eterno). Questões que aqui se colocam, como puras hipóteses de trabalho, e que merecem uma análise mais profunda.
É certo, todavia, que a narradora tem com a escrita uma relação em tudo semelhante à que mantém com o cocó: a linguagem é a casa da escritora, tal como ela é a casa do seu cocó.
Dito de outro modo, o cocó e a escrita. Ele e ela. Um ao outro procurando-se: "Estou presa – maneira de falar do meu intestino e de uma obstrução na minha capacidade de escrever. Qualquer coisa, que não sei onde está, mas que está num lugar inacessível, recusa-se a ser evacuado, obrado, a integrar um corpo, a ganhar forma. Resiste a ser chamado" (p. 87). Assim, desbloquear o cocó equivale a vencer os bloqueios da escrita, largando-a, soltando-a sem pudor, abdicando de todos os freios.
Noutra aproximação, escrever este livro e fazer cocó aparecem entrelaçados com o problema da maternidade. Pensando no seu diário, pergunta-se: "mas que filho será este?" (p. 93). E, mais adiante, afirma: "os meus bebés são a minha obra" (p. 153). Depois, noutro momento onírico, sonha que tem um dinossauro por animal de estimação e que "os seus pequenos dinossauros nascem do ânus" (p. 203); que defecou um rato (p. 214) – suscitando-nos esta dúvida: trata-se de um bebé-rato ou de um rato-bebé? –, isto muito depois de ter sonhado com "um rato a subir pelas pernas, a entrar na vagina" (p. 41).
Note-se que, na atmosfera densa deste romance, a perda da virgindade é associada ao desconforto de um "rito sacrificial": "O momento em que alguém ergue no cimo de uma pirâmide um naco que é ofertado, que é disposto bem a jeito para ser bicado pelos pássaros. E, criança pequena, logo via a perfuração, o bico ereto dos bichos, a membrana virgem a ser esburacada. Até romper e os pássaros saírem em debandada, de papo cheio" (p. 215).
É curioso verificar, aliás, que os animais se revestem aqui de vários aspectos. Suscitam imagens fortes, imagens de desconforto (ratos, piolhos, cães) e de harmonia (borboletas) ou desarmonia (traças). São portadores de sentimentos e ideias, iluminam ou traduzem a realidade, ou uma realidade ulterior.
Regra geral, a narradora tem nojo do que é animal. Mas, se observarmos bem o papel que os animais desempenham na escrita de Mota Ribeiro, verificamos que, afinal, uns bichos metem menos nojo do que outros. A cães, gatos, ratos e piolhos, por exemplo, tem fobia, sente-lhes pavor. De aranhas e traças não receia, gosta inclusivamente de as matar: "Nunca tive medo das aranhas. Tenho até um certo prazer em matá-las" (p. 171); "matei a traça" (p. 12); "Matei uma traça com as palmas das mãos" (p. 46), "Vi uma traça dependurada no teto da sala. Na casa nova já vi aranhas, moscas, traças. Pacientemente, fui buscar uma vassoura comprida, matei a traça" (p. 121).
E logo aparece o cocó, sempre ele, o eterno cocó. O cocó dos cães – "Come merda, que os cães também a comem e estão gordos" (p. 141) – ou com forma de outros animais, quando a narradora sonha que "faz cocó no chão, um cocó mole, maleável, verde da cor dos kiwis. O cocó assemelha-se a uma serpente e estende-se até ao lavatório. Tenho a certeza de que o cocó me vai denunciar. Não entendo porque fiz no chão, porque não consigo limpar – apagar todos os vestígios –, como consegui fazer tanto cocó" (p. 199).
Com tanto cocó, com tanto destaque e importância dados ao cocó, percebe-se a fixação da narradora na higiene e na limpeza, outra obsessão prenhe de implicações freudianas. Presente em adultos que, quando eram crianças, obtinham prazer esvaziando ou segurando as fezes, a mania da limpeza é, como se sabe, uma sublimação ou reacção contra hábitos intestinais conflituosos.
Limpezas
O confinamento, durante o qual não pôde contar com os serviços de empregadas ("Aqui está uma altura em que não interessa ter dinheiro", p. 147), veio agravar a sua preocupação pelo asseio e pela ordem.
Para banir os excrementos da sua mente, "prevalece um desejo de limpeza", que "raia a obsessão" (p. 31); "Tenho uma grande alegria em limpar, limpar, limpar a casa" (p. 32); "Não entendo gente porca nem sostra" (p. 33); "Levei até ao limite a obsessão com a limpeza" (p. 41).
O que a leva, numa espécie de dúvida circular, a eliminar a eliminação, a limpar sobre o limpo: "lavei sete vezes as portadas e puxadores dos móveis da cozinha" (p. 146).
Limpar, digamos assim, é como fazer cocó: "sentia-me limpa, como quando se evacua um longo cocó" (p. 244). Donde o recurso a metáforas que lembram os acessórios de limpeza e cuidado do lar: "Empurrar com extrema-força e eficácia as minhas fezes, com um desentupidor imaginário" (p. 167).
A experiência de limpar e a verbalização dessa experiência exercem um efeito purificador, são reconfortantes. São, crê-se, uma forma de a autora sentir-se dona de si própria, de controlar e dominar a sua existência: "Gosto de me medir comigo e ter a certeza de que consigo dominar-me. Eu é que mando" (p. 49); "Nada supera o prazer de me dominar" (p. 117).
Paradoxalmente, as limpezas levam-na a sentir necessidade de aprovação da mãe: "Sinto sempre que a minha mãe tem orgulho em mim. Que, ao limpar, sou mesmo filha da minha mãe. O desgosto que ela teria se eu fosse porca e sostra" (p. 32).
A criar regras: "determinei que a quinta é o dia das limpezas" (p. 78). Uma disciplina: "um doce uma vez por semana ou uma vez por semana. Hidratos uma vez por semana, mais ou menos" (p. 49). Rituais: "De manhã, subi e desci os 128 degraus, duas vezes. Uma não chega" (p. 63).
As pessoas que vivem obcecadas com o cocó que sai disparado do ânus sentem que estão sujas – "Imunda. Fezes lá no fundo" (p. 165) –, desconfiam do seu corpo, têm nojo de tudo. "Nojo do que é animal, do que contamina, do que tem cheiro. Nojo do calor que vem da presença de um animal. Nojo do pelo. Nojo da baba. Nojo de deitar a minha cabeça num guardanapo onde outro paciente deitou a cabeça" (p. 31).
Além disso, preocupam-se com regras, listas, classificações, formas elementares de ordenação do mundo. Daí que a narradora aponte tarefas diárias, elabore listas de factos do dia, do que faz e do que não faz (p. 91), das coisas que não consegue fazer, das coisas que vê e das ideias que não vai desenvolver (p. 181).
No seu espírito, os planos amontoam-se, inacabados, e há tarefas sempre adiadas: "Se eu tivesse tempo, mergulhava nos cantos da Divina Comédia" (p. 53); p. 54: "A Doença como Metáfora da Susan Sontag. Mais um livro que quero ler"; "Ontem quis ver Roma, Cidade Aberta" (p. 55); "Pretendo ver um filme do Ozu esta tarde. Será que chego a ver?" (p. 115); "Pensei reler Brás Cubas" (p. 121); "Esta tarde podíamos ver o Fanny e Alexander, outra vez" (p. 240).
As referências a autores dispersos acumulam-se, deles se lembra a narradora muitas vezes (não raro, sem se saber ao certo porquê): "Tenho pensado nos livros de Svetlana Alexievich" (p. 54); "Tenho pensado no filme do Charles Laughton A Sombra do Caçador" (p. 139).
São muitos os nomes citados, o catálogo referencial é quase torrencial: Ingmar Bergman, Hugo van der Ding, Chico Buarque, Natalia Ginzburg, Pedro Costa, Ruy Belo, Paula Rego, Vermeer, Caravaggio, Noemi Jaffe, Maria Filomena Molder, Hermann Broch, Ana Hatherly, Rosa Maria Martelo, Goethe, Heitor Villa-Lobos, Tatiana Salem Levi, Auden, Purcell, Gerard Richter, Frida Kahlo, Patricio Guzmán, Silvia Plath, Mizoguchi, Fellini, Violeta Parra, Susana Moreira Marques, Jung, Godard, Philip Roth, Zeca Afonso, Jorge Sousa Braga, Noel Rosa, Elena Ferrante, Adília Lopes, Cesariny, Mário Botas, Janet Baker, Eduardo Lourenço, Tolstoi, Stevie Wonder, Primo Levi, Anne Frank, Maria João Mayer Branco, Fernando Gil, Alfredo Marceneiro, Cartola, João Pereira Rosa, Nise da Silveira, Manuel Bandeira e – muito, muitíssimo – Machado de Assis, tratado familiarmente por "o meu Machado".
Esta prática, que visa a criação e o controlo de uma imagem favorável e dominante nos outros, está presente na compulsão de realizar determinadas acções, um certo número de vezes, de modo a impedir acontecimentos funestos, como a morte de uma amiga ("Se não sair de casa às seis da manhã, morre. Se não der 35 passos dentro de casa, morre").
Ou de contar os degraus ("subi 128 degraus"), os rebuçados que chupa ("chupei 10 rebuçados"), o número de dias sem defecar: "Comi cabrito. Não comia carne desde o Natal do ano passado. Talvez sugestionada, tive a impressão de ter um tijolo na barriga. Compacto, duro, cimento. Vou contar quantos dias fico sem ir à casa de banho" (p. 125).
O afã em tudo contabilizar responde à necessidade de encontrar uma ordem numa realidade caótica, diversa e difusa, como se só existisse aquilo a que conseguimos pôr um número, como se aquilo que não se conta não existisse.
De maneira a encontrar uma coerência na existência, a narradora de O Quarto do Bebé cria um sistema complexo que inclui pesar as coisas (muito à semelhança de Reva, a personagem do livro O Meu Ano de Repouso e Relaxamento, de Ottessa Moshfegh, que é "especialista em calcular o peso de coisas e pessoas"): "Pedi que pesassem uma porção na balança do fiambre e surpreendeu-me que não chegasse aos 20 gramas. (…) A imagem dos 20 gramas acompanhou-me durante uns tempos. Há meses que não pensava nela" (p. 59).
Ou que ambiciona pesar: "Um pénis pesa quanto? Um pénis conjugado com um útero pesa quanto?" (p. 255). Curiosamente, a narradora não se interessa em saber o peso do seu cocó, o que a afasta, por exemplo, da abordagem de Rubem Fonseca, em particular da personagem do conto "Copromancia" (Secreções, Excreções e Desatinos, 2001), a qual, dedicando-se ao estudo do carácter e das disposições naturais dos indivíduos a partir da forma, aspecto e consistência do seu cocó, resolve, a dado passo, comprar "uma balança de precisão" para pesar as fezes).
O comportamento de retenção da narradora de O Quarto do Bebé verifica-se também num certo fetichismo das palavras, sobretudo aquelas em que a narradora se fixa, meditativa: "Há instantes li a palavra masturbação e estanquei nela" (p. 60); "A palavra desfeita acompanha-me" (p. 68); "As palavras que ecoam num crescendo ensurdecedor: veneno e humilhação" (p. 82); "uma palavra a que me agarrei como lapa: obsoleto" (p. 90); "Sou perseguida pela palavra luto" (p. 93). E, como é habitual, a imagética do cocó: "Uma sensação de limpeza que também tenho quando obro. Obrar: palavra extraordinária para dizer defecar. Odeio o som da palavra vulgar. Nunca a uso" (p. 33).
Apesar da insatisfação que a palavra lhe dá, obrar pode também ser uma fonte de renovação. Pois a merda não é apenas símbolo de desprezo – "Je t'emmerde!" –, é também símbolo de um poder vitalizante, de uma força regeneradora, que promove o renascimento dos campos e a renovação da vida: "As fezes vão pelo cano. As cinzas servem de estrume. Agora já sei o que é a compostagem" (p. 255).
Na literatura, não interessam tanto as personagens que conseguem explicar os seus sentimentos contraditórios. Interessam mais as que se debatem com as suas oscilações e contradições. Na página 230, a narradora ufana-se: "sou boa a empurrar as fezes". Mas, páginas adiante, parece desanimada: "Continuo sem fazer cocó. Posso estar a reter, inconscientemente, este último grande cocó" (p. 244).
Coincidências
É também com o intuito de organizar a enorme e caótica quantidade de informação do mundo que a autora encontra várias coincidências, todas surpreendentes, mas que depois seguem para parte nenhuma: "Naquele mesmo dia em que me extirparam uma presença maléfica, nascia uma criança" (o neto da amiga Eulália, que nasceu também no mesmo hospital onde a narradora foi operada) (p. 27); os pais do João "conheceram-se na mesma casa de saúde onde fui operada" (p. 103); "[Simão] Bolívar viveu apenas 47 anos. Menos um do que eu" (p. 148); "faz hoje anos a filha da minha oncologista. Nasceu no dia em que me tiraram o aparelho reprodutor" (p. 235); "O dia começou há seis minutos. Só há segundos me lembrei de que foi no dia 30 de Setembro que soube que tinha um cancro. Agora me lembro que Machado de Assis morreu a 29 de Setembro. Que sequência" (p. 246); "Ontem, dia 21, foi conhecida a sentença. Ester foi condenada a nove anos de prisão por ter deitado o filho recém-nascido num caixote do lixo. No dia 21 de há um ano soube que não tinha de fazer quimioterapia. (…) O meu caro Brás [referência às Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis] nasceu a 20 de Outubro" (p. 270).
Autoironia de classe
Além de tudo isto, O Quarto do Bebé é um retrato autoirónico, muito cáustico e muito poderoso, das contradições de certas elites de esquerda que vivem em contextos privilegiados, como este: "Cantámos a 'Grândola', o hino, 'Tanto Mar' e 'Le Chant des Partisans' às três da tarde, na varanda. Tristeza grande por não poder celebrar na avenida" (p. 152).
Anabela Mota Ribeiro, mulher de origens humildes, é implacável com a classe social a que ascendeu. Fala abundantemente dos pobres, não para alimentar o ego e falar de si própria, mas porque desenvolveu uma apurada consciência social.
Frases como "Esta tarde ouvi três sirenes na rua. Pergunto-me se são ambulâncias do INEM, alguém a asfixiar, um choro de quem não sabe o quer fazer" (p. 45), "Já começaram a explodir casos de violência doméstica. Vai ser uma tragédia" (p. 57), "Vemos os números a aumentar, velhinhos a morrer, notícias sobre infecções em lares. (…) a fome que alguns sentem já, o desemprego" (p. 66), "Havia velhos a dormir ao lado de cadáveres. Os nossos velhinhos estão a cair que nem tordos" (p. 71) ou "O João está revoltado e em estado de choque com a morte do ucraniano no aeroporto de Lisboa. (…) Mas isto não é só xenofobia. Nem racismo. É ódio. É necessidade de matar" (p. 95), todas estas frases, como vinha dizendo, não são meras frases de circunstância.
São, pelo contrário, afirmações ou gritos de alma que visam ridicularizar a elite portuguesa e as pessoas do pequeno mundo da cultura urbana, que usam esse tipo de retórica para exibir uma bondade e um altruísmo hipócritas, somente de fachada, superficiais. Pressente-se em cada página deste livro que a jornalista e escritora Anabela Mota Ribeiro sabe, e sabe bem, que não basta denunciar as desigualdades e injustiças da sociedade para que as mudanças ocorram.
Anabela sabe que é preciso alimentar uma verdadeira comunicação, e construir uma relação significativa de camaradagem, com os "esquecidos do mundo": "Quis ver o jardim do Príncipe Real. Na nossa antiga rua, não me lembrei de olhar para a casa onde fomos felizes por dez anos. Pensei na Vanessa e no Franklin, os arrumadores da rua, que vimos para cá e para lá, na estrada e na droga, ora a perderem os dentes, ora a ficarem mais vigorosos ou de rabo grande (Vanessa). O Franklin esteve preso seis meses e disse-nos, em vésperas de Natal, que a cadeia não era para ele, não era, aliás, para ninguém" (p. 51).
Embora viva no conforto da sua "casa-mansão" (p. 62), de onde se vê o rio e o edifício da Fundação Champalimaud, da qual até desconhece o número de divisões – "Só de tarde aproveitei o terraço da casa nova. Pus a casa a aproveitar, abri as janelas de cada compartimento. Tenho de contar quantos são" (não sabemos se são mais de dez divisões, mas digamos que sim, para efeito dramático) –, Mota Ribeiro nunca se esquece da pobreza e da miséria que grassam no país.
A atenção minuciosa que presta ao contexto social é comovente e, mais do que isso, muito mobilizadora: "É o fim de mês e muita gente não terá salário. Felizmente suspenderam os despejos e proibiram que se cortasse o fornecimento de energia por falta de pagamento durante este período" (p. 82), "Interrogo-me sobre o que estão a fazer os carteiristas, as prostitutas, os drogados" (p. 98), "Foi aberto um concurso para recrutar 50 pessoas para dar apoio aos sem-abrigo, a lares, serviço social. Em poucas horas concorreram 700. Já há muita gente aflita" (p. 110). Perante isto, Mota Ribeiro pensa activamente na solução a dar a estes problemas: "Continuarei a sonhar em ganhar muito dinheiro, muito, muito dinheiro" (p. 251).
Anabela é, acima de tudo, uma mulher que não contemporiza com os poderosos. Por isso, e exemplarmente, não hesita em levantar a voz crítica contra o mundo ("Merda de mundo", p. 136) e contra os privilegiados ("Merda de meninos ricos para quem sempre houve alguém que catasse as migalhas", p. 38).
Para que não restem dúvidas a respeito da sua militância intransigente, cita o final da canção Os Vampiros, de Zeca Afonso: "Merda, merda, merda merda" (p. 74). Eis uma crítica devastadora, impiedosa, à ordem social estabelecida.
Nem as marcas de consumo da esquerda da elite culta, a esquerda das viagens, das carreiras fabulosas, dos jantares e das festas alternativas estão ao abrigo do seu olhar mordaz, como quando fala do álcool de boa qualidade (Armagnac e vinho Quinta da Leda, que pode custar entre 50 a 120 euros), ou quando se lamenta por ter passado mais um sábado sem ter ido ao mercado biológico do Príncipe Real (p. 84). Isto pouco depois de referir que "Mário Centeno deu uma entrevista na qual disse que a queda do PIB vai ser catastrófica. Não o disse assim, disse-o de uma forma velada. Vamos sofrer tanto" (p. 134) ou que "Percebi o lavrar da pobreza quando disseram que já há muitas pessoas a pedir nas ruas" (p. 149).
No fundo, Anabela sente-se à margem da sociedade que frequenta, já que, segundo ela, a sua essência se identifica com o ambiente retratado em No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, filme que conta a história de Vanda Duarte, uma jovem toxicodependente que vive no antigo bairro de lata das Fontainhas (na zona norte de cidade de Lisboa): "A minha vida está naquele verde do quarto da Vanda. Um verde que não é o das plantas, mas o da pestilência. Está na tristeza dos olhos da Vanda" (p. 159), "Senti um inusitado conforto naquele lugar out of order. Também eu fora do mundo" (p. 160). De certo modo, as semelhanças entre o quarto da Vanda e o quarto do bebé são bem maiores que as diferenças: "O meu veneno não é a heroína. O meu veneno é a tristeza" (p. 163).
Durante a pandemia, quando a fiel empregada não podia ir lá a casa, era apenas Anabela que fazia a lida doméstica, que deixava o bacalhau a demolhar, que cozinhava, que punha a mesa, descascava a fruta, que lavava e arrumava a loiça, enchia os sacos de lixo, que ia às compras, organizava a casa, levava a roupa suja para a máquina de lavar, dobrava as peças que já estavam secas, limpava o pó, aquecia os restos do almoço, mudava as toalhas e as fronhas, arejava os quartos, alisava e dobrava os lençóis e o edredão, limpava com lixívia as casas de banho, passava a esfregona. Fazia tudo isto "com gosto, gratificada por me reconhecer asseada" (p. 79).
Embora admita que "trato o meu homem como a minha mãe tratava o seu" (p. 79), que "preciso de ser mais livre. Expliquei como vivo a fazer de minha mãe. Sem parança" (p. 151), e que isso entra em contradição com o seu feminismo (leia-se o seu texto "Porque sou feminista", apresentado no International Seminar Female Public Intellectuals: critical thinking and social activism, na Universidade dos Açores, em Setembro de 2019, disponível em https://anabelamotaribeiro.pt/porque-sou-feminista-252003), Anabela confessa que as tarefas domésticas lhe transmitem uma sensação estranhamente libertadora.
Graças a estas e outras incongruências, O Quarto do Bebé é também um documento psicológico sobre a rara inteligência da autora – "o psicanalista disse que até a sonhar era inteligente" (p. 128), diz Anabela sobre si própria –, uma sagacidade que não evita a autoironia e a autocrítica, porque só tornando visível os paradoxos e as contradições (pobreza vs. carreirismo) é que a autocrítica e a autoironia surtem efeito.
Conclusão
Com este O Quarto do Bebé, Anabela Mota Ribeiro inaugura uma nova etapa na literatura portuguesa sobre o cocó. O género e o tema são aqui explorados numa abordagem mais ousada, que rasga perspectivas originais num domínio que exige audácia (leia-se o artigo de Dwight Garner, "Let's Talk About the Bathroom Scene", no The New York Times de 26 de Junho de 2023) e, sobretudo, esforço.
Neste livro, e desde logo, o cocó não é apenas cocó. É uma extensão emocional da narradora, como se percebe já perto do final de O Quarto do Bebé, quando intuímos que fazer cocó predispõe o espírito da narradora para a efusão de emoções íntimas: "dei à luz aquele primeiro e último cocó. (…) Um cocó bom e inteiro, não total e orgástico, mas não enfezado, apesar do medo de rasgar" (p. 247).
Defecar um cocó impressionante, de primeira qualidade – fazer um grande cocó, essa grande experiência em que o mundo muda –, é fonte de alegria e satisfação, quase motivo de festa: "Até segunda-feira à noite tinha o intestino parado, mas então deu uma pontada e expeli um cocó grande. (…) Em casa celebramos o cocó como se celebra o cocó dos bebés" (p. 253).
Daí, também, a candura infantil da narrativa, mostrando que Anabela não perdeu, de forma alguma, aquele deslumbramento da criança que faz cocó e se deixa prender pela sua aparência: "preciso de ver as fezes antes de fazer a descarga" (p. 32).
Estabelecer contacto visual com o cocó, ficar a observá-lo – "fico orgulhosa se faço um cocó que se veja, embora só eu o veja" (p. 32) –, marca profundamente o primeiro romance (como dizia Mário de Andrade, romance é aquilo que o seu autor resolveu designar assim) de Mota Ribeiro, tem nele uma evidência admirável, a ponto de podermos dizer que o cocó se constitui no emblema desta obra literária, da primeira à última página.
Na verdade, a desarmante facilidade com que a autora fala do cocó, a sua abertura tão plena ao cocó, próprio e alheio, devem merecer a nossa admiração, pois revelam até que ponto a literatura pode ser um corajoso meio de exposição e uma forma de autodescoberta. É notável, de resto, o afinco de Anabela Mota Ribeiro em dar a conhecer o seu cocó aos que a lêem ou, se quiserem, em desvendar ao mundo "a trampa que tenho dentro de mim" (p. 50).
Muito provavelmente, o grande mérito de Anabela Mota Ribeiro consiste em ter sabido vislumbrar, ou intuir, a importância e a grandeza do cocó como experiência de escrita, da escrita como exercício de radicalidade – e de liberdade.
Em boa lógica, a noção de que o cocó é necessariamente imperfeito converge com outra ideia, a de incompletude, da precariedade de tudo, da relação do ser humano com a sua finitude e morte (a nossa vida, como a do cocó, certamente não termina bem).
O cocó é também universal (todos vamos à casa-de-banho, pelo menos uma vez por dia), constituindo, pois, um arquétipo comum, acessível a todos os leitores. E, bem assim, aos que no futuro irão ler e estudar esta obra nas melhores academias: "Melhor notícia do dia: vão estudar um conto meu na Universidade de Princeton. Está já no syllabus" (p. 152).
Por isso, e em síntese, falar do cocó, como entidade, é regressar ao humano e às guerras que o corpo enfrenta na solidão da retrete. É falar do tempo e do autoconhecimento. É lembrar a nossa materialidade orgânica, a unidade cíclica do eterno retorno: todos os dias sai do nosso organismo qualquer coisa, todos os dias morre uma pequena parte do nosso corpo. Nesse sentido, é através do cocó – pequeno ou grande –, não importa, que estamos constantemente a morrer e a renascer.
Na sua prosa elegante e contida, de extremo bom-gosto, onde já foram detectadas influências de Annie Ernaux (Prémio Nobel da Literatura 2022) ou da norte-americana Joan Didion (O Ano do Pensamento Mágico, 2005), Anabela Mota Ribeiro compreendeu que era preciso transformar a experiência de defecar num facto novo do nosso imaginário literário.
Neste primeiro romance – um excelente livro de uma nova e grande autora –, recupera-se o corpo e a corporeidade, nomeadamente aquilo que estes têm de repugnante e abjecto, para que, aliviados dessa carga, sejamos capazes, enfim, de falar honestamente do amor e da morte.
Em suma, O Quarto do Bebé recorda-nos que somos reais precisamente na medida em que somos todos, sem excepção, feitos de cocó.